Da cidadania prometida com as UPPs à cidadania vivida de fato
Muito
se tem discutido sobre a nova política de segurança adotada pelo Estado
do Rio de Janeiro. Intelectuais, Movimentos Sociais, ONGs, artistas,
entidades de Defesa dos Direitos Humanos, imprensa, enfim, toda a
sociedade tem algo a dizer ou pelo menos a pensar sobre. Não se pode
pensar a cidade hoje sem mencionar este novo elemento que vem compondo
há cinco anos (desde 2008) a cena carioca. De lá pra cá muita
propaganda, discursos entusiasmados, eleições garantidas por conta do
feito prodigioso de "conter" a violência ascendente no estado e
consequentemente o avanço do narcotráfico, causador de violentos
confrontos decorrentes da guerra pelos territórios (favelas) que serviam
como principal locus do comércio ilegal (segundo as autoridades, pela
facilidade de fuga devido à topografia própria dos morros) de
entorpecentes; embora alguns de nós saibamos que atribuir a violência da
cidade unicamente ao tráfico de drogas é uma redução da questão da
própria violência em si.
Temos uma quantidade absurda de mortes
em um trânsito extremamente violento, um número alarmante de vítimas da
violência doméstica, e o que é mais assustador: de 2001 a 2011,
estima-se que ocorreram mais de 50 mil feminicídios, o que equivale a
aproximadamente 5 mil mortes por ano, cerca de 472 por mês segundo o
Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mesmo com a vigência da
Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Sem contar os assassinatos de
homossexuais, cuja tabela pode ser visualizada em dados disponibilizados
pelo grupo Gay Atobá da Bahia, em seu site (http://www.ggb.org.br).
Enfim, a
discussão e a questão é um pouco maior e mais ampla quando
falamos de violência, pois não temos uma questão monolítica aqui.
O
tráfico de drogas, como negócio, mesmo que ilegal, tem como uma ação de
mercado ampliar, crescer, quanto mais terreno conquistado, mais postos
de venda e mais capilaridade na distribuição e comercialização do
produto. Assim, a principal meta a ser cumprida com as unidades de
pacificação era diminuir a presença e o domínio do tráfico armado nestas
áreas e a aquisição por meio violento de outros pontos. É fato que toda
a população sentiu-se aliviada em não conviver com tiroteios e
dificuldades cotidianas decorrentes dos conflitos e esperançosa de que
algo realmente iria mudar, a meta ia sendo executada.
Meta
subsequente e inerente ao processo, anunciavam as autoridades à
população, era a devolução do território aos moradores, pois segundo os
agentes do estado, os moradores, real alvo do denodo governamental, por
serem durante anos, por assim dizer, oprimidos pelos traficantes e
atendidos de forma precária na implementação das políticas públicas e na
prestação de serviços essenciais, devido à dificuldade de se trabalhar
em condições de extremo risco, veriam que a partir da implantação das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) poderiam ter de volta a sua
cidadania (antes não éramos então cidadãos?!, embora em tempos de
eleição nenhum político profissional ou candidatos a encontrassem
problemas em circular ou poluir a favela com seus posters ostensivos,
afirmando o discurso oficial de que e a consolidação da democracia e
cidadania máxima era o direito de votar)
A estas ações
estritamente militares somavam-se a promessa do saneamento (drenagem,
esgoto e abastecimento), limpeza urbana, regularização do sistema
elétrico domiciliar e da iluminação pública. Regularização do transporte
alternativo, que na favela é o principal, e organização do tráfego
local, além de ações sociais que diminuíssem os efeitos negativos
produzidos pela ausência/omissão do estado, com apoio de várias
instituições, articuladas pela UPP Social (Firjan,Sesi,Senai),
Secretaria de Estado Assistência Social e Diretos Humanos (SEASDH),
Ordem Pública - um verdadeiro exército (desculpem o trocadilho).
