Brasil vai entrar numa época de manifestações sindicais e sociais, diz sociólogo
Professor Ricardo Antunes analisa mercado de trabalho no Brasil e no mundo
Jornal do BrasilPamela Mascarenhas
O projeto de reforma trabalhista sinalizado pelo atual governo
brasileiro é uma "imposição dos interesses financeiros que comandam a
economia do país", aponta Ricardo Antunes, professor de Sociologia do
Trabalho da Unicamp e autor de diversos livros sobre o tema, entre eles
"Sentidos do Trabalho", publicado no Brasil, na Argentina, nos Estados
Unidos, na Inglaterra, Holanda, Itália, Portugal e Índia; e "Adeus ao
trabalho?", editado no Brasil, na Argentina, Venezuela, Colômbia,
Espanha e Itália. "O cenário que vamos ter nos próximos dois trimestres é
desalentador, e vai fazer com que o movimento sindical e os movimentos
sociais lutem ardorosamente."
A repercussão do trabalho de Antunes
em países do mundo inteiro permitiu ao professor debater e analisar
tendências globais do mercado de trabalho. Em entrevista por telefone ao
JB na noite de quarta-feira (31), Antunes traçou o caminho que o
mercado de trabalho tem seguido no mundo, como os trabalhadores têm
procurado se organizar para lidar com novos cenários e fez uma leitura
da situação brasileira em meio à crise política e econômica.
"Nós
vamos entrar numa época de confrontação social, de manifestações
sindicais e sociais", destacou Antunes na entrevista. "O período que vai
de 2016 a 2018 será uma sucessão amplificada e articulada de crises
sociais e crises políticas."
Na
ocasião de sua posse, o presidente Michel Temer destacou que vai
"modernizar as leis trabalhistas, para garantir os atuais e gerar novos
empregos”. Para Antunes, tal modernização abre caminho para uma série de
mudanças "profundamente destrutivas" para a classe trabalhadora.
"Estamos
no pior momento. Governo nenhum que destrói direitos diz que vai
destruir direitos", ressalta Antunes. "Se o governo dissesse 'eu vou
devastar', 'eu vou fazer uma verdadeira devastação social' ele teria o
repúdio. Então, a grande alquimia, a falácia que é profunda falsidade, é
dizer que eu vou criar direitos destruindo direitos."
Antunes
acredita, contudo, que tais medidas "não são inevitáveis": "O movimento
sindical pode impedi-las, os movimentos sociais podem impedi-las".
Confira a entrevista, na íntegra:
Jornal
do Brasil - Na semana passada, o então presidente interino defendeu a
proposta de reforma trabalhista, com o argumento de que a intenção não
seria retirar direitos, mas manter
empregos. Ele também informou que deveria enviar a proposta de reforma
trabalhista e de regulamentação do processo de terceirização ao
Congresso até o
final deste ano. Hoje [quarta-feira], prometeu “modernizar as leis
trabalhistas", "para
garantir os atuais e gerar novos empregos”.
No ano passado, quando conversamos, o
senhor reforçou que o projeto de terceirização aprovado pela Câmara dos Deputados geraria escravos modernos, e que
era imperioso derrotá-lo. Onde estamos agora?
Ricardo Antunes -
Estamos no pior momento. Governo nenhum que destrói direitos diz que
vai destruir direitos. Nós acabamos de ver, por exemplo, na
França, o
governo de [François] Hollande iniciar um processo de destruição de uma
parcela importante dos direitos do trabalho, dizendo que não ia destruir
direitos.
A vitória parlamentar que consolida o 'golpe', no
sentido parlamentar do termo, que hoje [na quarta-feira] se consolidou
impeachmando o governo Dilma, abre caminho para uma série de mudanças
que são profundamente destrutivas em relação à classe trabalhadora. Isto
é muito importante que se tenha claro.
Primeiro ponto,
o preceito, o princípio fundamental do governo Temer é o princípio do
"negociado
sobre o legislado". O projeto "Ponte para o Futuro", que na verdade é um
atalho para o abismo
social, diz que vai haver negociado sobre o legislado sem a perda de
direitos. Só que é impossível
estabelecer o primado negociado sobre legislado que não seja para
reduzir direitos. A ideia do governo não é estabelecer o negociado sobre
o legislado para avançar nos direitos, é para reduzir os salários, é
para flexibilizar a jornada de trabalho, é para intensificar o banco de
horas, é para fazer com que haja redução da jornada com redução do
salário.
