Luiz Eduardo Soares: “A sociedade terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial”
- Estados do Brasil:
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Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro
Viviane Tavares,
da EPSJV/Fiocruz
A desmilitarização da polícia, uma das bandeiras das jornadas de junho, sempre foi uma das principais de Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e antropólogo.
Nesta entrevista, o autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa e Cabeça de Porco,
explica o motivo de sua defesa, e aponta que este é apenas o primeiro
passo para o caminho árduo de construção de uma sociedade “efetivamente
democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos”. Luiz
Eduardo foi um dos principais elaboradores da PEC-51 – recentemente
apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ) – que visa, segundo
ele, reformar o modelo policial.
Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que são militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?
Luiz Eduardo Soares – Considero
a desmilitarização das polícias indispensável e a dos bombeiros
absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja suficiente.
Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas do que as
militares. Em primeiro lugar,
é preciso saber o que significa,
para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa
obrigá-la a copiar a organização do Exército, do qual ela é considerada
força reserva. O melhor formato organizacional é aquele que melhor
permite à instituição cumprir suas finalidades.
Finalidades
diferentes requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só
faria sentido reproduzir na polícia o formato do Exército se as
finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o
que diz a
Constituição. O objetivo do Exército é defender o território e a
soberania nacionais. Para cumprir essa função, tem de organizar-se para
realizar o pronto emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes
humanos e materiais com máxima celeridade e rigorosa observância das
ordens proferidas pelo comando. Precisa preparar-se para, no limite,
fazer a guerra. Pronto emprego exige centralização decisória, hierarquia
rígida e estrutura fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à
Polícia Militar. Seu papel é garantir os direitos dos cidadãos,
prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e
proporcional da força. Segurança é um bem público que deve ser provido
universalmente e com equidade pelos profissionais incumbidos de prestar
esse serviço à cidadania. Os confrontos armados são as únicas situações
em que alguma semelhança poderia haver com o Exército, ainda que mesmo
nesses casos as diferenças sejam marcantes. Mas eles correspondem a
menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. A imensa maioria dos
desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a
adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional
militar. Refiro-me ao policiamento comunitário, os nomes variam conforme
o país.
E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?
Essa
metodologia é inteiramente distinta do “pronto emprego” e implica o
seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens, fazendo
ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado maior da
corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a
profissional responsável por agir como gestora local da segurança
pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e
altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as
prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus
preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do
poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da
comunidade, o que se obtém respeitando-a. Para que haja esse tipo de
atuação, é imprescindível valorizar quem atua na ponta, dotando essa
pessoa dos meios de comunicação para convocar apoio e de autoridade para
decidir. Há sempre supervisão e interconexão, mas é preciso que haja,
sobretudo, autonomia para a criatividade e a adaptação plástica a
circunstâncias que tendem a ser específicas aos locais e aos momentos.
Qualquer profissional que atua na ponta, sensível à complexidade da
segurança pública, ao caráter multidimensional dos problemas e das
soluções, ou seja, qualquer policial que atue como gestor ou gestora
local da segurança pública, deve dialogar, evitar a judicialização
sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela prevenção e
buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos. Dependendo do
tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma abordagem
posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo iluminar e
limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e pelo poder
público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos são
inúmeros e cotidianos. Esse é o espírito do trabalho preventivo a
serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se
provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal,
descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar.
‘E o controle interno?’, alguém arguiria.
Engana-se quem supõe que
a adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja
necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs
mundiais de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o
sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de
sentir-se valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares
tendem a ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta
se dá contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo
interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e
negro. Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de
cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária e
radicalmente avessa ao racismo.
A militarização da
polícia justifica o seu comportamento? Uma vez desmilitarizada, qual
seria o passo seguinte, uma vez que a corporação será a mesma?
Como
disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma das
mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente. E
não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública será
somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à construção
de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o respeito
aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem. A
sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza,
hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que
defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do
Estado. As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das
drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o
que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e
pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as
torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número
inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de
encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais
prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação
seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais
superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas
cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas
propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande
relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia
nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.
Historicamente,
tivemos momentos em que a luta pela desmilitarização da polícia
aparece, como na promulgação da Constituição de 1988. Por que ela não
aconteceu?
Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a sociedade não se mobilizou, os lobbies
corporativistas das camadas superiores das polícias se mobilizaram, as
forças conservadoras se uniram e funcionou a chantagem dos antigos
líderes da ditadura, em declínio, mas ainda ativos. Nas jornadas de
junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade policial, que era
e continua a ser cotidiana nos territórios populares, chegou à classe
média e chocou segmentos da sociedade que antes ignoravam essa realidade
ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na continuidade dos
movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em sua capacidade de
pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não vai ser fácil.
Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela primeira vez, uma
temporada de frestas.
Existem diversos projetos em
tramitação para a desmilitarização da polícia: um proposto pelo senador
Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso Russomanno, e o mais recente
proposto pelo senador Lindbergh Farias, sob sua consultoria, a chamada
PEC-51. No que eles se diferenciam?
Há mais de 170
projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do artigo 144 da
Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma proposta de
emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a PEC-51. Nenhuma
incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e pesquisas,
ouvindo profissionais das polícias e da universidade, operadores da
justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando o denominador
comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses contrariados e
haverá resistências corporativistas, assim como posições ideológicas em
oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos movimentos, inclusive de
policiais, já indica seu potencial para construir um consenso mínimo e
sensibilizar a sociedade. 70% dos profissionais da segurança querem a
mudança, como pesquisa de que participei demonstrou, em 2010. Não
necessariamente querem a mesma mudança, mas o reconhecimento da falência
do modelo atual é, em si mesmo, significativo.
Você ajudou a formular a PEC –51. Como foi isso e quais são as expectativas?
A
PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o
próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do
trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho ostensivo
preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada polícia e
transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor atenda
suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam respeitadas.
Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares, na verdade
são quatro instituições ou universos sociais e profissionais distintos,
porque há a polícia militar dos oficiais e dos não oficiais (as praças),
a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por exemplo, os
agentes, detetives, inspetores, escrivães etc. A PEC propõe que o ciclo
de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua integralidade,
por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve investigar e
prevenir.
Propõe também a carreira única no interior de cada
instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A transição
para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a carreira única e
a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia ao longo de
muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos os
trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são militares.
O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas novas
polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é
diferente da de São Paulo, por exemplo. A transição seria negociada e
levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As
polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal,
ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado
poderia criar polícias sempre de ciclo completo, carreira única e civis
– municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de
pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei nº 9.099; uma polícia
estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente
aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e
uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra, por
exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela
PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da
combinação dos critérios referidos.
(Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio )
Fonte: Brasil de Fato
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