Trinta
e seis hasteamentos de bandeira depois, legalizações de
estabelecimentos comerciais a metro depois, e nenhum serviço
efetivamente funcionando como deveria, fazer uma análise maniqueísta
sobre a UPP é pensar de forma obtusa demais. Além de que é muito mais do
que isso. Estamos falando de algo determinante para iniciarmos essa
conversa. A que interesses estão vinculadas as implantações das Unidades
de Polícia Pacificadoras? Qual é o projeto de cidade que está desenhado
para o conjunto da população? Iniciam-se a partir daí uma série de
questionamentos e desconfianças acerca deste projeto de cidade.
O
primeiro sintoma de desconfiança veio com a implantação em áreas
consideradas importantes e circundantes aos locais de realização dos
Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo no próximo ano, o chamado
"Cinturão Olímpico" ou "Cinturão de Segurança"
A desconfiança
aumenta quando os serviços e as políticas públicas que deveriam ser
universalizadas, de forma a prover a cidadãos(ãs) moradores das favelas o
mesmo tratamento dado ao restante do conjunto da cidade, não vão se
consolidando e os que foram implantados em algumas delas como o
”Programa Água Para Todos”, da Cedae por exemplo, não é encerrado e nas
áreas onde atua, atua de forma precária e descontinuada, e algumas como o
Santa Marta, pagam por água e esgoto que não tem. Sempre a precariedade
e a descontinuidade, ferindo a dignidade desta população.
A
desconfiança se intensifica quando só a polícia de fato é a "política"
permanente na favela e em condições também precárias, em contêineres e
sem banheiro para as mulheres. Aí as questões vão se intensificando pois
o que se vai desenhando são estados policiais ou estados de polícia,
como diria o ativista negro americano Malcom X (já citado em meu
primeiro artigo aqui). Militarização da vida cotidiana, dirá Vera
Malaguti Batista, socióloga e professora de Criminologia da Universidade
Cândido Mendes. Essas declarações só se evidenciam dia após dia. Nessa
sanha mais de apaziguamento e pacificação de corpos e mentes pela
presença cotidiana da arma e da rudeza do trato ao cidadão, vamos
vislumbrando e lembrando Belchior e vendo tudo enquadrado ou pelo menos
uma tentativa voraz do enquadramento de tudo, haja visto as últimas
ações em relação às manifestações, das quais a favela também fez parte.
Muitos
abusos, não só da polícia, que é só uma peça desta engrenagem maior.
Mas o lixo não removido de forma adequada nos agride, a água que não
chega e deixa uma creche sem funcionar (no Borel a Creche Santa Mônica
funciona precariamente por falta de água desde agosto, segundo sua
diretora) em um universo onde há defasagem de creches, isso é vandalismo
de estado. Além disso, a Prefeitura precariza a relação com as creches
comunitárias, pois não dá o suficiente para a manutenção da alimentação
das crianças mensalmente, fazendo com que estas estejam constantemente
deficitárias, desabafa Olinto Pegoraro, ex-padre, professor de Ética da
Uerj e um dos maiores atuantes na organização comunitária no Borel na
década de 80, deixando como legado duas creches, um berçário e uma
infinidade de outras tantas ações que caberiam em um artigo.
Em conversa com referências de Manguinhos, por ocasião do lançamento do jornal Fala, Manguinhos,
uma destas referências, Alex Vargas fez uma excelente observação.
Segundo ele, rompida a cortina da insegurança, onde estão os serviços
anunciados e prometidos? Cadê a cidadania?
Passo com este artigo a
trazer uma série de situações que mostram de fato que algo está muito
equivocado neste projeto de cidade que penaliza o pobre com
desaparecimentos, abusos, remoções arbitrárias, decretos alucinados e
uma especulação imobiliária das mais agressivas. A partir do olhar da
favela, apresento a carta do Fórum Social de Manguinhos à sociedade e às
autoridades. "A nossa luta é todo dia Favela não é Mercadoria"
* Representante da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Licencianda em Ciências Sociais pela UERJ.
***
CARTA DO FÓRUM SOCIAL DE MANGUINHOS CONTRA AS VIOLÊNCIAS DE ESTADO
Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2013.