Então, é evidente que esse preceito do negociado sobre o
legislado enfraquece o conjunto da classe trabalhadora e traz a
corrosão dos direitos. Ainda nos sindicatos que têm alguma força, a
perda será menor, mas será perda. Não há negociado sobre legislado em
condição de crise que beneficie a classe trabalhadora.
Mas você
imagina, com o conjunto de sindicatos do país inteiro que
tem menor força organizativa, é óbvio que a ideia é reduzir direitos que
foram adquiridos desde a CLT. Nenhum governo vai dizer abertamente,
ainda mais um governo conservador e sem legitimidade, porque resulta de,
digamos, um rearranjo, em que o programa que ele quer implementar não
tem o respaldo das urnas.
O resultado disso é que, junto com o
negociado sobre o legislado, vem a ideia de avançar na terceirização do
trabalho. A terceirização do trabalho é também dita pelo
governo como um caminho para criar empregos, mas isso é de uma falsidade
enorme.
Alguém pode dizer, "mas, professor, existem hoje 12
milhões de terceirizados no Brasil, são 12 milhões de empregos". Um
número
significativo de trabalhadores hoje é terceirizado -- homens e mulheres
terceirizados --, só que os trabalhadores terceirizados e as
trabalhadoras terceirizadas trabalham em média mais horas semanais do
que os trabalhadores regulados pela CLT. Se eles trabalham mais horas e
recebem menos, onde existem três ou quatro trabalhadores ou
trabalhadoras celetistas, eles vão ser
substituídos por três ou dois trabalhadores ou trabalhadoras
terceirizados.
Basta um pouco de aritmética e de matemática para
saber que onde um número x de trabalhadores realizava um certo tipo de
trabalho, agora esse mesmo trabalho, essa mesma atividade será realizada
por um número inferior. Ou seja, a terceirização desemprega. Ela não
emprega. Ela empregou 12 milhões, mas ela desempregou 15 ou 16 milhões,
em condições mais adversas, porque os salários são significativamente
menores e em condições de trabalho que frequentemente burlam a
legislação do trabalho.
O resultado desse desenho, dessa
propositura do governo é destruir a CLT. E o que significa destruir a CLT?
É destruir o que a classe trabalhadora considera como sendo a sua Constituição,
porque desde a sua implementação em 1943 que ela desenhou um conjunto de
direitos sociais do trabalho.
O IBGE publicou que nós já estamos
com 11,6% de desemprego, que significam 11,8 milhões trabalhadores e
trabalhadoras sem emprego. E esses dados minimizam, porque nós sabemos que um
trabalhador ou uma trabalhadora que em certo período não procura mais emprego,
porque não encontra emprego, some das estatísticas como desempregado. E por que
ele não procura emprego? Porque é muito caro, trabalhoso, árduo e
difícil procurar emprego por dois, três, quatro, cinco dias. Você precisa
de dinheiro para sair, pagar a condução, alimentar-se, no final do dia você
volta de uma jornada extenuante sem nenhuma resposta positiva. Um mês depois o
trabalhador desiste, porque ele percebe que não há portas abertas. E ele some
da estatística como desempregado. O mesmo vale para quem trabalha algumas
horas por semana. Quem lava carros algumas horas por semana não está empregado.
Há uma massa enorme de desempregados e subempregados que as estatísticas não
contemplam.
Por isso o projeto é nefasto, e ele
é uma imposição dos interesses financeiros que comandam a economia do país.
Isso atinge bancários, metalúrgicos, trabalhadores de call center,
jornalistas, professores, o conjunto de trabalhos acaba tendo como resultante o
enfraquecimento.
Agora, se o governo dissesse
"eu vou devastar", "eu vou fazer uma verdadeira devastação
social", ele teria o repúdio. Então, a grande alquimia, a falácia, que é
profunda falsidade, é dizer que eu vou criar direitos destruindo direitos. É
disto que se trata.
