Kennedy
O mito e os fatos
No 50º aniversário do assassínio de Dallas o mundo
celebra a memória de um presidente que não houve.
por Gianni Carta
Cinquenta anos não parecem suficientes para separar os fatos dos
mitos a delinear a imagem de John Fitzgerald Kennedy. A vasta maioria
de biografias, artigos jornalísticos e filmes sobre o 35º presidente dos
Estados Unidos, assassinado aos 46 anos enquanto saudava a multidão de
uma limusine na Dealey Plaza em Dallas, Texas, em 22 de novembro de
1963, coloca o homem sobre um pedestal. Como retratos de nossos
antepassados associados às histórias narradas, por vezes com invenções
por aqueles que os conheceram, vários contemporâneos sentem ter
conhecido o presidente solar.
Além de jovem, era boa-pinta, bronzeado, esportivo, sedutor,
carismático, bem-humorado, casado com uma mulher atraente, pai de dois
filhos. E o herdeiro de uma dinastia comparada a monarquias europeias.
JFK, do Partido Democrata, encarnava o American Dream. Além
disso, como sua mulher, Jacqueline Kennedy, ícone da moda, JFK tinha
estilo. Possuía o status de um rock star naqueles lendários anos 1960 em
que emergia a cultura pop. Esse liberal prometia a líderes como Martin
Luther King o fim da segregação racial. Dizia que os EUA colocariam o
homem na Lua, sonho realizado em 1969. Quem não se lembra, ou assistiu
ao vídeo de uma sensual Marilyn Monroe a cantar para ele Happy Birthday, Mr. President no Madison Square Garden, em Nova York, em 1962?
A trágica morte,
como as de tantos ícones, congelou a imagem de John Kennedy. Teorias de
conspiração alimentam o debate sobre o presidente. Teria sido Lee
Harvey Oswald, o autor de três tiros, dos quais um ele teria errado, o
único assassino? Por que Jacob Rubenstein, ligado à máfia, teria matado
Oswald? O fato de JFK ser um enigma dificulta a eliminação das mais
absurdas entre as teorias.
Para manter o mito vivo contribuiu o fato de o exímio orador JFK ter
sido o primeiro presidente a usar com sabedoria a televisão. “My fellow
Americans, ask not what your country can do for you, ask what you can do
for your country”, disse JFK no seu discurso de inauguração como o
presidente mais jovem e o primeiro católico a assumir o cargo. Isso em
1961, quando irlandeses eram tidos como policiais corruptos ou
gângsteres, ser católico não era tão negativo, e ao menos ele era
cristão e
tinha fé. Tempos de plena Guerra Fria. JFK era a nova
esperança, como foi Barack Obama.
Enquanto isso, 40 mil biografias foram publicadas desde a morte de
JFK, e mais a avalanche de mais 10 mil novos livros sobre o
ex-presidente. Por que não contam como foi construído o mito?
Felizmente, nem todos os observadores são ovelhas a crer na mídia.
Postula Wilton Woods, ex-vice-editor da revista norte-americana Fortune,
que nos anos 1960 integrava um movimento de direitos humanos na
Universidade do Texas. “Cinco anos antes de JFK ser eleito, Martin
Luther King e outros já protestavam, faziam piquetes, eram presos – e
mortos – pelo direito de sentar em qualquer assento vazio de ônibus”,
lembra Woods em entrevista a CartaCapital.
“O crescente conflito sobre direitos civis poderia ter forçado JFK a
adotar um papel histórico, em vez de permanecer como espectador diante
do maior problema de seu tempo.” No entanto, Woods apoiava JFK, porque
os republicanos eram piores, continua, embora Kennedy não passe de “um
presidente moderado e medíocre”.
O cientista político Stan Draenos diz que “a breve Presidência de
Kennedy não lhe permitiu deixar um legado significativo”. “Mas serviu –
acrescenta – como catalisadora da reemergência de uma política
progressista devido ao seu papel de representante de uma nova geração, e
iniciador da détente da Guerra Fria na Europa após a crise de mísseis em Cuba em 1962.”
