Marcas da tortura
Ao lado de Dilma, o ex-militante da VAR-Palmares
Antonio Roberto Espinosa assistiu à tortura de colegas. Em audiência no
RJ, ele relembra os abusos na Vila Militar
por Marsílea Gombata
Do Rio de Janeiro
Marsílea Gombata
Ao contrário do que sempre costumava fazer, naquele dia Antonio
Roberto Espinosa não usou suas técnicas de "despistamento". Não trocou
duas vezes de transporte público ou deu voltas no mesmo quarteirão para
confundir quem o seguia. Acabou sendo observado pelos agentes da
ditadura desde o que chamavam de aparelho – casa alugada para alguns
militantes da luta armada morarem – até o local onde seria a reunião
sobre as novas diretrizes da VAR-Palmares.
Estava na casa há menos de um mês, mas a residência já vinha sendo monitorada pelos militares. No local, ele vivia
com o amigo Chael e a companheira Maria Auxiliadora. "Sempre que ia
para o aparelho, saía da zona sul para o Lins de Vasconcelos, na zona
norte, lançando mão dessas técnicas para
ter absoluta certeza de que
ninguém havia me seguido. Jamais passou pela nossa cabeça, no entanto,
que seríamos seguidos a partir do aparelho. Foi isso o que aconteceu
comigo e com a Chica (nome de guerra da Maria Auxiliadora)”, lembra
Espinosa.
O monitoramento vinha acontecendo havia poucos dias. Em 21 de
novembro de 1969, no entanto, eles conversavam na sala do aparelho
quando um policial à paisana bateu à porta por volta das 21h perguntando
sobre o aluguel da casa ao lado. Espinosa (cujo nome de guerra à época
era Beto) saiu ao portão sem a pistola com a qual andava. O sujeito o
mirava de cima abaixo e não demorou muitos minutos para que dissesse:
“Polícia!” ao pé de seu pescoço.
Teve inicio então um corpo a corpo com o agente e outros policiais
que cercavam a casa no número 1503 da Rua Aquidabã, no bairro da zona
norte do Rio. Horas depois, Espinosa foi detido e levado ao Dops, no
centro, antes de ser transferido para a então sede da Polícia do
Exército na Vila Militar, onde foi torturado ao lado do amigo Chael e da
companheira Dodora.
A história com Dodora começara em meio à militância, quando era
dirigente da VAR-Palmares, organização que surgiu em julho de 1969 da
aglutinação da VPR que ajudara a fundar em Osasco e da Colina (Comando
de Libertação Nacional), da qual ela fazia parte. Incumbido de uma
missão no Rio, Espinosa a conheceu na antiga Espaghetteria, na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana, onde a militante Chica iria fornecer
condições logísticas para que atuasse ali, como o aluguel de
apartamentos ou casas.
O suporte tinha a ver com a decisão do congresso da organização em
Teresópolis, na região serrana, que foi marcado por um racha com a saída
de Carlos Lamarca, e também pela escolha do Rio para o estabelecimento
do comando da VAR-Palmares, devido à facilidade em se alugar casas para
militantes se esconderem. Quando conheceu Dodora, lembra Espinosa, o
ideal era que tivesse sido isento, pois era um dos seis dirigentes da
nova organização, ao lado de Lamarca e Carlos Araújo (namorado de Dilma à
época, que depois se tornou seu marido). Mas foi dobrado pela paixão
que resistiu dentro dos limites da repressão ao grupo esquerdista.
Diferentemente da ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos
Marighella, a VAR-Palmares lutava pelo socialismo baseado no fim da
propriedade privada no Brasil. A ideia de libertação nacional, com
espaço para uma burguesia, era inconcebível para a organização que tinha
origem na classe operária de Osasco, responsável pela grande greve
geral de 16 de julho de 1968. “Osasco era a Petrogrado brasileira”,
lembra ao ressaltar que a VAR- Palmares via a luta de classes como o
único meio de dar fim ao sistema capitalista, no qual o Brasil já vinha
se solidificando.
Depois de ajudar a organizar a greve em Osasco, ele conta, restou
apenas pegar suas roupas da casa de sua minha mãe e fugir. Passou a
viver na clandestinidade, indo de um aparelho para outro e trocando de
nome para não ser pego durante as ações armadas. "Havia uma urgência,
uma aceleração dos fatos muito grande."
Pesadelo. Depois da prisão no que veio a ser o
quarto aparelho no Rio - após passar por Copacabana, Botafogo, Leblon
(onde viveu com Araújo e Dilma) –,Chael, Espinosa e Dodora foram levados
para o Dops. De lá, seguiram para a antiga sede da Polícia do Exército
da Vila Militar. A denúncia inicial havia surgido do próprio
proprietário, que estranhou o fato de haver um carro diferente a cada
semana com Espinosa.
