Os golpes de Estado do Século XXI
Houve um tempo em que se defendia no Brasil a ideia de que
já não havia espaço para golpes de Estado na América Latina.
Supostamente, as ditaduras nos haviam ensinado o que não queríamos, e
nos Anos 90, alguns comentaristas políticos diziam isso, com uma
segurança contagiante, tanto que me contagiaram na época.
Lembrei desses comentaristas – mas não
vou citar nomes, até porque acho que realmente acreditavam nisso –
quando, já trabalhando como jornalista, vivi na Argentina e no Chile, e
pude constatar que a punição aos crimes dessas ditaduras deixou marcas
na sociedade e nas instituições. Porém, no Brasil, onde pouquíssimo
criminosos da ditadura foram julgados, e nenhum deles condenado, eu só
me lembro deles quando vejo essa nova tendência brasileira de ir às ruas
pedir intervenção militar.
Decidi então conferir se de fato ela
tem fundamento. E não tem! Resumi a pesquisa somente ao jovem Século XXI
que vivemos, e me deparei com os seis mais recentes golpes de Estado
latinoamericanos – um a cada dois anos e meio. Antes de analisar algumas
características deles, recordemos, por ordem cronológica, quais foram e
como ocorreram:
Venezuela, 2002
O interessante do cenário que se viveu
na Venezuela há treze anos atrás é que talvez ele não seja muito
diferente do Brasil atual. A começar pelo fato da disputa política
envolver a PDVSA (estatal petroleira venezuelana, a Petrobrás deles).
Carmona Estanga, em uma de suas poucas horas de governo, após o golpe de Estado de 2002, na Venezuela.
Durante os primeiros três meses
daquele ano, a oposição, junto com os meios de comunicação hegemônicos,
começaram uma campanha de desprestígio contra a empresa, questionando
seus resultados e sua gestão. Alguns dos principais gerentes da PDVSA
apoiavam as críticas e convocaram uma greve geral a partir do dia 9 de
abril. A resposta do presidente Hugo Chávez foi a demissão dos gerentes
que convocaram a greve, a nomeação de um novo diretor para a empresa e o
anúncio de manifestações em defesa da soberania venezuelana sobre o
petróleo, em locais diferentes dos
protestos pela greve.
No terceiro dia da greve, os
manifestantes opositores mudaram o trajeto da marcha, o que causou temor
por um possível confronto. Antes que isso pudesse acontecer, foram
percebidos disparos contra as duas manifestações, que produziram 19
mortes, a maioria com tiros na cabeça. A oposição acusou o presidente
Chávez pelas mortes e o exército invadiu o Palácio Miraflores na noite
de 11 de abril, saindo de lá com o presidente preso. Horas depois, Pedro
Carmona Estanga, líder dos empresários, jurava como presidente imposto
pelos grupos que apoiaram o golpe, e dissolvia o Parlamento, a Corte
Suprema, o Ministério Público e o Conselho Nacional Eleitoral.
Porém, seu mandato durou algumas
horas. Uma multidão de centenas de milhares de chavistas se reuniu nos
bairros carentes de Caracas e foi até o palácio presidencial, exigir a
restituição do presidente. O clamor popular levou alguns grupos
militares a desobedecerem o alto mando, o que permitiu o regresso de
Chávez ao poder.
Análises de criminalística e dos
vídeos relacionados ao dia do confronto das marchas provaram que os
disparos haviam partido de franco-atiradores da polícia localizados
estrategicamente nos edifícios contíguos, e que faziam parte do golpe.
Alguns chefes policiais foram condenados, mas anistiados, em 2007, por
decreto do próprio Hugo Chávez.
O documentário Chávez; Inside the Coup (Chávez: Bastidores do Golpe), das cineastas irlandesas Kim Bartley e Donnacha O´Brian, que na América Latina foi chamado La Revolución no Será Transmitida
(A Revolução Não Será Televisionada), é o melhor trabalho jornalístico,
contendo riqueza de detalhes sobre o contexto do golpe de Estado na
Venezuela, em 2002.
Haiti, 2004
Após a morte de um de seus líderes, em
setembro de 2003, a guerrilha Frente para a Liberação e Reconstrução
Nacional inicia uma série de ataques em regiões do interior do país.
Aristide escoltado entre a multidão, enquanto ainda era o presidente do Haiti.
No dia 5 de fevereiro de 2004,
conseguiram tomar a cidade de Gonaïves, terceira cidade mais populosa do
Haiti, no litoral norte do país, e duas semanas depois dominaram
Cap-Haïtien, segunda cidade mais importante. No dia 29 de fevereiro, os
rebeldes invadiram a capital Port-Au-Prince. Horas depois, o então
presidente Jean-Bertrand Aristide era derrubado, mas não necessariamente
pelas milícias. Uma vez no exílio, na África do Sul, Aristide assegurou
que nunca havia renunciado, acusando os Estados Unidos de terem-no
sequestrado e levado à força para fora do país. Os opositores ao
presidente deposto contestaram a versão, e responsabilizaram Aristide
pela crise econômica e a miséria que assolava o país, e o acusaram de
não conter a corrupção nas instituições públicas.
