Nova Iorque: um novo prefeito para a capital do capital
Única noticia positiva neste mar de tristezas onde um camarada
do passado se elege para seguir a política do capital são dois
candidatos, Anthony Gronowicz, do Partido Verde, professor
universitário, boa pessoa, vagamente de esquerda; e Daniel Fein, do Socialist Worker, montador mecânico em uma fábrica de eletrônicos, único candidato camarada a
sério, com um programa socialista para os trabalhadores. Juntos tiveram
quase 6 mil votos. Não é muito mas, já que ninguém registrou o feito,
eu o faço
Por Gregório Carboni Maestri
Enrique
é nova-iorquino de 34 anos, puro e duro, viajado, filho de
trabalhadores colombianos. É de esquerda, participou no movimento Occupy.
Conhece a sub-cultura metropolitana nova-iorquina e, como muitos de sua
geração, lembra com nostalgia a Nova Iorque pré-1995. Sim, a cidade era
suja, perigosa, devido à introdução do crack dos anos pós-Vietnam.
As conseqüências sociais do capitalismo mutante dos últimos anos 70 e a
crise social produzida pelos anos Reagan despejavam na cidade
desemprego, miséria, prostitutas.
Mas, ao mesmo tempo, havia
oposição, um resto de oposição. Uma oposiçãozinha política, social,
cultural. Eram os anos do refluxo. Mas como o beira-mar de Rockaways, em
Nova Iorque, em maré baixa, o leito da praia era fértil, a areia
repleta da espuma salgada, de conchas de contracultura que sobressaiam
na superfície. Este refluxo foi mais complexo em Nova Iorque que em
outras cidades estadunidenses.
Nova Iorque é cidade de
trabalhadores, muitos dos quais públicos, organizados em sindicatos, com
uma longa historia de lutas, não raro duramente reprimidas. Uma
historia que vai além da caricatura de cidade de yuppies da finança. Para que se tenha uma ideia, «The Chief», um
jornal muito lido e vendido em todas as bancas de Nova Iorque, se ocupa
exclusivamente de questões ligadas aos trabalhadores públicos, desde
1897!
Anos Oitenta, de cultura urbana underground, popular, negra, resíduo de movimento afro-estadunidense recém-derrotado. No Bronx, em Harlem, no Brooklyn,
a nova fotografia imortalizava as ruas
e os “cortiços” que invadiam os
lindos edifícios da antiga burguesia oitocentista. Nova musica pop, r'n'b, rap, Dj's. Jovens artistas pululavam no bairro de SoHo, ocupando grandes espaços históricos da primeira indústria.
Os
micro-editores publicavam uma nova geração de escritores descendentes
de imigrantes latinos, que naqueles anos lutavam por mais direitos. As
micro-galerias expunham writers de rua, a arte dos “últimos”, dos gays, do movimento Queer.
Em 1985, concluía-se a experiência da revista «Oppositions» e do Institute for Architecture and Urban Studies, que revolucionara durante a década de '70 a arquitetura estadunidense. Havia um bom cinema nova-iorquino: Cruising, Gloria, Permanent Vacation, Raging Bull e, até mesmo, acreditem, televisão que ainda conseguia expressar a realidade urbana de Nova Iorque: “The Bronx Zoo”, “Equalizer”, “Fame”, “Cagney & Lacey”.
Minha amiga prostituta
A
distribuição étnica e social no território, sobretudo de Manhattan,
resultara de um século intenso de industrialização capitalista, de uma
classe trabalhadora que permeou cada poro da ilha. Etnias e
nacionalidades, pobres e ricos, viviam o conflito urbano em um espaço
muito vivo. No distrito financeiro, conta Enrique, até meados de '90, à
noite, era território das gangs, off limits para os youpies engravatados.
Um pouco distante, nos bairros históricos da ex-Nova Amsterdam, aposentados brancos viviam perto de negros
e ricos perto de classe media. Por que? Porque, em Nova Iorque, muitos
dos alugueis eram tabelados e os preços das casas relativamente baixos.
