As lutas e os movimentos sociais na mira da lei antiterrorista
A
menos de um ano para o início da Copa do Mundo, o legado deixado pelos
megaeventos esportivos, até o momento, está longe de empolgar os
brasileiros. A insatisfação ficou visível durante os protestos que
agitaram o país na metade do ano. Por toda a parte multiplicavam-se as
críticas contra o gasto excessivo de recursos públicos em arenas, a
interferência da Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) em
leis nacionais e as remoções de comunidades inteiras para dar lugar a
novos empreendimentos.
A Copa e as Olimpíadas, porém, podem
deixar outras heranças negativas. Com o argumento de proteger o país
durante os jogos, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei
728/2011, que propõe a tipificação do crime de terrorismo.
Apresentado
pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da comissão especial mista
criada no Senado para regulamentar dispositivos constitucionais, o texto
estabelece penas entre 15 e 30 anos de prisão, em regime fechado, para
quem “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa
à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de
pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito
racial ou étnico”.
A versão de Jucá se baseia em diversas outras
propostas, dentre elas um anteprojeto elaborado pelo deputado Miro
Teixeira (PDT-RJ) e o novo Código Penal, além de tratados, protocolos e
convenções internacionais.
Atualmente, a Constituição Federal
apenas repudia expressamente a prática do terrorismo, além de considerar
o ato inafiançável e insuscetível de graça [espécie de indulto
individual] ou anistia. Entretanto, não tipifica as ações e nem
estabelece penas. O objetivo dos integrantes da comissão é aprovar a
matéria até o começo do campeonato de futebol, em junho de 2014.
Repressão
Defendida
pelos congressistas, que alegam que a legislação atual é insuficiente
diante de possíveis ameaças, a proposta para tipificar o terrorismo tem
gerado críticas de diversas organizações populares. Um manifesto
assinado por mais de 80 entidades alerta para os riscos de se usar a
nova legislação contra mobilizações garantidas pela Constituição.
“Fica
claro que este dispositivo, caso seja aprovado, será utilizado pelos
setores conservadores contra manifestações legítimas dos diversos
movimentos sociais”, diz o texto.
Para o integrante da União de
Núcleos de Educação Popular para Negras/ Negros e Classe Trabalhadora
(Uneafro), Douglas Belchior, a referência a motivações políticas e
ideológicas no cometimento de crimes, como expressa o texto de Romero
Jucá, evidencia que o alvo são as organizações populares. “É um recado
objetivo, dirigido aos grupos que fazem luta social no Brasil”,
observa.
O coordenador estadual da Central de Movimentos
Populares (CMP-SP), Raimundo Bonfim, vê a questão sob o mesmo prisma. Na
avaliação do militante, a realização dos jogos tem servido como
pretexto para criar leis repressivas, que terão a finalidade de
criminalizar as organizações sociais.
“Se por acaso uma pessoa
no meio de uma manifestação ou de uma passeata jogar uma pedra ou
depredar um órgão público, os movimentos e as lideranças vão ser
incriminados como terroristas”, aponta.
Guarda-chuva
O
principal problema do PL 728, para o juiz de Santa Catarina e membro da
Associação de Juízes para a Democracia (AJD) Alexandre Morais da Rosa, é
a “amplitude semântica” do texto, que poderá dar margem a diferentes
entendimentos.
“Essas tipificações propostas nos projetos são
tão amplas que poderiam, dependendo do agente que fosse interpretá-las,
determinar a prisão de pessoas que estivessem manifestando sua vontade
em praça pública”, explica.
A proposta de Jucá foi enviada à
comissão especial em junho, mês em que eclodiram os protestos populares
que atraíram milhões de pessoas em centenas de cidades. Para as
organizações, o objetivo imediato do Projeto de Lei é impedir a
realização de manifestações durante a Copa e as Olimpíadas.
O
temor dos parlamentares é que se repita, nos próximos eventos, o cenário
visto este ano na Copa das Confederações, quando diversos protestos
ocorreram no entorno dos estádios.
Segundo o juiz Alexandre
Morais da Rosa, da forma como está redigida, a proposta servirá como um
“guarda-chuva” para legitimar o monitoramento e até a proibição de
manifestações consideradas “terroristas”.
“A Abin [Agência
Brasileira de Inteligência], a Polícia Federal e os órgãos de controle
querem um tipo penal que seja guarda-chuva para que eles possam evitar
qualquer tipo de manifestação e protesto na Copa do Mundo. Ou seja, a
Abin e a Polícia Federal estão a serviço da Fifa”, critica Rosa, que
discorda ainda da necessidade de se aprovar uma legislação específica
para crimes de terrorismo no país. “Quais os atos de terrorismo que
aconteceram no Brasil nos últimos dez anos e não tiveram punição porque
não tinha lei? Quem é partidário [do projeto de lei] não consegue
apontar”, ressalta.
A análise é compartilhada pelo advogado da
Justiça Global Eduardo Baker, que destaca que já há punições para os
delitos citados nas propostas que tipificam o terrorismo.
“Se
uma pessoa mata alguém, por exemplo, ou saqueia e incendeia um prédio,
por motivos políticos ou não, ela supostamente já pode ser objeto de uma
ação criminal. Por que você precisa criar o tipo de terrorismo?”,
questiona.
A falta de bons exemplos de tipificação do terrorismo
pelo mundo é outro argumento contrário às propostas brasileiras. Um
exemplo emblemático é o dos Estados Unidos que, depois dos atentados de
11 de Setembro, iniciaram a chamada “Guerra ao Terror”.
Se fora
dos seus territórios o saldo foi de ataques e invasões, dentro do país
as consequências foram perseguição, especialmente contra árabes e
muçulmanos, e de aumento do monitoramento contra os cidadãos.
Entre
2008 e 2011 a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA)
espionou cerca de 56 mil comunicações eletrônicas de indivíduos sem
qualquer ligação com grupos terroristas. No caso do Brasil, as
perspectivas para a aprovação de uma lei antiterrorista não são
animadoras. O temor de arbítrio no uso do novo instrumento legal
encontra respaldo na perseguição histórica sofrida por militantes de
movimentos sociais no país.
Eduardo Baker lembra que, por parte
da mídia corporativa, por exemplo, sempre houve uma tendência de
associar à figura terrorista diferentes militantes políticos
“subversivos” – como opositores da ditadura civil-militar, integrantes
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e mais
recentemente os Black Blocs.
Uma legislação específica
para “os terroristas”, para o advogado, aumentará ainda as
possibilidades de atuação arbitrária por parte da polícia ou mesmo do
Ministério Público, que terão um respaldo legal para tentar coibir todo
tipo de protesto. “No nosso contexto [a proposta] me parece favorecer
muito mais a criminalização dos movimentos sociais do que um suposto
combate ao que seria esse terrorismo”.
Para Baker, as propostas
de tipificação do terrorismo seguem a mesma lógica da proibição de
máscaras no Rio de Janeiro, sancionada em setembro pelo governador
Sérgio Cabral (PMDB). Propostas repressivas desse tipo, na sua análise,
facilitam a ocorrência de arbitrariedades policiais, fatos já
constatados pelas organizações de direitos humanos do estado.
“Há
relatos de pessoas que se identificam e mesmo assim são levadas para a
delegacia, e outras que não estão de máscara e a quem mesmo assim são
pedidas as identificações”, afirma.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/26069
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