'Project Syndicate': Uma regulamentação para a dívida soberana
"Os governos precisam às vezes reestruturar suas dívidas. De outra
forma, a estabilidade econômica e política de um país pode ser
ameaçada". É o que dizem os economistas Joseph E. Stiglitz e Martin
Guzman em artigo publicado no Project Syndicate.
"Mas, na
ausência de uma regulamentação internacional para a resolução de
descumprimentos soberanos, o mundo paga por essas reestruturações um
preço mais alto do que deveria. O resultado é um mercado da dívida
soberana que funciona incorretamente, marcado por conflitos desnecessários e por atrasos dispendiosos na resolução de problemas quando estes surgem.
Somos
recordados deste fato uma e outra vez. Na Argentina, as batalhas das
autoridades contra um pequeno número de “investidores” (os chamados
vulture funds – fundos “abutre”, ou oportunistas) comprometeram toda uma
reestruturação de dívida negociada (voluntariamente) por uma esmagadora
maioria dos credores do país. Na Grécia, a maior parte dos fundos de
“resgate” dos programas de “assistência” temporária são destinados a
pagamentos aos credores existentes, enquanto o país é forçado a adotar
políticas de austeridade que contribuíram grandemente para um declínio
de 25% no PIB e deixaram a sua população numa situação pior. Na Ucrânia,
as potenciais ramificações políticas do desgaste causado pela dívida soberana são enormes.
Por
isso, a questão de como deve ser gerida a reestruturação da dívida
soberana, reduzindo a dívida a níveis sustentáveis, é mais premente que
nunca. O sistema atual coloca uma fé excessiva nas “virtudes” dos
mercados. As disputas são normalmente resolvidas não graças a regras que
garantam uma resolução justa, mas por uma negociação entre partes
desiguais, em que os ricos e poderosos normalmente impõem sua vontade
sobre os outros. Normalmente, os resultados obtidos não são apenas
injustos, mas também ineficientes.
Aqueles que alegam que o
sistema funciona bem apelidam os casos como o da Argentina de exceções.
A maior parte das vezes, afirmam, o sistema trabalha bem. O que querem
dizer, claro, é que os países fracos normalmente obedecem. Mas a que
custo para os seus cidadãos? Como funcionam
as reestruturações? O país foi colocado num caminho de dívida
sustentável? Muito frequentemente, e porque os defensores do status quo
não colocam estas perguntas, uma crise de dívida é seguida por outra.
A
reestruturação da dívida grega em 2012 é um exemplo claro do referido. O
país jogou pelas “regras” dos mercados financeiros e conseguiu terminar
rapidamente a reestruturação; mas o acordo foi um mau acordo, e não
ajudou à recuperação da economia. Três anos mais tarde, a Grécia precisa
desesperadamente de uma nova reestruturação.
Os devedores
em situação crítica precisam começar de novo. Penalidades excessivas
levam a jogos de soma negativa, em que o devedor não consegue recuperar e
os credores não beneficiam da maior capacidade de reembolso que a recuperação acarretaria.
A
ausência de uma regulamentação para a reestruturação da dívida atrasa
os recomeços e pode levar ao caos. É por isso que nenhum governo deixa a
reestruturação das dívidas internas para as forças do mercado. Todos
concluíram que as “vias contratuais” simplesmente não são suficientes.
Em vez disso, promulgam leis de falência que incluem regras básicas para
as negociações entre credor e devedor, promovendo desse modo a
eficiência e a equidade.
As reestruturações da dívida soberana são
ainda mais complicadas do que as da falência interna, sendo assoladas
por problemas de várias jurisdições, por requerentes implícitos e
explícitos, e por ativos deficientemente definidos que podem ser alvo da
exigência dos requerentes. É por isso que achamos tão incrível algumas
pessoas (incluindo o Tesouro dos EUA) afirmarem que não existe
necessidade de uma regulamentação internacional.
Na verdade,
poderá não ser possível estabelecer um código internacional completo
para as falências; mas poderia chegar-se a um consenso sobre muitas
questões. Por exemplo, um novo enquadramento deveria incluir cláusulas
que previssem a suspensão do contencioso enquanto a reestruturação
estiver em curso, limitando assim o âmbito para o comportamento
disruptivo dos vulture funds.
Também deveria conter provisões para
a concessão de crédito a endividados: os financiadores dispostos a
fornecer crédito a um país com uma reestruturação em curso receberiam
tratamento prioritário. Estes financiadores teriam assim um incentivo
para fornecer novos recursos aos países quando estes fossem mais
necessários.
Também se deveria acordar que nenhum país poderia
prescindir dos seus direitos básicos. Não pode existir uma renúncia
voluntária da imunidade soberana, tal como nenhuma pessoa pode vender-se
como escravo. Também deveriam existir limites para a extensão em que um
governo democrático vincula os seus sucessores.
Isto é
especialmente importante por causa da tendência dos mercados financeiros
em induzir políticos míopes a afrouxar as restrições orçamentais do
presente, ou a financiar governos flagrantemente corruptos como o
deposto regime de Yanukovych na Ucrânia, à custa das gerações futuras.
Esse limite melhoraria o funcionamento dos mercados de dívida soberana,
induzindo um maior cuidado no financiamento.
Um modelo
“quase-jurídico” que contivesse estas características, implementado por
uma comissão de fiscalização que aja como mediador e
supervisor do
processo de reestruturação, poderia resolver algumas das ineficiências e
desigualdades atuais. Mas, para que o modelo seja consensual, a sua
implementação não poderia basear-se numa instituição que esteja
estreitamente relacionada com qualquer um dos lados do mercado.
Isto
significa que a regulamentação da reestruturação da dívida soberana não
pode ficar sediada no Fundo Monetário Internacional, que está demasiado
ligado aos credores (e é também um credor). Para minimizar o potencial
para conflito de interesses, o modelo poderia ser implementado pelas
Nações Unidas, uma instituição representativa que está assumindo o
comando desta questão, ou por uma nova instituição global, como foi já
sugerido no Relatório Stiglitz de 2009 sobre a reforma do sistema
monetário e financeiro internacional.
A crise na Europa é apenas o
último exemplo dos elevados custos – tanto para os credores como para
os devedores – provocados pela ausência de uma regulamentação
internacional para a resolução das crises da dívida soberana. Estas
crises continuarão a acontecer. Para que a globalização funcione para
todos os países, as regras do financiamento soberano deverão mudar. As
modestas reformas que propomos são o lugar certo para começar".
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