A dona da lavanderia onde eu costumo lavar a roupa em Brooklyn
contava como até aquela época, para fechar a loja, pagava para jovens
traficantes protegê-la, contra outros traficantes, e no metrô, cruzava
cada noite com prostitutas, já suas conhecidas, com quem fizera amizade.
Neste contexto, nos primeiros anos 80, nessa Nova Iorque complexa, um
jovem estudante cabeludo da Columbia University, Bill De
Blasio, nascido no seio de família de classe media baixa, de origem
italiana e alemã, com mãe solteira e pai ex-veterano, alcoólatra,
suicida. Bill, de esquerda, vai de viajem de estudos para a
União Soviética! Casa-se com uma ativista do movimento negro, Chirlane
McCray, com a qual celebra lua-de-mel em ... Cuba, do bloqueio. Vai à
Nicarágua, durante a Revolução, em solidariedade ao sandinismo, que
apóia ativamente. Mas sua fase juvenil radical termina ai, com o final
dos 80. Então, entra na carreira política institucional, que nunca
abandonará, tornando-se parte da burocrata no Partido Democrático, que,
desde 1970, sempre governou a Big Apple.
O fim do ciclo do crack
Com
os primeiros anos 90, a administração democrática consegue gradual
diminuição da criminalidade, que baixa desde então, chegando aos dias de
hoje a um nível pré-1965. Os especialistas dizem que o fenômeno está
ligado ao fim do “ciclo” do crack; à legalização da interrupção
de gravidez gratuita; a certo crescimento de programas sociais; ao fim
da fase recessiva aguda e ao aumento maciço do policiamento repressivo
nos bairros pobres.
Mas, em princípios de 1990, a situação, era ainda, sobretudo esteticamente, intolerável para a elite da
capital do Império. Demasiados negros, demasiados latinos, demasiados
chineses, demasiados pobres e demasiadas putas. Todos eles,
demasiadamente perto.
A situação muda radicalmente depois de
1995. Como? – Chegou o prefeito-xerife! O Giuliani! – exclama
desesperado Enrique, contando como, com ele, a cidade será diferente. E o
que Giuliani fez, por primeiro, para “limpar” a cidade? Simples:
liberdade de mercado para os especuladores. Liberalizou os alugueis e os
preços das casas. Liberou totalmente a construção de novos edifícios.
Em poucos meses, os preços dispararam, expulsando naturalmente a classe media, branca e negra, e os pobres, sobretudo negros e latinos, para as periferias distantes.
O
policiamento que os democratas começaram tornou-se permanente, total,
com a possibilidade da abordagem, da revista e da prisão de qualquer
pessoa, por qualquer motivo. Com a polícia com o direito de entrar pelas
janelas nos apartamentos. Os objetos das abordagens eram, não é
necessário dizer, quase sempre negros e latinos, ou seja, pobres.
A Era do Capital
Muita
repressão e capitalismo depois, em menos de uma década, Nova Iorque
transformou-se em uma espécie de paraíso burguês. Uma “jóia” de limpeza,
de segurança, de ordem e de progresso. Não há um grafite selvagem ou um
papel no chão. A taxa de criminalidade é a mais baixa do país, com
menos de dois homicídios e de um roubo de bens ou de carros por dia,
para uma população de quase dez milhões de habitantes. E os homicídios e
roubos que ocorrem, acontecem sobretudo longe dos ricos, nas
periferias, entre brancos, negros e pardos pobres.
Os anos 2000
celebravam a gloria do liberalismo – a cidade torna-se caríssima, muito
chique. Uma fase celebrada pelo esnobismo de mau gosto da série Sex and the City. As classes dominantes estavam felizes. No bairro SoHo, dominavam então as grandes galerias para os ricos colecionadores. Finalmente, o centro de Manhattan pertencia a uma só classe.
