Impostometro

domingo, 17 de novembro de 2013

UPPs

Da cidadania prometida com as UPPs à cidadania vivida de fato

Mônica Francisco*
Muito se tem discutido sobre a nova política de segurança adotada pelo Estado do Rio de Janeiro. Intelectuais, Movimentos Sociais, ONGs, artistas, entidades de Defesa dos Direitos Humanos, imprensa, enfim, toda a sociedade tem algo a dizer ou pelo menos a pensar sobre. Não se pode pensar a cidade hoje sem mencionar este novo elemento que vem compondo há cinco anos (desde 2008) a cena carioca. De lá pra cá muita propaganda, discursos entusiasmados, eleições garantidas por conta do feito prodigioso de "conter" a violência ascendente no estado e consequentemente o avanço do narcotráfico, causador de violentos confrontos decorrentes da guerra pelos territórios (favelas) que serviam como principal locus do comércio ilegal (segundo as autoridades, pela facilidade de fuga devido à topografia própria dos morros) de entorpecentes; embora alguns de nós saibamos que atribuir a violência da cidade unicamente ao tráfico de drogas é uma redução da questão da própria violência em si. 
Temos uma quantidade absurda de mortes em um trânsito extremamente violento, um número alarmante de vítimas da  violência doméstica, e o que é mais assustador: de 2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil feminicídios, o que equivale a aproximadamente 5 mil mortes por ano, cerca de 472 por mês segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Sem contar os assassinatos de homossexuais, cuja tabela pode ser visualizada em dados disponibilizados pelo grupo Gay Atobá da Bahia, em seu site (http://www.ggb.org.br). Enfim, a
discussão e a questão é um pouco maior e mais ampla quando falamos de violência, pois não temos uma questão monolítica aqui.
O tráfico de drogas, como negócio, mesmo que ilegal, tem como uma ação de mercado ampliar, crescer, quanto mais terreno conquistado, mais postos de venda e mais capilaridade na distribuição e comercialização do produto. Assim, a principal meta a ser cumprida com as unidades de pacificação era diminuir a presença e o domínio do tráfico armado nestas áreas e a aquisição por meio violento de outros pontos. É fato que toda a população sentiu-se aliviada em não conviver com tiroteios e dificuldades cotidianas decorrentes dos conflitos e esperançosa de que algo realmente iria mudar, a meta ia sendo executada. 
Meta subsequente e inerente ao processo, anunciavam as autoridades à população, era a devolução do território aos moradores, pois segundo os agentes do estado, os moradores, real alvo do denodo governamental, por serem durante anos, por assim dizer, oprimidos pelos traficantes e atendidos de forma precária na implementação das políticas públicas e na prestação de serviços essenciais, devido à dificuldade de se trabalhar em condições de extremo risco, veriam que a partir da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) poderiam ter de volta a sua cidadania (antes não éramos então cidadãos?!, embora em tempos de eleição nenhum político profissional ou candidatos a encontrassem problemas em circular ou poluir a favela com seus posters ostensivos, afirmando o discurso oficial de que e a consolidação da democracia e cidadania máxima era o direito de votar) 
A estas ações estritamente militares somavam-se a promessa do saneamento (drenagem, esgoto e abastecimento), limpeza urbana, regularização do sistema elétrico domiciliar e da iluminação pública. Regularização do transporte alternativo, que na favela é o principal, e organização do tráfego local, além de ações sociais que diminuíssem os efeitos negativos produzidos pela ausência/omissão do estado, com apoio de várias instituições, articuladas pela UPP Social (Firjan,Sesi,Senai), Secretaria de Estado Assistência Social e Diretos Humanos (SEASDH), Ordem Pública - um verdadeiro exército (desculpem o trocadilho). 