O Departamento Estadual de Investigação Criminais (Deic) começou a
apurar. Mais tarde, passou a tarefa de vigiar o grupo para o Dops.
Quando foram levados para a Vila Militar, no primeiro dia de tortura,
eles tiveram a certeza de que vinham sendo monitorados: os torturadores
lhes mostraram fotos de Dodora indo do Lins para Niterói, tomando o
ônibus, na barca e até mesmo tendo aulas de direção em uma autoescola.
Espinosa lembra que no dia 21 de novembro de 1969, ele tinha um ponto
(encontro) no Leblon às 13h. Estava atrasado pois havia passado a noite
em uma reunião da VAR-Palmares. Antes de ir ao encontro, foi ao
aparelho avisar que não havia sido preso (apesar de ter passado a noite
fora, como subentendia-se pelo código de clandestinidade). Com pressa,
saiu correndo e esqueceu as técnicas para despistar quem o seguisse. Foi
para uma reunião da direção da VAR-Palmares às 16h, e à noite voltou
para o aparelho antes de sair para outro encontro do grupo. Teve a
sensação de que havia sido seguido. Não estava enganado.
"Eu preferia morrer a ser preso", conta sobre a tentativa de resistir
à prisão na Rua Aquidabã e uma pílula com quantidade letal de cianureto
de potássio que caiu do seu bolso quando foi algemado.
Após sessões individuais de tortura no Dops, os três militantes
foram novamente flagelados por oito agentes na Vila Militar durante
longas horas. Tentaram, inclusive, relata Espinosa, constranger Dodora
sexualmente. Xingaram-na e afirmaram que ela também saía com Chael.
“Queriam que eu e o Chael fizéssemos sexo com ela. Tentavam empurrar
minha boca em direção ao seio e à vagina dela. Fizeram o mesmo com
Chael, mas nos recusamos.”
Na segunda vez que se recusou a abusar Dodora, Chael foi agredido com
um golpe de fuzil no peito. Uma bolha arroxeada surgiu em seu peito,
desestabilizando-o ainda mais. O estudante de medicina, que há dias
vivia à base de água e alface para emagrecer, estava muito fraco. Não
resistiu à sessão de tortura. Morreu em 22 de novembro daquele ano.
Espinosa, depois do Dops do Rio e da sede da PE, foi transferido para
a Oban, em São Paulo. Na capital paulista, passou também pelo Dops
local, pelo presídio Tiradentes e pelo Carandiru. Voltou ao Rio algumas
vezes para ser interrogado e depor. Ao longo dos quatro anos em que
ficou preso, o medo, a incerteza e alguns clássicos (como O Capital)
o acompanharam. Quando saiu da cadeia, em 1974, decidiu se dedicar ao
jornalismo, ofício que exerceu por 11 anos na editora Abril e depois em
seu jornal Primeira Hora.
Já Dodora foi enviada ao Chile, em 1971, em troca da libertação do
então embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Poucos meses antes de sua
ida para o exílio, ela e Espinosa se viram em uma audiência na Segunda
Auditoria da Marinha, no Rio. Na ocasião, ele lembra, ela o pediu em
casamento "para que tivesse o direito de visitá-lo na cadeia enquanto
esposa". Foi a última vez em que se viram. Espinosa chegou a enviar uma
carta a Dodora no exílio, na qual pedia para que seguisse sua vida, pois
não sabia quando sairia do cárcere. Até hoje não tem certeza se a carta
chegou às mãos da companheira.
DOC. Dodora é personagem do documentário A Report on Torture
(veja o vídeo abaixo), de Haskell Wexler e Saul Landau, sobre as marcas
deixadas pela tortura militar em 70 militantes brasileiros que chegaram
ao Chile em janeiro de 1971. Além de compor o filme feito em Santiago
do Chile, a ex-companheira de Espinosa também ilustrou o discurso da
ex-parceira de militância Dilma Rousseff durante o congresso do PT de
2010: “Dodora, você está aqui no meu coração. Mas também aqui entre nós
todos.”
Dodora ficou em Santiago até o golpe de Augusto Pinochet, no segundo semestre de 1973. Depois foi para a Cidade do México e, em seguida, para Berlim, onde se matou em 1976. “O suicídio é uma coisa tão extrema. Principalmente em uma condição como a dela. Uma coisa é quando se está sendo torturado, preso. Mas na condição dela, que já estava na Alemanha...”, questionou Espinosa, hoje com 67 anos, ao concluir que os fantasmas de Dodora se juntaram a outros adquiridos durante o exílio. “Fomos derrotados militarmente, mas não moralmente. Pelo menos, o que passamos acabou sendo matéria prima para os movimentos pela anistia e pela redemocratização do Brasil.”
Fonte: Carta Capital
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