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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sem vergonha de errar

 Sem vergonha de errar

Uma nova corrente de escritores faz reviver uma velha frase: “Não há nada a temer senão o próprio medo”

MARCELO MOURA, COM THAÍS LAZZERI E DANILO VENTICINQUE

Conheci a Marcela aos 9 anos. Aluna nova na escola, tanto quanto eu. Na lista de presença, era a 24ª a ser chamada. Eu, o 25º. Marcela tirava notas altas sem ser uma estudiosa chata. Jogava bola, colecionava figurinhas, fazia amizade com todo mundo. Apaixonei-me. Tinha de dizer isso a ela, mas não podia ser uma coisa malfeita. Precisava das palavras certas. E do momento certo. O presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln (1809-1865), cuja biografia eu ainda levaria algum tempo na escola até conhecer, tornou célebre uma frase boa para ilustrar a situação: “Me dê seis horas para derrubar uma árvore, e eu passarei as primeiras quatro afiando o machado”. Com medo de não ser bom o bastante para ela, e de levar um fora, me esmerei na busca pelo machado perfeito. Passei dias, tardes e noites me preparando. Marcela deve ter se preparado também, porque, quando finalmente dei a machadada e a pedi em namoro, mais de um ano depois, sua resposta estava bem afiada: “Não”. Pensei que ficaria deprimido – eu também já ensaiara essa parte. Na verdade, foi um alívio.

Com medo de ser rejeitado, passei tanto tempo me preparando que o preparo perdeu o sentido. Afiar o machado antes de golpear o tronco, como propôs Lincoln, é um sábio conselho. Tentar afiar o machado até a perfeição, contudo, é uma péssima ideia. Pior até do que golpear a
árvore sem nenhum critério. Em outras palavras, é o que diz a escritora Brené Brown em seu livro Coragem de ser imperfeito, recém-lançado pela editora Sextante. “Com medo de expor suas fragilidades e de não parecer bom o bastante para a aceitação do outro, as pessoas se fecham”, disse Brown a ÉPOCA. “Fechadas, deixam de criar vínculos com outras pessoas. O custo do isolamento é maior que o de uma eventual rejeição.”
>> Luís Antônio Giron: Errei. Quem nunca?

Ninguém está livre do medo de errar, nem das consequências nocivas que esse medo traz. No começo do ano, a diva da música pop Beyoncé Knowles se apresentou na cerimônia de posse do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Para uma das artistas mais populares deste século, era um dia de consagração. O que ela recebeu do público nos dias seguintes foi desconfiança. Um integrante da orquestra de acompanhamento afirmou que, em vez de cantar, ela dublara o hino dos Estados Unidos. Dublou ou não dublou? A desconfiança ganhou o mundo. Beyoncé não tocou no assunto. Um mês depois da posse, numa entrevista coletiva sobre a apresentação que faria na final do campeonato americano de basquete, ela pediu para todos se levantarem. Cantou o hino nacional sozinha, sem coral ou acompanhamento, com afinação admirável. Depois de mostrar do que era capaz, admitiu que dublara na cerimônia de posse e pediu desculpas. “Sou perfeccionista. Ensaio até meus pés sangrarem, mas não tive tempo de ensaiar com a orquestra”, disse Beyoncé. “Não me senti confortável para arriscar. Queria deixar o presidente e o país orgulhosos.” Pressionada pelo medo de errar, e com pouco tempo para refletir, Beyoncé tomou uma decisão que a distanciou de parte de seus fãs. Ao pedir desculpas e assumir suas limitações, reconquistou a simpatia do público.

Tolerar críticas e ser alvo permanente de comentários é parte da profissão de Beyoncé. Mesmo assim, é difícil para ela. Imagine para alguém comum. O mundo moderno impõe o perfeccionismo. Suas mudanças rápidas exigem respostas à altura, imediatas, nos mais diversos assuntos. “É muito mais fácil cometer erros hoje que antigamente”, afirma Andrew Zolli, coautor do livro Adapte-se. Em jogo, está o sucesso social e profissional.