Logo, o país sofreu intervenção de
forças da ONU. cujo objetivo declarado era o restabelecimento da ordem
democrática, em missão que contou com o apoio de diversos países
latinoamericanos, incluindo o Brasil. Após a queda de Aristide, o
presidente Boniface Alexandre governou o país interinamente, até 2006,
quando foi eleito René Preval.
Bolívia, 2008
No segundo semestre daquele ano, uma
série de confrontos entre grupos apoiadores e opositores ao presidente
Evo Morales começam a acontecer em departamentos no leste do país, os
que compõem a chamada Meia Lua, principalmente nos quatro (Pando, Beni,
Santa Cruz e Tarija), onde a população indígena não é maioria – o que
revelou o preconceito étnico como uma das origens do enfrentamento.
Indígenas sepultam as vítimas do massacre de Pando, em 2008.
Durante cerca de vinte dias, os grupos
opositores, liderados por prefeitos da região da Meia Lua, organizaram
bloqueios de estradas, greves, ocupação de prédios estatais e até mesmo a
sabotagem de um dos principais gasodutos do país. Alguns dirigentes
opositores pediam a derrubada de Morales. Outros, principalmente os de
Santa Cruz, tentaram organizar um referendo para independência do
departamento ou de toda a região da Meia Lua.
No dia 11 de setembro, um grupo de dezesseis camponeses indígenas que
apoiavam o presidente foram assassinados, no departamento de Pando, o
que foi seguido por outros ataques racistas contra populações indígenas
nas regiões insurgentes. A oposição afirmou que presidente perdia o
controle do país, e tentou derrubá-lo.
Michelle Bachelet, então presidenta do
Chile e presidenta pró-tempore da Unasul, convocou um encontro
extraordinário dos presidentes. A entidade classificou os ataques como
uma tentativa de desestabilização da democracia boliviana, e anunciou
uma série de medidas em conjunto para apoiar o governo boliviano. Diante
da total falta de apoio dos demais países do continente, a oposição
boliviana decidiu baixar a guarda, desarmar os bloqueios, e até mesmo a
ideia de referendo separatista foi abandonada.
Honduras, 2009
Zelaya foi sequestrado em pijamas pelo exército hondurenho, que o abandonou num aeroporto da Costa Rica.
No dia 28 de junho, estava programado
um referendo para decidir sobre a viabilidade ou não de uma assembleia
legislativa para a reforma política do país. Durante a madrugada, um
grupo de militares, comandado pelo general Ramón Vásquez Velásquez,
invadiu a tiros a casa presidencial e sequestrou o presidente Manuel
Zelaya, levando-o de pijamas a um aeroporto, onde foi despachado de
avião até a Costa Rica.
Através de uma manobra legislativa, o
presidente do Congresso, Roberto Micheletti, conseguiu colocar a si
mesmo na presidência, e governou durante seis meses, até a realização de
eleições, em novembro, onde foi eleito o opositor Porfirio Lobo.
Manuel Zelaya tentou regressar a
Honduras em ao menos três ocasiões, e obteve sucesso na terceira vez,
onde conseguiu asilo na Embaixada do Brasil durante cinco meses, até ser
definitivamente condenado ao exílio.
Após o golpe, diferentes organizações
denunciaram aos organismos internacionais uma escalada de atentados
contra comunidades de bairros pobres, cidades da zona rura, movimentos
sociais e pequenos meios de comunicação alternativos. Atualmente, o país
é apontado pela ONU como o de maior índice de homicídios no mundo.
Equador, 2010
Rafael
Correa enfrentando gases lacrimogêneos atirados pela polícia
equatoriana. Logo viriam tiros, mas o presidente conseguiu sobreviver.
Setembro é mesmo um mês preferido para
golpes de Estado, principalmente na América do Sul. Neste caso, o
confronto aconteceu no dia 30, durante uma greve de policiais. O próprio
presidente Rafael Correa foi até um quartel principal da polícia
negociar com os grevistas, mas não obteve resultados.
Os líderes do movimento, insatisfeitos
com a negativa presidencial, realizaram rapidamente um ataque a
comitiva presidencial, com granadas de gás lacrimogênio. Membros da
guarda presidencial conseguiram salvar Correa, resguardando-o no
Hospital Militar, que ficava próximo ao quartel. O edifício foi cercado
pelos policiais grevistas, que chegaram a abrir fogo.
Manifestantes em favor de Correa foram
ao local do conflito, protestar contra os ataques, e também receberam
disparos. Após a intervenção do Exército, a situação foi controlada,
embora tenha terminado com as mortes de dois membros da Guarda
Presidencial, dois policiais grevistas e um estudante que estava entre
os manifestantes em favor do governo, além de 274 feridos.
