Não basta ser direita
A guinada à direita, em sua dimensão real e simbólica,
cresce em todo o mundo. Uma espécie de reacionarismo de baixo instinto,
que se expressa em comportamentos violentos, machistas, homofóbicos e
chauvinistas.
Por João Paulo Cunha*
Um
dos fenômenos mais singulares da vida política contemporânea é a saída
do armário da direita em escala global. Não da direita ideológica,
defensora de valores de mercado na economia e de sua tradução
conservadora no campo político. Mas da direita raivosa, preconceituosa,
antipopular e moralista. Uma espécie de reacionarismo de baixo instinto,
que se expressa em comportamentos violentos, machistas, homofóbicos e
chauvinistas.
Como numa onda reativa, não basta mais ser direita,
tem que participar. Há muitas camadas nessa escalada das pessoas e
grupos em direção às manifestações públicas orgulhosas de sua
ignorância. Em primeiro lugar, para ocupar um território em disputa é
preciso que o outro lado se recolha. Os movimentos populares perderam o
protagonismo das ruas. A retração das manifestações de grupos ligados ao
ideário das esquerdas pode ser creditada a muitos fatores, da escolha
da estratégia eleitoral como principal projeto à dispersão das bandeiras
libertárias no dia a dia.
De alguma forma, a potência dos
movimentos sociais vem se esgarçando. As teses da esquerda, que deveriam
ser ecoadas ação de um governo de base popular, têm sido
sistematicamente deixadas de lado em razão de um pragmatismo
isolacionista e autossuficiente. Não se recorre mais à sustentação
histórica da mobilização, o que tem jogado contra o principal capital
político do projeto defendido pela coalização de forças no poder. A
estratégia de assumir os prejuízos políticos de momento em nome de um
acerto a longo prazo vem perdendo consistência e significação em boa
parte do movimento sindical e popular.
Assim como a natureza, a
política tem horror ao vácuo. As ruas passaram a receber novos
personagens que, ainda que relativamente desastrados em suas
manifestações, estão tomando gosto pela coisa. Mais que passeatas e
batuque de caçarolas, os neoconservadores estão se sentindo seguros para
exacerbar seu comportamento antissocial de forma hedionda. Ganham com
isso força as manifestações racistas e fascistas de todo espécie,
fundadas no falso argumento da liberdade de expressão. É preciso sempre
reforçar o caráter criminoso dessas atitudes. Não se pode ser tolerante
com a intolerância.
Essa atitude, no entanto, deixa o campo da
mera manifestação individualista para ganhar corpo em assuntos que dizem
respeito a toda a sociedade. É nesse caldo de cultura e incivilidade
histórica que estamos acompanhando o risco real da retomada de projetos
como a antecipação da maioridade penal, do novo estatuto da família, da
recondução de princípios religiosos no cerne do Estado laico, da
desregulamentação das relações trabalhistas e da fraudulenta reforma
política que mantém o financiamento privado de campanhas.
E não
se trata de uma situação apenas brasileira. A guinada à direita, em sua
dimensão real e simbólica, cresce em todo o mundo. Pode ser vista no
fortalecimento dos partidos conservadores, na pressão internacional para
o cumprimento do receituário neoliberal do FMI pelos países em crise,
no recuo das organizações trabalhistas e socialistas históricas, na
perda de cadeiras para representantes da classe operária na França, na
Inglaterra e na Itália, entre outras situações.
A corrente
conservadora tem ainda um aliado mundial nos meios de comunicação, que
levam adiante a narrativa do fracasso das políticas sociais e
distributivas em favor das estratégias conservadoras de ajuste e
realinhamento a partir das economias centrais. Há uma tendência ao
esmorecimento que começa na economia, ganha tradução na política e chega
com força ao ânimo das pessoas. A nova direita tem, além do poder de
dividir pelo ódio, o condão de deixar o futuro mais cinza e as pessoas
mais tristes. Sem falar da sagacidade em jogar as classes populares numa
luta entre si.
O filósofo holandês Spinoza, já no século 17,
afirmava a ligação entre a dominação e a tristeza. A verdadeira ação
libertadora deveria ser guiada pela alegria. Não se deve condenar os
afetos, mas compreendê-los; não se pode conviver a tirania, é tarefa do
homem livre combatê-la com as armas da razão e da emoção. Pode-se
imaginar um programa deixado pelo pensador para a reconquista das ruas:
alegria como expressão de nossa vontade de crescimento humano, ampliação
da liberdade do corpo e da mente, combate aos fundamentalismos
religiosos e luta dirigida pelo conhecimento das pessoas e da sociedade.
Não basta ser esquerda, tem que revolucionar.
* João Paulo Cunha é jornalista
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