Eles erraram... e se redimiram (Foto: Buda Mendes/Getty Images, Jim Bourg/Reuters, Osservatore Romano/Reuters e Tony Gentile/Reuters)
Qualquer deslize pode custar caro, afinal a internet trouxe formas eficientes de ampliar e eternizar o fracasso. Redes sociais como o Twitter encurtam a distância entre amigos, mas podem virar uma janela aberta para o apedrejamento público. Desclassificada nos Jogos de Londres, a judoca brasileira Rafaela Silva, negra, sofreu com comentários racistas de desconhecidos. “Pensei em desistir e largar o judô”, disse. Na era dos arquivos digitais, vexames nunca são esquecidos por completo. Ficam à deriva, registrados em trocas de e-mail ou imagens de celular. Podem reaparecer a qualquer momento pelas mãos de algum detrator.

Em março de 2009, a cantora Vanusa interpretou o hino nacional numa cerimônia na Assembleia Legislativa de São Paulo. Errou a letra e, tentando se corrigir, piorou ainda mais a situação. No auditório, com capacidade para 439 pessoas, os presentes aplaudiram, para apoiar e encerrar o constrangimento. Cinco meses depois, o vídeo da apresentação caiu na rede. Uma das versões no YouTube já foi vista 2,7 milhões de vezes e atraiu mais de 12.500 comentários – quase nenhum solidário. “Perdi oito shows que estavam marcados em um mês”, diz Vanusa. “Foi bem humilhante. Sofri muito.”
>> Escolha menos e viva melhor 

Mesmo os amigos, reunidos em redes sociais como Instagram e Facebook, podem contribuir para reduzir a autoestima. As galerias de fotos e mensagens acabam por compor um desfile de gente bonita, feliz e bem-sucedida. “Nunca tivemos tanto acesso à vida dos outros, e isso tornou mais frequentes as comparações”, diz Brené Brown. “Costumamos nos esquecer de que comparamos nossa vida real com vidas editadas. A felicidade mostrada no Facebook não representa a verdade.” Quanto melhores os outros parecem, mais vergonha sentimos. Maior nosso medo de, ao nos mostrar como somos, não sermos dignos de atenção.

O barão Pierre de Coubertin, educador que, em 1896, fundou o Comitê Olímpico Internacional, dizia que o importante na vida não era o triunfo, mas a luta. Sua ideia saiu de moda. Nos Jogos de Londres de 2012, o atleta chinês Wu Jingbiao, de 23 anos, pediu desculpas por seu desempenho na prova de levantamento de peso. “Sinto vergonha por desgraçar minha terra natal”, disse, às lágrimas. Wu estava desolado por conquistar a medalha de prata. Com influência crescente no mundo, a cultura chinesa é especialmente intolerante a imperfeições. A abertura dos Jogos de Pequim, em 2008, proporcionou um momento simbólico e bizarro: considerada feia pelos organizadores, a cantora Lin Miaoke, uma graciosa menina aos 9 anos, teve de emprestar sua voz a uma colega. “Fizemos isso pelo interesse nacional”, disse Chen Qigang, diretor musical da cerimônia. “A criança diante da câmera deveria parecer impecável em imagem, sentimento interno e expressão.”
Da cultura chinesa também vem o livro Grito de guerra da mãe-tigre, lançado mundialmente em 2011, pela escritora Amy Chua. Ela afirma que os filhos devem participar apenas de brincadeiras competitivas – e ganhar. Manifestações de afeto com as crianças, diz, esvaziam a autoridade dos pais. Tudo isso parece radical? Saiba que o estranhamento é cada vez menor. Para atrair alunos do ensino fundamental, com menos de 10 anos, escolas particulares no Brasil afirmam “preparar para o mercado”. Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o número de operações estéticas em adolescentes de 14 a 18 anos cresceu 141%, entre 2008 e 2012. Os procedimentos mais procurados são lipoaspiração e implante de silicone nos seios.