Não há nenhuma pesquisa séria,
rigorosa, com critério científico, realizada nas universidades, que demonstre
vantagens para a terceirização. Quem defende que a terceirização é vantajosa é
a Febraban, são as federações das indústrias, etc.
Não é por acaso que, algumas
semanas atrás, o presidente da Confederação Nacional das Indústrias fez o
absurdo de propor que a classe trabalhadora brasileira pudesse ter uma jornada
de até 80 horas por semana, dizendo, um erro grotesco, que assim já era
até na França. Quer dizer, é um erro crasso, porque a França é um país
que, digamos assim, ainda que o governo Hollande esteja tentando destruir
parte desses direitos, os trabalhadores franceses, com a trajetória que têm,
consolidaram direitos e, segundo, mostra até onde pode chegar o sonho de
setores do empresariado industrial que querem isto que eu disse na entrevista
[anterior ao JB] e que é inteiramente atual: recuperar formas de
escravidão moderna de trabalho. Nem na escravidão os trabalhadores
trabalhavam 80 horas por semana, para que se tenha uma ideia do absurdo.
Depois nós sabemos que o presidente
da CNI negou a fala, mas a fala está gravada, foi citada pela grande imprensa,
certamente a grande imprensa não inventou, foi um descuido do presidente,
que mostra até onde é capaz de avançar o imaginário empresarial.
Por fim, os jornais de hoje
[quarta-feira] mostram também que até o número de trabalhadores autônomos, os
chamados "empreendedores", recuou neste último trimestre porque o
desemprego não só atingiu o emprego formal como também estão sendo fechadas
atividades pequenas, criadas por esses trabalhadores que acreditaram no chamado
“empreendedorismo”, percebendo que é muito mais difícil num contexto de crise
sobreviver. E a média salarial também se reduziu neste último trimestre.
Este é o cenário, portanto, muito
desfavorável para a classe trabalhadora.
Jornal do Brasil - Como o professor
analisa o argumento que diz que é preciso reformar as relações de trabalho
porque a CLT é velha e porque seria preciso reduzir os custos da produção para
alavancar a economia?
Ricardo Antunes - Coloco esta fala
exatamente como a fala do Consenso de Washington no início dos anos 1990,
quando dizia "é preciso privatizar tudo, é preciso desregulamentar tudo
para que haja crescimento e expansão", e nós só temos destruição, só temos
maior desemprego, maior empobrecimento da população. Porque exatamente onde
esse sistema se expandiu, mais ele destruiu.
Vou dar um exemplo, que é
emblemático. Existe na Inglaterra, já há um certo tempo, um sistema de
contratos chamado zero hour contract, contrato de zero hora. Ele vale para
trabalhadores de cuidados, o chamado care em inglês, enfermeiros, médicos, jornalistas,
transportadores de passageiros, eletricistas, etc., é uma gama de atividades.
Como funciona? O trabalhador ou a trabalhadora tem contrato de zero hora, o que
significa que ele não tem uma jornada fixa, mas tem que ficar à disposição dos
chamados. Se num dia ele não recebe nenhum chamado, ele não tem trabalho, no
segundo dia ele não recebe nenhum chamado, ele também não tem nenhum trabalho,
no terceiro, quase terminando as 72 horas que ele está esperando, ele recebe um
chamado, e ele simplesmente vai receber por este chamado que ele fez.
Vejamos, um médico vai atender uma
família de pacientes, tem lá um aplicativo que vai receber por este
atendimento, e ao mesmo tempo o aplicativo, ou seja, a empresa que detém o
controle do seu trabalho -- McDonald's e tantas outras empresas usam
amplamente esse sistema na Inglaterra, grandes empresas --, o que vai acontecer
é que ele vai receber pelo horário que trabalhou, só que ele está há 72
horas disponível e recebe, digamos, se o seu trabalho durou uma hora, uma hora
de trabalho.
Isso, evidentemente, é exemplo cabal
da brutalidade das novas modalidades de trabalho que consideram os
trabalhadores qualificados, tendo a disponibilidade total pro trabalho, só
percebendo remuneração quando efetivamente trabalham. Isto se facilitou muito
pelo mundo do trabalho digital, online, que faz com que trabalhadores
assalariados e assalariadas das tecnologias da informação, e de tantos outros
setores, munidos de um celular, estejam em disponibilidade eterna para o
trabalho, ainda que essa disponibilidade eterna para o trabalho tenha como
resultado uma remuneração precária e frequentemente insuficiente.