A cidade dos desejos
Seu nome não é inventado, nem um trocadilho. Abbondanza
é uma suíça de língua italiana que vive há décadas em Nova Iorque.
Vende e aluga apartamentos de luxo para milionários, alguns deles
brasileiros. Possui um enorme apartamento, nos últimos andares de um
arranha-céu, com vista deslumbrante sobre o Central Park, em Columbus Circle, um dos pontos mais exclusivos da cidade.
Conta com misto de desgosto e satisfação como, até a chegada do Santo
Giuliani, ao voltar com seu marido para casa, à noite, naquele mesmo
bairro, cruzavam por uma multidão de putas que, depois de anos, acabaram
conhecendo, a todas, pelo nome. Pouco depois de 1995, ano em que inicia
a era Giuliani, elas sumiram. – Aonde foram parar? – pergunta
Abbondanza. – Ninguém sabe! – ela mesma responde.
Oito anos mais
tarde, Giuliani foi seguido pelo líder dos capitalistas nova-iorquinos,
Bloomberg, que continuou a obra do prefeito-xerife. Em três mandatos, um
terço do território de Nova Iorque foi cedido à especulação. Não se
construiu uma moradia social e o que se fez de público, foi feito nos
bairros ricos, para valorizá-los.
Em média, hoje, um trabalhador
paga, por um quarto, em apartamento compartilhado, no mínimo mil
dólares! E o discurso dominante das classes dominantes é: “A cidade
nunca esteve tão bonita! Não há um criminoso nas ruas! Não se vê uma
puta. A miséria desapareceu! A vida é uma maravilha!”
A cidade invisível
Mas
qual foi a contrapartida? Nova Iorque, que tem um PIB de 1,2 trilhões
de dólares, quase a metade da riqueza brasileira, jamais como hoje ela
foi socialmente desigual. Desde a Grande Depressão, em início dos anos
1930, não havia tantos miseráveis: mais de cinqüenta mil sem teto; mais
de doze mil famílias sem casa; mais de 22 mil crianças vivendo na
miséria absoluta. Uma enorme parte da sua população se equilibra
duramente para sobreviver, sem qualquer certeza para o futuro.
A
magia que operaram os representantes do grande capital foi fazer um
“vapt vupt”, lançando os pobres, miseráveis e precários mais visíveis
sobre o tapete! A pobreza branca, negra e parda foi embretada na
periferia, situação que lhe dificultava já materialmente incomodar os
que importam. Em palavras simples: pobre, hoje, tem que viajar, para
roubar! A única coisa que se vê são os mendigos no metrô, enquanto
reverbera a voz do big brother lembrando aos viajantes que “dar esmola é favorecer a mendicidade”, sobretudo, “é proibido!”.
Nesse contexto que subentendia a destruição da esquerda e dos grupos sociais organizados, o movimento Occupy
do pós-crise de 2008 irrompeu como expressão da vontade de mudança na
seio de importantes segmentos da população. Mas ele sumiu, tão
rapidamente quanto foi intensa sua chegada.
E isso graças ao seu
literal desprezo para com a organização sindical e partidária e pela já
velha e inarredável lição do marxismo, também olimpicamente
menosprezado, de que a luta de classe pelo domínio dos meios de produção
é a única solução à barbárie capitalista. Jamais compreenderam que não
bastava ocupar, simbolicamente o capital, havia que lutar por
controlá-lo e expropriá-lo!
A inconseqüência do Occupy
Os poderes fortes do capitalismo adoraram a inconseqüência do Occupy. Desculpem-me a imagem forte, foi simplesmente como esmagar um caracol com o salto do sapato. Isso, associado ao Obamismo,
fizeram com que hoje, em Nova Iorque, não haja traço sensível de
oposição política. A insatisfação para com uma vida em que o capital
domina cada instante quotidiano; o desgosto por uma cidade elitista,
economicamente violenta, totalmente ditatorial, introjeta em cada
nova-iorquino normal um inconsciente mas pesado e solitário
sentimento de desejo de um futuro e uma vida melhor, diferente. Mas não
consegue expressá-lo e não há quem materialize esse sentimento em um
projeto social e político.