Livros de autoajuda têm seu papel nesse culto à perfeição. As prateleiras de livrarias estão repletas de títulos que prometem tornar seus leitores mais bem-sucedidos, mais ricos, mais perfeitos e, portanto, mais felizes. Corrigir a linguagem corporal, curar a timidez, falar melhor em público, eliminar preo­cupações, aumentar a produtividade, acumular fortunas. Pense em qualquer desejo: há dezenas de autores capazes de oferecer uma maneira perfeita de satisfazê-lo e de apontar os erros que o impedem de chegar lá. O filme O segredo e o livro homônimo, ambos de 2006, são os maiores representantes dessa corrente. Para atrair o sucesso em qualquer área da vida, segundo eles, basta pensar positivamente e imaginar seu sonho concretizado. O livro vendeu mais de 20 milhões de cópias no mundo todo, e o filme faturou cerca de US$ 300 milhões. Ao menos os sonhos da autora, Rhonda Byrne, foram realizados. Para os leitores, a compra muito provavelmente não deu tão certo. O sucesso da autoajuda entre leitores do mundo todo é, paradoxalmente, uma prova de que os livros do gênero fracassam em sua meta de conduzir os leitores à vida perfeita. No mercado editorial americano, tornou-se conhecida a infame regra dos 18 meses: o cliente mais propenso a comprar um livro de autoajuda é aquele que comprou um livro do gênero um ano e meio atrás – e continuou cheio de problemas para resolver.

Não deixa de ser curioso, portanto, o surgimento agora de livros de autoajuda dedicados a cultivar a imperfeição. Ex-gerente de telecomunicações perfeccionista que largou a carreira para tornar-se doutora em serviço social, Brené Brown é expoente de um grupo de autores. Em seu livro The antidote: happiness for people who can’t stand positive thinking (O antídoto: felicidade para pessoas que não aguentam pensamento positivo), o americano Oliver Burkeman sugere que o segredo para evitar a frustração é aceitar as falhas e pensar que o pior pode acontecer. Antifragile: things we gain from desorder (algo como Antifrágil: coisas que ganhamos com o transtorno), do estatístico Nassim Nicholas Taleb, afirma que pessoas e organizações com maior tolerância a falhas e ao caos têm maiores chances de sucesso. Em Erros incríveis, Paul Schoemaker, professor da escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, afirma que muitas das principais descobertas na história da ciência e dos negócios foram causadas por erros. Nas palavras do genial escritor irlandês James Joyce, “os erros são os portais da descoberta”.

Eles erraram... e se deram muito bem (Foto: Buda Mendes/Getty Images, Jim Bourg/Reuters, Osservatore Romano/Reuters e Tony Gentile/Reuters)
O medo de errar está ligado a nossos instintos primitivos de preservação. É como um remédio contra o fracasso. Devemos muito a ele. Em altas doses, porém, o medo envenena. Isso é comum entre vítimas de grandes traumas, como estupro e incesto. Muitos passam a vida sentindo-se indignos, uma dor mais duradoura que a própria violência original. Quanto maior a dor, menos falam. Quanto menos falam, mais sofrem. Perfeccionistas são outro grupo sujeito ao isolamento. “A criança destinada a ser perfeccionista vê a perfeição como o único meio seguro de proteger-se de críticas, constrangimentos, raiva ou perda do amor de seus pais ou colegas”, afirma Brené Brown. Incapazes de perceber que já afiaram o machado o suficiente, perfeccionistas acabam adotando como parâmetro seu próprio limite. Limite físico, limite mental, limite financeiro ou limite de tempo. “Suas metas em qualquer tarefa são tão elevadas que ele mal consegue deixar de sentir-se preocupado e tenso. Quando alcança a excelência, raramente consegue desfrutar”, diz. Ao pensar que sua aceitação depende de algo externo, como a beleza física, o sucesso profissional ou a riqueza financeira, o perfeccionista torna-se escravo. Para Brown, perfeccionismo é diferente de empenho no aperfeiçoamento. “O empenho saudável está voltado para si mesmo: como posso melhorar? O perfeccionismo está voltado para os outros: o que eles pensarão? O perfeccionismo é autodestrutivo.”
>> Guy Kawasaki: “Não busque a próxima moda, crie a sua”

O economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) propôs o princípio 80/20, para explicar como o “perfeito” é inimigo do “bom o bastante”. Segundo ele, 80% do resultado num trabalho é obtido com 20% do empenho. Ir de 80% para 100% do resultado consome 80% do empenho. Melhorar o que já está bom custa progressivamente mais caro e traz uma vantagem progressivamente menor. Fiéis a esse princípio, empresas desistem do ótimo para se concentrar no bom. Lucram mais assim. Seguidor de Pareto, o economista americano George Stigler cunhou a frase: “Se você nunca perdeu um voo, está passando tempo demais no aeroporto”.

Aceitar a possibilidade de errar não é apenas uma forma de viver em paz consigo mesmo. É uma forma de ir mais longe. O inventor americano Thomas Edison (1847-1931) errou centenas de vezes até chegar ao modelo definitivo de lâmpada incandescente. “Não errei 1.000 vezes”, disse Edison. “A lâmpada foi uma invenção com 1.000 etapas.” Segundo o alemão Albert Otto Hirschman (1915-2012), um dos economistas mais influentes e originais de nosso tempo, o fracasso não é um desvio no caminho para o sucesso. É, muitas vezes, a principal causa do sucesso. Depois de ajudar a escrever o Plano Marshall, para a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial, Hirschman foi consultor do Banco Mundial em projetos de desenvolvimento na América Latina, África e Ásia. Em seu trabalho, percebeu como erros se transformam em acertos, diante de novas circunstâncias.

A construção de um túnel através da Montanha Hoosac, nos Estados Unidos, no século XIX, foi um erro grosseiro de planejamento. A obra custou mais de dez vezes o orçamento inicial. Se soubessem do real custo da obra, não a fariam. Quando souberam, era tarde para recuar. Graças àquele erro, porém, a cidade de Boston teve acesso ao Rio Hudson. O impulso em seu desenvolvimento pagou, com sobras, a obra. A construção de um polo de processamento de fibras vegetais no Paquistão, nos anos 1950, foi um erro ainda maior. A indústria foi planejada para uma variedade de bambu que, pouco depois, extinguiu-se. Os responsáveis pelo projeto erraram ao não prever aquela possibilidade. Fracasso? Sim e não. O governo investiu na pesquisa do cultivo de outras variedades de bambu, que se revelaram melhores que a original. O erro levou o país à superação. “A criatividade sempre aparece de surpresa. Portanto, não podemos contar com ela e não ousaríamos acreditar nela, até aparecer. Não aceitaríamos conscientemente desafios cujo sucesso claramente depende de criatividade”, afirma Hirschman no ensaio O princípio da mão oculta (1967).

Numa paródia à ideia de “mão invisível”, que diz que o mercado é capaz de se regular sozinho, Hirschman diz que uma “mão oculta” esconde certos riscos de um empreendimento. É impossível prever todas as variáveis. Prosperam os empreendedores que encaram a incerteza, com acertos e erros, e não os que param. “Chegamos a uma argumentação da economia surpreendentemente paralela à frequente preferência do cristianismo pelos pecadores renitentes, acima dos homens corretos, que jamais se desviam do caminho”, diz. Para Hirschman, errar não é apenas humano. Errar é divino.

Manual do sem-vergonha (Foto: ÉPOCA)


Fonte: http://epoca.globo.com
ha

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