Os empresários dizem "ora, mas
ele aceita o trabalho zero hora se ele quiser". É verdade. Mas por que ele
aceita? Porque não tem outro trabalho. O trabalhador, quando está
desempregado, aceita um trabalho em que receba alguma coisa, num sentido
cada vez mais degradante. E essa realidade é impulsionada pela terceirização,
ela é impulsionada por essas regras de uma flexibilização total do mercado de
trabalho.
No Reino Unido, já chega à casa de 1
milhão de trabalhadores. O problema é forte, e tem um debate intenso inclusive
nos sindicatos porque é uma forma de escravidão moderna do trabalho online. Se
você combinasse esse trabalho online com a precarização dos trabalhos offline,
do trabalho manual, dos trabalhos, digamos, mais braçais, os trabalhos de
vários setores de serviços que também são online mas muito duros como trabalho
de call center, o quadro é bastante negativo no que diz respeito ao mundo do
trabalho.
No Brasil, nós já temos esse contrato
[de zero hora]. Há médicos fazendo isso. Se você liga para pedir um eletricista
para cuidar da sua casa, a companhia de seguro chama o trabalho de um contrato
de zero hora. Ele presta esse trabalho, recebe por isto e fica chamando outro
chamado. Se tem, tem. Se não tem, não tem.
O Uber é outro caso similar. Eu fui
conhecer o sistema de Uber outro dia, conversando com um motorista. Ele era
veterinário que simplesmente tinha perdido o seu trabalho na clínica
veterinária e, como ele tinha um carro, tinha a alternativa de utilizar-se do
automóvel para atender chamados de modo que ele pudesse não ficar desempregado
e pagar as contas. Esta é uma tendência que, se o PLC 30/2015 [conhecido
como projeto de terceirização], que está hoje no Senado, for aprovado e
permitir o fim da separação entre a atividade-meio e a atividade-fim, e a consequente
permissão da terceirização total, nós estamos abrindo todas as portas para uma
desregulamentação geral do trabalho.
Jornal do Brasil - Como fica a ação
sindical neste contexto?
Ricardo Antunes - São dois elementos
importantes. Primeiro, onde há resistência sindical, os empresários não
conseguem implementar [reformas] com esta intensidade. Por exemplo, a França,
que tem tradição de luta sindical, a Alemanha, que também tem sindicatos
fortes, etc., consegue segurar e impedir a intensidade dessas medidas de
desregulamentação do trabalho. Na Inglaterra, pelo contrário, onde o
neoliberalismo foi devastador, muitos sindicatos foram profundamente atingidos.
Nos Estados Unidos e em outros países, todos eles são neoliberais, mas alguns
são mais devastadoramente neoliberais, como inclusive foi o caso do
neoliberalismo inglês, um verdadeiro laboratório do neoliberalismo na Europa,
mais agressivo, com Margaret Thatcher, depois com John Major.
Onde os sindicatos são mais fortes, a
resistência é maior. Agora, a defesa dessas medidas [do governo no Brasil] é
antissindical, é diminuir a solidariedade entre os trabalhadores, é criar
situações, onde, digamos, não consigam preservar os laços de solidariedade.
Porque, a terceirização é uma contratação entre empresas, a contratante e a
contratada, no qual a empresa contratada vai oferecer os trabalhadores que são
solicitados pela empresa contratante. Então não há um vinculo empregatício
entre a empresa e os trabalhadores que trabalham nela. Isto permite toda a gama
de burla, fraude de direitos e dificulta a organização sindical, na medida em
que você tem uma tendência à individualização das relações de trabalho.
O PJ, a "pejotização", é a
ideia de converter o trabalhador ou a trabalhadora como pessoa jurídica e
estabelecer o contrato de prestação de serviços. Quando ele adoece, por
exemplo, se ele não tiver bom sistema privado de saúde, não tem sequer recursos
para poder ter um atendimento de saúde. E essa pulverização, esta
individualização, este exacerbar do individualismo e das relações
individualizadas entre empresa terceirizada e trabalhadores, tudo isso tende a
enfraquecer bastante a organização sindical.