Sentado em um café parisiense, Michael Strauss, professor de Relações
Internacionais no Centre d’Études Diplomatiques et Stratégiques, diz:
“JFK soube se cercar dos melhores conselheiros da época e suas ideias
teriam impacto em futuros governos.” Strauss reconhece que em Cuba o
presidente dos EUA teve de ceder ao líder soviético Nikita Kruchev. E
assim retirou mísseis norte-americanos da Itália e da Turquia. De todo
modo, não foi, como pinta a história, um herói nessa contenda.
Além das derrapadas em termos de direitos civis e política
internacional, o que torna JFK um presidente medíocre? Quem era esse
homem? A resposta é dada por poucos. Talvez o mais importante deles seja
Seymour Hersh, o mais prestigiado jornalista investigativo dos EUA e
autor de The Dark Side of Camelot. Publicado em 1997 nos EUA, o livro foi relançado em 2013 na França sob o título La Face Cachée du Clan Kennedy: Une enquête explosive, la fin d’un mythe? (Archipoche, 519 págs., 8,65 euros).
Vencedor do Pulitzer Prize,
Hersh escreve: “As fraquezas de caráter desse homem o impediram em
parte de realizar seus deveres de presidente”. Hersh analisa o homem do
ponto de vista psicológico. “Tratava-se de um menino (e homem) mimado.”
As pessoas faziam o possível para agradá-lo, ou pelo menos para não
aborrecê-lo. E para atrair sua simpatia, coisa rara, salvo se ele
tivesse algum interesse pessoal nelas. Segundo Hersh, JFK aceitava
tranquilamente que as mulheres não podiam ser iguais aos homens e que os
negros fossem inferiores aos brancos. Era um homem de seu tempo, “não
quer dizer que fosse um racista”, embora “fosse limitado”, pondera
Hersh. Hersh deveria ler sobre os abolicionistas do século XIX. Eles não
eram nada limitados.
No entanto, Hersh é feliz ao mostrar que esse jovem mimado se sentia
acima das leis. Esse sentimento remonta ao adorado avô materno.
Tratava-se de um político clientelista, nepotista e corrupto de Boston,
cassado no fim do século XIX. O pai de JFK, Joe Sênior, fez fortuna no
contrabando e a vender álcool durante a proibição. Embaixador em Londres
de Franklin Roosevelt, Joe Sr. tentou se aproximar de Hitler. Os
bolcheviques, dizia, eram muito piores do que os nazistas. O sonho de
Joe Sr. era ser presidente, mas, quando seu filho Joseph Júnior foi
morto na Segunda Guerra Mundial, em 1944, mirou em John Kennedy, o
segundo filho, que padeceu de várias doenças na juventude e como adulto,
aflito por problemas crônicos nas costas. Aliás, o bronzeado da tez de
JFK era consequência de uma doença chamada Addison.
A construção do mito JFK começa com o pai. Ele transformou em best
seller a tese do filho na Universidade Harvard. Como? Comprando quase
todos os exemplares do livro. Transformou o filho em herói da Segunda
Guerra Mundial, sem ele ter sido. A fortuna de Joe Sr., estimada em 500
milhões de dólares na sua morte em 1969, foi crucial para que JFK
vencesse Nixon em 1960.
Frank Sinatra apresentou o mafioso Sam
Giancana a JFK. Uma amante comum a JFK e a Giancana, Judith Campbell
Exner, servia de intermediária entre os dois homens. Levava malas de
dinheiro do presidente ao mafioso. A máfia votou em massa em JFK e
forçou outros a fazer o mesmo no pleito contra Richard Nixon em 1960.
Sem a vitória em Chicago, JFK jamais seria presidente, visto que sua
vitória contra o adversário foi bastante apertada.
JFK dizia que,
se não tivesse uma relação sexual pelo menos de dois em dois dias,
seria vítima de enxaqueca. Na piscina da Casa Branca organizou várias
orgias, na maioria das vezes com prostitutas. Teve casos com belas
mulheres, como Marilyn Monroe e Angie Dickinson, e, como diz o
historiador John A. Barnes, o idílico casamento com Jacqueline Lee
Bouvier foi de fachada. JFK matinha o casamento porque sabia que as
imagens da jovem família tinham impacto na opinião pública. JFK não era
diferente de todos os Kennedy de sua geração e da anterior. Não passavam
de hipócritas em busca do poder.
Fonte: Carta Capital
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