André de Lima Cardoso, 19 anos, Pavão-Pavãozinho – junho/2011
Thales Pereira Ribeiro D’Adrea, 15 anos, Fogueteiro – junho/2012
Jackson Lessa dos Santos, 20 anos, Morro do Fogueteiro – junho/2012
Mateus Oliveira Casé, 16 anos, Manguinhos – março/2013
Paulo Henrique dos Santos, 25 anos, Cidade de Deus – Março/2013
Aliélson Nogueira, 21 anos, Jacarezinho – abril/2013
Amarildo de Souza, 43 anos, Rocinha – julho/2013
Laércio Hilário da Luz Neto, 17 anos, Morro do Alemão – Agosto/2013
Israel Meneses, 23 anos, Jacarezinho – agosto/2013
Os
nomes citados são uma mostra dos assassinatos de homens, jovens em sua
maioria, cometidos pela Polícia Pacificadora do Estado do RJ. Na
madrugada da última quinta-feira, dia 17 de outubro, mais um jovem foi
vítima da truculência policial em Manguinhos. Paulo Roberto Pinho de
Menezes de 18 anos foi espancado até a morte. Na manhã seguinte, uma
jovem foi baleada por policiais que buscavam controlar, com armas de
fogo, moradores revoltados que atiravam pedras. A Polícia Militar do Rio
de Janeiro possui um histórico de assassinatos e mentiras neste
território, como no caso de Seu Paulo, homem trabalhador, conhecido dono
de padaria, assassinado em 2012 na Rua Leopoldo Bulhões por policiais,
que pelas redes televisivas ficou conhecido como mais um traficante.
O
Estado brasileiro viola direitos em Manguinhos cotidianamente, assim
como em outras favelas: policiais se dirigem às mulheres com palavras de
baixo calão quando as mesmas não se deixam influenciar por suas
cantadas; impedem a realização de festas, inclusive nas residências dos
moradores; proíbe que os jovens ouçam funk; determinam “toque de
recolher”, impedindo o ir e vir dos moradores garantido na Constituição
Federal; invadem casas sem mandado judicial.
No caso do
pedreiro Amarildo, assassinado na favela da Rocinha, ficou claro para a
sociedade que órgãos públicos de investigação tentaram culpar a vítima e
sua família, para esconder o crime cometido pelo Estado. Fato
semelhante começa a acontecer também no caso do jovem Paulo Roberto. O
Estado agiu como violador de direitos ao tentar justificar a ação da
polícia citando a “atitude suspeita dos jovens abordados”, o uso de
drogas e a passagens da vítima pela polícia. Não há justificativas para
agressão e homicídio policial que impossibilitam o acesso à justiça e
aos Direitos Humanos.
A sociedade começa a perceber que a
regra das ações policiais na favela é oprimir moradores jovens, negros
de baixa renda. O Estado capitalista faz dessa violência e violação de
direitos, uma prática institucional.
Contudo, a Polícia
Militar, não é a única violadora de direitos. A Saúde também tem sua
cota de responsabilidade, quando, por exemplo, Quando não apresenta um
laudo a partir de uma perícia clinica isenta, e reafirma com todas as
letras a versão policial, como no caso de Paulo Roberto. A UPA
Manguinhos que recebeu o jovem já morto após a agressão, não permitiu a
entrada da mãe do jovem na unidade de saúde, mas garantiu a livre
circulação dos policiais envolvidos no crime; além disso, a instituição
reiterou a versão dos policiais, de que o jovem teria apenas um “pequeno
corte na boca fruto da queda”, versão que desmentida durante o velório
do jovem, que tinha pelo menos três hematomas visíveis no rosto além do
citado “pequeno corte”.
