Política
Protestos
Black Bloc e democracia
Reduzir a conduta dos black blocs à ilicitude seria
tratar toda desobediência civil como mero ato de bandidagem. Mas, no
momento, seus resultados são fascistas e precisam ser repensados
por Pedro Estevam Serrano
Já tive oportunidade de escrever sobre o movimento black
bloc nessa coluna em artigo passado. Volto ao tema pelo andar recente da
carruagem, me dando a liberdade jornalística de não me alongar em
argumentos acadêmicos e citações.
O Estado Democrático de Direito implica na disputa pacífica do
poder político. O argumento como substituto da violência, a lei como
substituta do poder soberano absolutista.
Nesse aspecto a legalidade é um valor essencial. A lei expressa
a soberania popular e como tal tem de ser observada. A ordem
democrática é um valor estruturante do regime político
Entretanto, não há como deixar de observar na história do
regime democrático no mundo que este evoluiu em termos de
ampliação da
garantia de direitos, por meio de rupturas desta mesma ordem jurídica.
Do voto feminino e universal aos direitos sociais, todas foram
conquistas obtidas por rupturas populares da ordem que fizeram evoluir a
democracia burguesa do fim do século XVIII para a democracia universal,
representativa e com elementos de democracia direta, do mundo ocidental
contemporâneo.
De instrumento puro de dominação, a democracia transmutou-se em veículo possível de transformações libertárias e sociais.
Em verdade há de se constatar que a evolução democrática guarda
com sua ordem jurídica uma relação complexa e contraditória. Demanda
sua observância e sua não observância concomitantemente
Se a conduta humana de servidão à uma determinada ordem
jurídica pode ser observada com relativa objetividade pela incidência da
lei sobre o fato, o mesmo não ocorre com sua desobediência. Essa sempre
é ilícita.
Se reduzida sua avaliação ao mero exame de sua legalidade, se
perderá, no plano político, a exata compreensão de sua complexidade,
cabendo lembrar que compreender não é aceitar.
No plano político, a desobediência civil pode sim ser avaliada
sob o ponto de vista democrático. Será contributiva à evolução do regime
democrático se implicar ampliação de direitos das pessoas, dos grupos
sociais e da sociedade como um todo, difusamente considerada.
Como ocorre no âmbito politico, e não deôntico, a ação de
desobediência deve ser tida em seu resultado concreto para a vida social
e das pessoas.
Por evidente, o poder constituído sempre tenderá a tratar atos
de desobediência civil como meros atos de banditismo comum,
desconhecendo seu móvel, propósito e resultado político.
Se muitas vezes no plano jurídico a intenção política pouco
influencia o juízo de legalidade da conduta, no plano ético-político
influenciará muito o juízo de sua legitimidade.
O ato político, mesmo quando violento, mesmo quando
inaceitável, é provido de uma pretensão de correção própria da crença
política. Por mais equivocado que seja, pretende alguma forma que supõe
ser de bem comum. Nesse sentido, se diferencia no plano ético-político
do ato de bandidagem.
O poder constituído sempre busca subtrair do ato de
desobediência o substrato político para esvaziar sua legitimidade.
Muitas vezes logrará êxito pela ausência de legitimidade real e de apoio
social a sua prática, ocorrente, às vezes, pela inobservância no ato de
desobediência de valores morais universais caracterizadores de um dado
processo civilizatório. Outras vezes, por perda da batalha comunicativa,
outras ainda por repressão bruta, mas eficaz.
Assim ao avaliarmos os atos violentos de desobediência civil
praticados pelo black bloc, não devemos nos ater à dimensão jurídica.
Juridicamente, não há duvida. É crime depredar propriedade alheia e
muito mais grave a ilicitude quando implica violência física contra
agente policial.
O papel jurídico do poder constituído é reprimir tal conduta e submeter seus agentes ao devido processo legal para sua punição.
Na analise política da conduta e de sua legitimidade
democrática, o tema é mais complexo. Ocorre que, no plano estritamente
político, há em todo ato de desobediência um potencial constituinte, uma
nova ordem no broto, que poderá florescer para o bem ou para o mal da
sociedade e do regime democrático.
Será verdadeiramente constituinte na perspectiva democrática,
se resultar na ampliação de direitos. Será autoritária, se objetivar e
resultar na redução de direitos, implicando a realização de valores de
exceção em detrimento de valores de direito.
Neste sentido, não há que se reduzir a análise política da
conduta dos black blocs à sua dimensão jurídica de ilicitude. Isso
significa tratar toda desobediência civil, “a priori” e sem qualquer juízo político mais complexo, como mero ato de bandidagem.
Tal análise reducionista tem como função fortalecer o elemento
imperial do poder constituído, ressaltar a ordem em detrimento dos
direitos das pessoas. Não é por aí que se deve criticar as condutas
recentes dos black blocs.
No plano político, os atos de violência extrema dos black blocs
se iniciaram por meros ataques a propriedades símbolos do sistema
capitalista, mas acabaram se convertendo em atos de violência contra um
ser humano especifico, que por mais que porte um uniforme não pode ser
subtraído de sua condição humana.
Um movimento verdadeiramente libertário pode ter como inimigo o
Estado, mas nunca um ser humano especifico, ainda que agente deste
Estado. Se não agir assim, perde em termos de ganho civilizatório,
pondo-se no mesmo papel do fascismo e outras formas de retrocesso da
civilização democrática.
Quem adota valores democráticos repudia, no interior do jogo
democrático, agressões a pessoas. A violência neste caso não pode ser
tida como legítima defesa contra o Estado.
Se esse Estado tem estrutura de legalidade democrática, a
violência contra pessoas não pode ser tida como forma de reação
legitima, pois perde em proporcionalidade ética.
Quando esta violência extrema é praticada por um punhado de
pessoas, comprometendo a imagem de um movimento social mais amplo face a
maioria da população, estes atos servem mais ao poder constituído em
sua sanha de criminalizar a oposição social do que a qualquer conquista
libertária pretendida.
O risco do agente de um ato político de desobediência civil
numa sociedade democrática é esse mesmo: ser julgado por seus resultados
e não por suas intenções subjetivas. Esse é um juízo político legítimo,
pois nem toda desobediência é libertaria. Em especial, quando praticada
no interior de um sistema de legalidade minimamente democrática.
Como resultado da conduta recente dos black bloc, temos a
ampliação da legitimidade social de atos de repressão contra o movimento
social. Tratou-se portanto de um movimento de desobediência redutor de
direitos e ampliador da potência repressiva do Estado.
Pouco importam as intenções políticas desse movimento de
desobediência, se anarquista socialista, anarco-capitalista ou de
direita. Seus resultados são fascistas. Assim se tornaram. Que seus
agentes repensem criticamente seu caminho, em favor da cidadania, dos
movimentos sociais e das liberdades humanas em nosso pais.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br
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