É vital, portanto, que os sindicatos
compreendam isso. Para fazer um paralelo, do século 19 para o século 20, quando
as empresas deixaram de ser empresas mais tradicionais, empresas de origem
anteriormente manufatureira que se tornaram grandes empresas industriais, os
sindicatos deixaram de ser sindicatos de artesãos, e tiveram que criar o
sindicato da grande indústria. Hoje os sindicatos estão vivendo um desafio
assemelhado ainda mais profundo.
Em vez de grandes empresas
tayloristas e fordistas do século 20, que magistralmente o Chaplin caricaturou
na sua obra-prima "Os tempos modernos", hoje esta ideia de que cada
um deve ter uma relação de trabalho com uma empresa que contrata, sem a
mediação do coletivo, vai obrigar os sindicatos a reconfigurar, a redesenhar,
as formas de organização sindical. Isso não levará, no meu entendimento,
ao fim dos sindicatos, mas leva a uma necessidade imperiosa de os sindicatos se
reorganizarem.
Por exemplo, no passado, tínhamos
sindicatos das telefonistas que eram fortes, no Rio tinha-se a empresa estatal
de telefonia, a qual correspondia o Sindicato dos Trabalhadores Telefônicos do
Rio de Janeiro, assim valia para São Paulo e para outros estados
sucessivamente. Com a criação exponencial do trabalho online, do chamado
trabalho digital das teleoperadoras -- 70% do contingente é feminino no Brasil,
com esse trabalho das teleoperadoras, online, digitalizado, nasceu uma
categoria, que é a dos trabalhadores e trabalhadoras de Telemarketing. Muito
diferente do antigo trabalho do sistema de telefonia pública que existia nos
vários estados do Brasil nos anos 1960/1970. Isso está obrigando a que ou
sindicatos reelaborem e compreendam essa nova forma de ser, essa nova
morfologia do trabalho, ou está dando nascimento de novos sindicatos que já
estão tratando como realidade.
Você sabe que muitas trabalhadoras do
telemarketing estão isoladas umas das outras, há muita rotatividade, muita
informalidade, isso tudo é uma via que dificulta os sindicatos. Os sindicatos
são obrigados a repensar, a compreender essa nova morfologia do trabalho e como
é possível representá-las com autenticidade, com sentido de classe, e voltado
para os reais interesses das categorias que os sindicatos representam. É por
certo o desafio vital, um desafio global.
Se você vai à China, se você vai à
Índia, à Inglaterra, se vamos aos Estados Unidos, à França, Itália -- tenho
viajado para todos esses países, tenho tido a sorte de meus livros terem sido
publicados em todos esses países que eu me referi --, essa realidade é global,
e os sindicatos também sofrem um desafio global. E há experiências, sindicatos
que procuram dentro deste quadro novo se reorganizar, ainda que em uma situação
mais adversa.
Mas vou dar uma pista, ainda que
profundamente heterogeneizada a classe trabalhadora, ainda que bastante
fragmentada e bastante complexificada, há uma tendência comum em tantas e
diversas categorias profissionais. Como é essa tendência comum?
Relativamente homogênea, em meio a tanta heterogeneidade, como essa tendência é
homogeneizante? É a luta contra a precarização do trabalho, que atinge os
jornalistas, os trabalhadores da tecnologia de informação e comunicação, os
trabalhadores da indústria de software, atinge também os trabalhadores de call
center, atinge trabalhadores metalúrgicos, atinge trabalhadores das cadeias
produtivas globais.
Hoje, as empresas-mãe, as empresas
centrais, elas têm a sua marca e elas vão terceirizando a sua produção em
várias partes do mundo. A Apple, por exemplo, tem como grande montadora
a Foxconn, na China -- a Foxconn também tem unidade no Brasil. Isto cria,
inclusive, uma dificuldade, porque a Foxconn realiza toda a montagem dos
produtos da Apple, mas não aparece a marca Foxconn, aparece a marca
Appple. E nem todos sabem que a Apple é montada pela Foxconn.