Nós, favelados, vivemos em um
Estado de Exceção há séculos, e essa condição está se alastrando para o
asfalto. Podemos comprovar isso através das prisões arbitrárias
realizadas contra mais de 180 ativistas políticos em manifestações por
melhores condições de trabalho no setor educação, devido ao retorno de
Lei de Segurança Nacional, utilizada na ditadura. O mesmo Estado que
mata na favela, prende arbitrariamente no asfalto. Enquanto Paulo
Roberto foi assassinado, outro Paulo foi vítima do Estado Brasileiro na
mesma semana: Paulo Roberto de Abreu Bruno, professor e pesquisador da
Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz – instituição
localizada no território de Manguinhos – preso de forma arbitrária, ser
ter cometido nenhum crime, o que caracteriza também uma ação política
da Polícia Militar. Enquanto realizava registros fotográficos para fins
de pesquisa durante a manifestação dos professores, no último dia 15 de
outubro, Paulo Bruno foi acusado de formação de quadrilha.
Vemos
assim, que os trabalhadores estão sendo oprimidos diariamente: Na
favela as pessoas são mortas, no asfalto elas são presas ou levam bala
de borracha. Mas, independente da forma de repressão/opressão, não
podemos nos manter calados diante a tanta violência Institucional, já
que é papel do Estado garantir direitos. Dessa forma reivindicamos que
sejam realizadas dez ações concretas pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), a Assembleia Legislativa do RJ (ALERJ), o Ministério Público
Estadual (MP), a Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e demais
instituições e organizações:
1. Investigação e
divulgação da causa da morte dos jovens Paulo Roberto Pinho de Menezes e
Mateus Oliveira Casé, e do tiro recebido pela jovem Juliane Karoline
Cavalcante – ALERJ, OAB, MPE;
2. Debate amplamente
divulgado para os moradores de Manguinhos sobre o papel da Polícia
Militar, incluindo as Unidades de Polícia Pacificadoras, frente à
continuidade dos assassinatos e a violação de direitos nas favelas –
FIOCRUZ;
3. Exigimos debate com a Secretaria de Estado
de Habitação, Secretaria Municipal de Habitação e Empresa DE Obras
Públicas do Estado do Rio de Janeiro –EMOP - sobre o a péssima qualidade
das obras do PAC-Favelas, a política de habitação vigente, suas
consequências e os processos de remoções/realocações/indenizações;
4.
Que as políticas públicas em Manguinhos não sejam mediadas pela
Polícia Militar. Na prática, as prometidas “parcerias entre os governos –
municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade
civil”, anunciadas pela UPP, não tem ocorrido. Exigimos reuniões
permanentes entre moradores e as diferentes esferas de governo, com
ampla divulgação pelas favelas de Manguinhos, para construção de
políticas públicas. Defendemos que essas reuniões públicas, divulgadas
em diferentes meios de comunicação comunitária, dialogadas com
movimentos sociais e NÃO sejam determinadas pela UPP;
5.
Debate e proposição de ações pelo setor saúde, incluindo a Fiocruz,
frente às distorções e impactos do Estado de exceção: autos de
resistência; ausência de perícias, notificações e laudos feitos pelo SUS
em casos de violência; os efeitos do uso de gás lacrimogênio;
6.
Revisão de leis de exceção, tais como a Lei de Segurança Nacional
(7.170/83), lei anti-máscara (6.528/13), lei de formação de quadrilha
(9.034/95);
7. Maior transparência sobre a gestão de
projetos para Jovens em áreas pacificadas, especificamente o programa
Caminho Melhor Jovem, que tem como territórios pilotos Manguinhos e
Cidade de Deus – ALERJ, MPE;
8. Exigimos que o setor
saúde, incluindo a Fiocruz, realize diagnósticos participativos sobre as
diversas formas de violências em Manguinhos e sua relação com os
determinantes sociais da saúde (habitação, saneamento, educação, etc.);
9.
Fim da ilegalidade: na revista de mulheres por policiais homens;
na falta da identificação do policial; na invasão de casas sem mandado
policial – ALERJ, MPE;
10. Responsabilizar o governo Estadual pelas mortes ocorridas nos territórios ditos pacificados – ALERJ, MPE;
BASTA AO EXTERMÍNIO DO POVO NEGRO DE MANGUINHOSE A TODAS VIOLÊNCIAS DESTE ESTADODE EXCEÇÃ
Fonte: http://www.jb.com.br
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