Paraguai, 2012
Assim como Zelaya em Honduras, Lugo foi deposto meses antes de terminar seu mandato no Paraguai.
Em maio, a desocupação de uma chácara,
na localidade de Curuguaty, no sudeste do país, levou a um confronto
entre policiais e camponeses sem-terra, que terminou com um saldo de
dezessete mortes (onze camponeses e seis policiais). As críticas ao
manejo da situação por parte do governo levou a um pedido de julgamento
político do presidente Fernando Lugo, que finalmente aconteceu no dia 22
de junho, e terminou com 39 votos a favor (apenas 4 contra) de
declará-lo culpado por uma suposta crise institucional, cuja pena era a
sua destituição do cargo.
Lugo tentou se defender com o
argumento de que não havia nenhum tipo de manifestação popular contra o
governo pelas mortes em Curuguaty e que toda a pressão emanava dos
partidos opositores e da imprensa paraguaia, que defendia os interesses
dos latifundiários e do agronegócio, mas não conseguiu comover os
legisladores. Foi substituído no poder pelo seu vice, Federico Franco,
cujo partido PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico) já sinalizava uma
ruptura com o governo, desde a criação da esquerdista Frente Guasú, em
2010.
No ano seguinte, novas eleições
presidenciais levariam ao poder o empresário Horacio Cartes, um dos
articuladores da derrubada de Lugo – que foi eleito senador, no mesmo
pleito.
Daqui por diante
Fazendo um balanço dos seis golpes que
descrevemos acima, pode-se observar que quatro deles conseguiram a
destituição do presidente, embora um deles tenha sido revertido no dia
seguinte. Os outros obtiveram resultados políticos permanentes.
Outra característica importante dos
quatro golpes concluídos, sobretudo em comparação com os do século
anterior, é que geraram substitutos civis, ainda havendo evidente
participação militar em pelo menos dois deles.
Cinco desses golpes ocorreram contra
países da chamada Alba (Alternativa Bolivariana Para os Povos da
América), embora a Venezuela tenha sofrido seu golpe antes da entidade
existir – o Haiti, que é somente membro observador, também sofreu seu
golpe antes, e Honduras deixou de ser membro depois da queda do seu
presidente.
Lula
e Dilma venceram o câncer, ela antes e ele depois do seu mandato
presidencial. Agora, enfrentam uma oposição que já não titubeia ao falar
em impeachment. (Foto: Roberto Stuckert Filho/Presidência da República)
Além dos golpes de Estado, os
presidentes latinoamericanos também estão tendo que enfrentar neste
século uma macabra coincidência (ou talvez não seja mera coincidência,
segundo algumas teorias) com respeito a sua saúde – e, outra
coincidência, todos os casos envolvendo governantes de com alianças de
esquerda ou centro-esquerda. Hugo Chávez terminou falecendo em 2013,
vítima de um câncer, o mesmo mal que afetou Lula da Silva (2011), Dilma
Rousseff (2009), Cristina Kirchner (2011) e Fernando Lugo (2010). A
exceção dos brasileiros, os outros três enfrentaram a doença em pleno
exercício de seus mandatos. Também houve a morte de Néstor Kirchner, em
2010, após um inesperado ataque cardiorrespiratório, quando o
ex-presidente argentino exercia o cargo de secretário-geral da Unasul.
Em 2013, Cristina Kirchner passaria por um novo susto, sendo levada a
uma cirurgia de emergência, para retirada de um coágulo no cérebro.
Atualmente, três países vivem
situações simultâneas de instabilidade institucional. Na Argentina, a
oposição e o grupo de mídia Clarín tentam levar adiante a tese de que a
presidenta Cristina Kirchner está envolvida no suposto assassinato do
promotor Alberto Nisman, enquanto o país vive um ano eleitoral em que a
mandatária não poderá concorrer à reeleição, e com um governismo que
ainda não decidiu o candidato à sucessão. O venezuelano Nicolás Maduro,
herdeiro político de Chávez, enfrenta uma forte crise, com intensa
confrontação política nas ruas, desde janeiro de 2014, e no ano que vem
poderia ter que enfrentar um referendo sobre a continuidade de seu
mandato. Enquanto isso, Dilma Rousseff inicia o seu mandato com forte
pressão da oposição nas ruas, e a oposição declarada até de líderes de
partidos da base aliada, num cenário onde já não há cautela para o uso
da palavra impeachment.
Mas reitero, este tópico foi para
contestar a lembrança que tenho da ideia de que não há mais espaço para
golpes de Estado na América Latina, que deve ter nascido e morrido
naqueles Anos 90, em que se acreditava que a História havia acabado com a
queda do Muro de Berlim. Contudo, não estou apostando em que pode
acontecer um sétimo golpe, ou em quão breve isso poderia ocorrer, ainda
que haja os que não acreditam em bruxas mas sabem que elas existem – e
alguns ainda arriscam dizer de que país elas vêm.
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