Trinta e seis hasteamentos de bandeira depois, legalizações de estabelecimentos comerciais a metro depois, e nenhum serviço efetivamente funcionando como deveria, fazer uma análise maniqueísta sobre a UPP é pensar de forma obtusa demais. Além de que é muito mais do que isso. Estamos falando de algo determinante para iniciarmos essa conversa. A que interesses estão vinculadas as implantações das Unidades de Polícia Pacificadoras? Qual é o projeto de cidade que está desenhado para o conjunto da população? Iniciam-se a partir daí uma série de questionamentos e desconfianças acerca deste projeto de cidade.
O primeiro sintoma de desconfiança veio com a implantação em áreas consideradas importantes e circundantes aos locais de realização dos Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo no próximo ano, o chamado "Cinturão Olímpico" ou "Cinturão de Segurança" 
A desconfiança aumenta quando os serviços e as políticas públicas que deveriam ser universalizadas, de forma a prover a cidadãos(ãs) moradores das favelas o mesmo tratamento dado ao restante do conjunto da cidade, não vão se consolidando e os que foram implantados em algumas delas como o ”Programa Água Para Todos”, da Cedae por exemplo, não é encerrado e nas áreas onde atua, atua de forma precária e descontinuada, e algumas como o Santa Marta, pagam por água e esgoto que não tem. Sempre a precariedade e a descontinuidade, ferindo a dignidade desta população. 
A desconfiança se intensifica quando só a polícia de fato é a "política" permanente na favela e em condições também precárias, em contêineres e sem banheiro para as mulheres. Aí as questões vão se intensificando pois o que se vai desenhando são estados policiais ou estados de polícia, como diria o ativista negro americano Malcom X (já citado em meu primeiro artigo aqui). Militarização da vida cotidiana, dirá Vera Malaguti Batista, socióloga e professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes. Essas declarações só se evidenciam dia após dia. Nessa sanha mais de apaziguamento e pacificação de corpos e mentes pela presença cotidiana da arma e da rudeza do trato ao cidadão, vamos vislumbrando e lembrando  Belchior e vendo tudo enquadrado ou pelo menos uma tentativa voraz do enquadramento de tudo, haja visto as últimas ações em relação às manifestações, das quais a favela também fez parte. 
Muitos abusos, não só da polícia, que é só uma peça desta engrenagem maior. Mas o lixo não removido de forma adequada nos agride, a água que não chega e deixa uma creche sem funcionar (no Borel a Creche Santa Mônica funciona precariamente por falta de água desde agosto, segundo sua diretora) em um universo onde há defasagem de creches, isso é vandalismo de estado. Além disso, a Prefeitura precariza a relação com as creches comunitárias, pois não dá o suficiente para a manutenção da alimentação das crianças mensalmente, fazendo com que estas estejam constantemente deficitárias, desabafa Olinto Pegoraro, ex-padre, professor de Ética da Uerj e um dos maiores atuantes na organização comunitária no Borel na década de 80, deixando como legado duas creches, um berçário e uma infinidade de outras tantas ações que caberiam em um artigo. 
Em conversa com referências de Manguinhos, por ocasião do lançamento do jornal Fala, Manguinhos, uma destas referências, Alex Vargas fez uma excelente observação. Segundo ele, rompida a cortina da insegurança, onde estão os serviços anunciados e prometidos? Cadê a cidadania? 
Passo com este artigo a trazer uma série de situações que mostram de fato que algo está muito equivocado neste projeto de cidade que penaliza o pobre com desaparecimentos, abusos, remoções arbitrárias, decretos alucinados e uma especulação imobiliária das mais agressivas. A partir do olhar da favela, apresento a carta do Fórum Social de Manguinhos à sociedade e às autoridades. "A nossa luta é todo dia Favela não  é Mercadoria" 
* Representante da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Licencianda em Ciências Sociais pela UERJ.
                                                                          ***  
CARTA DO FÓRUM SOCIAL DE MANGUINHOS CONTRA AS VIOLÊNCIAS DE ESTADO
Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2013.