Foi neste contexto que o jovem
cabeludo dos anos '80, De Blasio, agora de cabelinho curto e bem
vestido, candidatou-se a prefeito. Desde finais daquela década, De
Blasio era burocrata do Partido Democrático, participando da
administração de bairros de Brooklyn com muita visibilidade e aparente
proximidade ao povo.
Mas, no frigir dos ovos, em vinte anos,
pouco ou nada fez para os trabalhadores e populares. O que fez, sim, foi
apoiar as políticas de Bloomberg, apesar de muita oposição no “bla bla
bla”, e de sustentar os interesses dos construtores, que agradeceram sua
ação financiando ricamente sua campanha. Qualquer semelhança com o
Brasil é mera coincidência.
Bandeiras Vermelhas
Interpretando a vontade de mais radicalidade, de um giro à esquerda,
de maior intervenção publica dos poderes públicos na vida quotidiana da
população, construiu uma campanha – até esteticamente – insólita, em
verdade talvez jamais vista nos EUA. Muito parecida com o que o PT
costumava fazer: fundo vermelho – que aqui é a cor do comunismo! Slogans
claramente radicais e de esquerda: Impostos mais altos aos ricos! Mais
casas sociais aos pobres e à classe media! Menos desigualdades
econômicas!
Os ricos de Wall-Street também devem pagar! O
prefeito para os “99%”! A adesão dos sindicatos e da população foi
fulgurante, imediata. E o casal multiétnico dava aos De Blasio's uma
estética de grande sucesso. O filho Dante, penteado à moda das Panteras
Negras, foi um magnífico mascote. A vitória foi esmagadora, 72%. Nem o
Lula faria tanto!
Minha bola de cristal me disse que, nesse
mandato, as modificações para os trabalhadores e para a população serão
poucas ou nulas. Que a crise econômica vai piorar ainda mais as
condições populares de vida. Que a decepção pelo prefeito “comunista”
será grande e, com ela, um refluxo ainda maior da esquerda na cidade.
Não há dinheiro!
Eleito,
De Blasio anunciou que as centenas de milhares de trabalhadores
públicos da prefeitura com contrato vencido há anos não poderão ser
renovados. Não há dinheiro! Vai renovar alguns contratos, em troca de
“concessões” dos sindicatos para diminuição de salários. Quanto a sua
obsessão histórica, as casas para os pobres, qual é seu plano? Dar ainda
mais autorizações de edificação a empreendedores especulativos, com
vantagens econômicas atrativas, desde que construam, como “uma parte”
dos prédios, algumas habitações para classe media ou pobre. São as cotas
que chegam à especulação imobiliária. A Prefeitura de NY não construirá
nadinha! E a tal de taxa para os ricos? Sem a autorização do governo do
Estado de Nova Iorque, não será possível brincar de Robin Hood, já se
propõe.
Única noticia positiva neste mar de tristezas onde um camarada
do passado se elege para seguir a política do capital são dois
candidatos, Anthony Gronowicz, do Partido Verde, professor
universitário, boa pessoa, vagamente de esquerda; e Daniel Fein, do Socialist Worker, montador mecânico em uma fábrica de eletrônicos, único candidato camarada a
sério, com um programa socialista para os trabalhadores. Juntos tiveram
quase 6 mil votos. Não é muito mas, já que ninguém registrou o feito,
eu o faço.
* Gregório Carboni Maestri, 36, arquiteto, é
belga, italiano e brasileiro. Doutorando em Architettura, Progettazione
Architettonica e Restauro del Moderno (Universidades de Palermo,
Nápoles, Parma e Reggio Calabria; Academia de Brera e Politecnico de
Milão). È atualmente Visiting Research Scholar pela Columbia University
em Nova Iorque. gc2589@columbia.edu
Fonte: www.brasildefato.com.br
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