Em 2010, na Foxconn na China, na
unidade de Shenzhen -- os salários eram entre 100 e 200 dólares, dependendo
do nível de hora extra --, houve 17 tentativas de suicídio de trabalhadores
dado o estressamento, a superexploração do trabalho. Das 17 tentativas de
suicídio, 13 delas tragicamente ocorreram. O que levou a uma grita
generalizada, que inclusive acertou a Apple, porque não só se pressionava a
Foxconn como a Apple que contratava a Foxconn. Então, o que a Foxconn é?
Uma grande empresa transnacional de terceirização global. É verdade que, no
caso da China, há ausência de sindicatos livres, isso tem desafiado a classe
trabalhadora chinesa a pensar em alternativas, a pensar em outras formas de
movimento, assim como a classes trabalhadora em tantas partes do mundo.
Jornal do Brasil - O senhor também
tinha comentado sobre o potencial de mudanças como o projeto de terceirização
de rebelar os trabalhadores e trabalhadoras.
Ricardo Antunes - Há exemplos de
empresas de call center e telemarketing onde tem havido manifestações, greves.
Por exemplo, a Foxconn que eu citei esses suicídios e a intensidade da
exploração do trabalho, isso vale para muitas outras empresas similares. Isso
tem levado às mais distintas formas de rebelião. No caso da Foxconn da China, o
uso da internet mostrando as dificuldades das condições extenuantes de trabalho
e intensificação da expansão do trabalho.
Eu coletava na semana passada o
depoimento de uma trabalhadora de montagem de produtos digitalizados no Brasil.
Ela dizia "olha, a gente tem a sensação de que um trabalho é separado do
outro, que eu estou pondo um vidro aqui de um equipamento que eu nem sei o que
que é", mas só o fato de ela fazer essa pergunta já é sinal de uma
percepção de que algo não vai bem.
Há greves no setor de telemarketing
no Brasil. Nós tivemos greves. Há pesquisas novas, há esboços de organização
sindical, há descontentamentos que vão desde o uso da internet até greves,
paralisações, revoltas. É por isso que nós estamos tendo tipos diferentes de
revolta, as greves ainda são recorrentes, a ideia de ter um sindicato que
representa os trabalhadores e trabalhadoras também é vital.
Por que eles buscam o sindicato por
mais que a campanha antissindicato seja forte? Porque o sindicato é uma
ferramenta de defesa da classe trabalhadora. Os sindicatos têm que representar,
porque se não representarem, esses trabalhadores vão buscar outros caminhos,
outras formas de manifestação de rebeldia, de luta, quer no plano sindical,
quer fazendo greves, quer através de depoimentos por internet e outras, a
classe trabalhadora demonstra a forma da intensidade da exploração a que estão
sujeitos.
Jornal do Brasil - O senhor pode falar
sobre a questão do desemprego que já vinha se desenhando devido ao esgotamento
de um ciclo econômico, e o desemprego que poderia vir agora; e a precarização
do trabalho que já tínhamos antes e a precarização do trabalho que pode haver
agora, no Brasil?
Ricardo Antunes - Nós tivemos no
Brasil entre 2003 e 2013 um crescimento expressivo dos empregos, na casa de
mais de 20 milhões, porque o país teve um ciclo de expansão econômica forte.
Acontece, entretanto, que, a partir de 2013, 2014, a crise econômica global
passou a ter repercussões mais profundas nos chamados Brics, na China, na
Índia, na Rússia, no Brasil, na África do Sul, em vários outros países,
especialmente Índia, China, Brasil. Este primeiro movimento, aliado a
uma série de equívocos que vinham sendo praticados pela política econômica
vigente, acabaram levando a um esgotamento do ciclo, acabaram levando a um
quadro onde o mito do país do grande crescimento, o mito do país da grande
expansão, o mito do país que ia para frente começasse a soçobrar.
Nós [Brasil] começamos a ter, então,
a partir de fim de 2014, início de 2015, uma acentuação das tendências
declinantes e o reaparecimento forte do desemprego. Só para tratar deste último
período, uma política completamente equivocada, o que fez o governo Dilma?
Foi buscar um ajuste fiscal bastante nefasto, comandado por [Joaquim] Levy, que
era o segundo homem de um grande banco no Brasil, ou seja, completamente
imbuído de um projeto neoliberal de desregulamentação do trabalho e de um
ajuste fiscal privatista, que diminuiu os efetivos de estado na economia.