André de Lima Cardoso, 19 anos, Pavão-Pavãozinho – junho/2011
Thales Pereira Ribeiro D’Adrea, 15 anos, Fogueteiro – junho/2012
Jackson Lessa dos Santos, 20 anos, Morro do Fogueteiro – junho/2012
Mateus Oliveira Casé, 16 anos, Manguinhos – março/2013
Paulo Henrique dos Santos, 25 anos, Cidade de Deus – Março/2013
Aliélson Nogueira, 21 anos, Jacarezinho – abril/2013
Amarildo de Souza, 43 anos, Rocinha – julho/2013
Laércio Hilário da Luz Neto, 17 anos, Morro do Alemão – Agosto/2013
Israel Meneses, 23 anos, Jacarezinho – agosto/2013
Os nomes citados são uma mostra dos assassinatos de homens, jovens em sua maioria, cometidos pela Polícia Pacificadora do Estado do RJ. Na madrugada da última quinta-feira, dia 17 de outubro, mais um jovem foi vítima da truculência policial em Manguinhos. Paulo Roberto Pinho de Menezes de 18 anos foi espancado até a morte. Na manhã seguinte, uma jovem foi baleada por policiais que buscavam controlar, com armas de fogo, moradores revoltados que atiravam pedras. A Polícia Militar do Rio de Janeiro possui um histórico de assassinatos e mentiras neste território, como no caso de Seu Paulo, homem trabalhador, conhecido dono de padaria, assassinado em 2012 na Rua Leopoldo Bulhões por policiais, que pelas redes televisivas ficou conhecido como mais um traficante.
O Estado brasileiro viola direitos em Manguinhos cotidianamente, assim como em outras favelas: policiais se dirigem às mulheres com palavras de baixo calão quando as mesmas não se deixam influenciar por suas cantadas; impedem a realização de festas, inclusive nas residências dos moradores; proíbe que os jovens ouçam funk; determinam “toque de recolher”, impedindo o ir e vir dos moradores  garantido na Constituição Federal; invadem casas sem mandado judicial.  
No caso do pedreiro Amarildo, assassinado na favela da Rocinha, ficou claro para a sociedade que órgãos públicos de investigação tentaram culpar a vítima e sua família, para esconder o crime cometido pelo Estado. Fato semelhante começa a acontecer também no caso do jovem Paulo Roberto. O Estado agiu como violador de direitos ao tentar justificar a ação da polícia citando a “atitude suspeita dos jovens abordados”, o uso de drogas e a passagens da vítima pela polícia. Não há justificativas para agressão e homicídio policial que impossibilitam o acesso à justiça e aos Direitos Humanos.
A sociedade começa a perceber que a regra das ações policiais na favela é oprimir moradores jovens, negros de baixa renda. O Estado capitalista faz dessa violência e violação de direitos, uma prática institucional.
Contudo, a Polícia Militar, não é a única violadora de direitos. A Saúde também tem sua cota de responsabilidade, quando, por exemplo, Quando não apresenta um laudo a partir de uma perícia clinica isenta, e reafirma com todas as letras a versão policial, como no caso de Paulo Roberto. A UPA Manguinhos que recebeu o jovem já morto após a agressão, não permitiu a entrada da mãe do jovem na unidade de saúde, mas garantiu a livre circulação dos policiais envolvidos no crime; além disso, a instituição reiterou a versão dos policiais, de que o jovem teria apenas um “pequeno corte na boca fruto da queda”, versão que desmentida durante o velório do jovem, que tinha pelo menos três hematomas visíveis no rosto além do citado “pequeno corte”.    
Nós, favelados, vivemos em um Estado de Exceção há séculos, e essa condição está se alastrando para o asfalto. Podemos comprovar isso através das prisões arbitrárias realizadas contra mais de 180 ativistas políticos em manifestações por melhores condições de trabalho no setor educação, devido ao retorno de Lei de Segurança Nacional, utilizada na ditadura. O mesmo Estado que mata na favela, prende arbitrariamente no asfalto. Enquanto Paulo Roberto foi assassinado, outro Paulo foi vítima do Estado Brasileiro na mesma semana: Paulo Roberto de Abreu Bruno, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz – instituição localizada no território de Manguinhos – preso de forma arbitrária, ser ter cometido nenhum crime, o que caracteriza também uma ação política da Polícia Militar. Enquanto realizava registros fotográficos para fins de pesquisa durante a manifestação dos professores, no último dia 15 de outubro, Paulo Bruno foi acusado de formação de quadrilha.
Vemos assim, que os trabalhadores estão sendo oprimidos diariamente: Na favela as pessoas são mortas, no asfalto elas são presas ou levam bala de borracha. Mas, independente da forma de repressão/opressão, não podemos nos manter calados diante a tanta violência Institucional, já que é papel do Estado garantir direitos. Dessa forma reivindicamos que sejam realizadas dez ações concretas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Assembleia Legislativa do RJ (ALERJ), o Ministério Público Estadual (MP), a Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e demais instituições e organizações:
1.      Investigação e divulgação da causa da morte dos jovens Paulo Roberto Pinho de Menezes e Mateus Oliveira Casé, e do tiro recebido pela jovem Juliane Karoline Cavalcante – ALERJ, OAB, MPE;
2.      Debate amplamente divulgado para os moradores de Manguinhos sobre o papel da Polícia Militar, incluindo as Unidades de Polícia Pacificadoras, frente à continuidade dos assassinatos e a violação de direitos nas favelas – FIOCRUZ;
3.      Exigimos debate com a Secretaria de Estado de Habitação, Secretaria Municipal de Habitação e Empresa DE Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro –EMOP - sobre o a péssima qualidade das obras do PAC-Favelas, a política de habitação vigente, suas consequências e os processos de remoções/realocações/indenizações;
4.      Que as políticas públicas em Manguinhos não sejam mediadas pela Polícia Militar. Na prática, as prometidas “parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil”, anunciadas pela UPP, não tem ocorrido. Exigimos reuniões permanentes entre moradores e as diferentes esferas de governo, com ampla divulgação pelas favelas de Manguinhos, para construção de políticas públicas. Defendemos que essas reuniões públicas, divulgadas em diferentes meios de comunicação comunitária, dialogadas com movimentos sociais e NÃO sejam determinadas pela UPP;
5.      Debate e proposição de ações pelo setor saúde, incluindo a Fiocruz, frente às distorções e impactos do Estado de exceção: autos de resistência; ausência de perícias, notificações e laudos feitos pelo SUS em casos de violência; os efeitos do uso de gás lacrimogênio;
6.      Revisão de leis de exceção, tais como a Lei de Segurança Nacional (7.170/83), lei anti-máscara (6.528/13), lei de formação de quadrilha (9.034/95);
7.      Maior transparência sobre a gestão de projetos para Jovens em áreas pacificadas, especificamente o programa Caminho Melhor Jovem, que tem como territórios pilotos Manguinhos e Cidade de Deus – ALERJ, MPE;
8.      Exigimos que o setor saúde, incluindo a Fiocruz, realize diagnósticos participativos sobre as diversas formas de violências em Manguinhos e sua relação com os determinantes sociais da saúde (habitação, saneamento, educação, etc.);
9.      Fim da ilegalidade: na revista de mulheres por policiais homens; na falta da identificação do policial; na invasão de casas sem mandado policial – ALERJ, MPE;
10.  Responsabilizar o governo Estadual pelas mortes ocorridas nos territórios ditos pacificados – ALERJ, MPE;
BASTA AO EXTERMÍNIO DO POVO NEGRO DE MANGUINHOS
E A TODAS VIOLÊNCIAS DESTE ESTADODE EXCEÇÃ

Fonte: http://www.jb.com.br

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