Esse ajuste fiscal brutal retraiu
fortemente a economia, porque foi exatamente o receituário utilizado pelo
sistema financeiro para preservar superávit primário, primeiro pagar juros da
divida, depois tentar um novo ciclo de expansão. Quando o governo Dilma entra
na crise política profunda que entrou -- isso começa em 2015, num quadro que
vai se acentuando -- a política recessiva também é implementada, isso fazendo
com que aquela tendência declinante fosse se expandindo, e o desemprego passa a
aumentar.
Quando Dilma sofre a abertura do
processo de impeachment na Câmara dos Deputados, quer dizer, no meio de uma
crise política profunda, houve uma retroalimentação, crise política e crise
econômica. Sobe, inicialmente em forma de interino, o governo Temer, e este
governo vai começar a tomar uma série de medidas claramente de
desregulamentação do trabalho, de botar o pé no breque, e gerenciar uma
política de arrocho, de tal modo que você tivesse como consequência não mais o
incentivo à produção, mas um desincentivo à produção e o consequente aumento do
desemprego.
Por isso que, desde que o Temer
assumiu, há mais de 100 dias, o desemprego não para de aumentar. O seu
receituário é ainda mais destrutivo do que o do primeiro ano de Dilma. É um
receituário da privatização, da desregulamentação e da precarização do
trabalho, os três tomados em um acelerador em ritmo alto.
Então, o que está acontecendo neste
último período? O crescimento do desemprego que estamos vendo neste último trimestre
-- maio, junho e julho -- é, por um lado, ainda saldo das medidas tomadas pelo
ministro banqueiro Levy no primeiro ano do governo Dilma. Esse trimestre já
traz aumento desse desemprego porque as medidas tomadas pelo também banqueiro
[Henrique] Meirelles no governo Temer são medidas destrutivas em relação ao
crescimento de emprego e destrutivas em relação ao trabalho.
Qual é o resultado? Nós chegamos hoje
a níveis oficiais de quase 12 bilhões de desempregados, quando na verdade nós
temos níveis muito maiores. E no movimento da economia que nós estamos hoje...
Mesmo hoje, qual foi a medida do Banco Central? Manter os juros altos. Juros
altos, remuneração do sistema financeiro, recursos são drenados para garantir
o superávit primário, e o Estado perdeu aquela impulsão que dava para o
incentivo de novos empregos.
Por isso que qualquer análise séria
reconhece que o cenário que vamos ter nos próximos dois trimestres, que
compreendem o ano de 2016, é desalentador, e vai fazer com que o movimento
sindical e os movimentos sociais lutem ardorosamente para impedir que essas
medidas sejam aplicadas. Porque isto também é verdade, essas medidas não são
inevitáveis, o movimento sindical pode impedi-las, os movimentos sociais podem
impedi-las.
O que nós vimos hoje (quarta-feira)
no Senado é expressão disso. Criou-se um pretexto de depor um governo pelo
conjunto político da sua obra, por uma posição que não ganha as eleições. Isso
independe da avaliação que se faça do governo que cai. Eu, por exemplo, sou
muito crítico em relação ao governo que caiu, muito conciliador e praticamente
sem nenhuma ousadia para tentar mudanças mais profundas. Só que o governo que
ganha, que sai desse processo de impeachment, na verdade, ele é a pura
representação desses interesses dominantes. A tendência dele é aumentar a
repressão, como se viu em São Paulo [nas manifestações contra o governo de
Michel Temer na quarta-feira].
Nós vamos entrar numa época de
confrontação social, de manifestações sindicais e sociais, o que não depende
nem de longe de imaginar que o governo vai ter calma e tranquilidade. O período
que vai de 2016 a 2018 será uma sucessão amplificada e articulada de crises
sociais e crises políticas, porque esse governo não tem legitimidade.
O decisivo neste momento seria que um
processo de novas eleições fosse realizado, um plebiscito popular decidiria se
quer ou não novas eleições, e a partir disso nós tentarmos sair desta crise. Um
governo sem legitimidade não sinaliza saída da crise porque a saída da crise
tem elementos de profundidade que não são resolvidos no discurso de Temer e
seus ministros. A crise tem causas estruturais muito mais profundas.
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