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segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Segunda Guerra vista do bunker

Cultura

Resenha

A Segunda Guerra vista do bunker

por Elias Thomé Saliba — publicado 14/06/2015 08h32
Os diários de uma aristocrata russa que integrou o complô contra Hitler 
Princesa-Vassiltchikov
A princesa Vassiltchikov, obrigada a destruir papéis

A guerra anulou a experiência humana. Os homens voltaram das batalhas emudecidos, incapazes de reconstituir os acontecimentos. Quando escreveu isso a propósito da Primeira Guerra Mundial, sem nem sequer supor a catástrofe humana do conflito posterior, o filósofo Walter Benjamin referia-se aos memorialistas, aqueles que, testemunhas dos embates, desenvolveram uma ansiedade autoprotetora ao assumir a condição de narradores. Talvez por isso tenham sido raríssimos os diários escritos durante o desenrolar dos eventos a chegar até nós. 
Uma dessas raridades são os Diários de Berlim, 1940-1945 (Boitempo, 480 págs., R$ 69), de Marie Vassiltchikov, princesa russa que, ainda criança, logo após a Revolução de 1917, exilou-se com a família na França e na Lituânia. Na Berlim de 1939, conseguiu emprego como tradutora e secretária no Departamento de Informações do Ministério das Relações Exteriores do Estado Nazista. Esse departamento era constituído de intelectuais, jornalistas, fotógrafos e escritores um pouco distantes tanto da SS (a unidade de proteção da elite do Partido Nazista) quanto do seu Serviço de Segurança, que concentrou a maior parte de cientistas a planejar o Holocausto.
Os diários de Marie são originais não apenas porque foram escritos por uma mulher nos porões nazistas. Eles também se transformaram em registros quase únicos da fracassada Operação Valquíria para assassinar Hitler, em
julho de 1944. Datilografados e divididos em partes espalhadas por diferentes lugares, com vários trechos escritos em um código taquigráfico pessoal, só puderam ser reunidos pela autora após a Guerra. Ainda assim, antes do fim do conflito, páginas foram destruídas por ela em razão de suas óbvias implicações com a conspiração. Grande parte do material, sobretudo as fotografias, nunca foi recuperada. As páginas escritas entre julho de 1941 e julho de 1945 desapareceram (e o irmão da autora, George, reconstituiu esse período utilizando-se de cartas e registros posteriores). Somente 30 anos após a Guerra outros lapsos foram completados pela autora, que publicou a totalidade dos Diários em 1978, poucas semanas antes de sua morte.
O conjunto destaca-se pelo estilo direto e pela ingenuidade aristocrática em dividir os personagens entre aqueles com “decência” (os civilizados) e os que não tinham nenhuma, tacanhos e brutos. “Ele é fora do comum. Todos os seus esforços têm por foco os valores de uma ordem superior, com os quais nem a disposição deste país nem a dos Aliados possuem sintonia. Ele vive em um mundo mais civilizado, coisa a que – lástima – nenhum dos lados parece pertencer.” Esse trecho é a descrição que Marie faz de seu chefe e amigo, Adam Trott, mas pode ser lido como a descrição dela própria. 
Os primeiros dois anos do diário, que cobrem o período de vigência do pacto nazi-soviético, não são nada agradáveis para Marie, pois muitos desconfiam de sua condição de aristocrata russa. Tal clima é atenuado pela ampla rede de relações com amigos de todas as nacionalidades, egressos da aristocracia europeia. A situação muda após 1941, quando a União Soviética se torna inimiga, exigindo maior dedicação de Marie e ao mesmo tempo criando uma redoma de proteção a si mesma, pois ela tornara-se mais útil pelo seu conhecimento do inglês, do alemão e, é claro, do russo. 
As entrelinhas revelam seu profundo envolvimento na conspiração. Alguns trechos são cômicos: “Depois do jantar, discutimos longamente com um zoólogo famoso sobre a melhor maneira de nos livrarmos de Adolf. Ele disse que na Índia os nativos usam pelos de tigre picados e misturados à comida. A vítima morre alguns dias depois e ninguém consegue identificar a causa. Mas onde poderíamos encontrar pelos de tigre por ali?” Dois dias após a descoberta da conspiração, a ingênua Marie tentou convencer a atriz Jenny Jugo a obter do ex-amante, Joseph Goebbels, notícias sobre o paradeiro de Adam Trott. “É uma completa loucura falar com um tal canalha que acredita, como Stalin, que a gratidão é uma doença dos cães”, respondeu Jenny. 
Interior-do-QG
O interior do QG do ditador após explosão, em julho de 1944
Restaram poucas referências diretas aos detalhes da malfadada Operação Valquíria, mas algumas ironias, como a de argumentar que faltou improvisação à milimétrica conspiração alemã. Uma consideração que remete à brincadeira de Lenin, segundo a qual nunca haveria revolução na Alemanha, porque no dia em que os rebeldes decidissem tomar as estações ferroviárias, entrariam na fila para comprar os bilhetes. Marie mostra que a operação não obteve apoio de setores importantes das Forças Armadas alemãs e que o golpe dependeu do sucesso de apenas um homem, Claus von Stauffenberg, a quem ela conheceu, frequentador do alto-comando nazista. 
Depois do fracasso da conspiração, a maioria dos colegas de Marie, alguns envolvidos no episódio, como Trott, foi presa e condenada à morte. Ela própria espanta-se por ter sobrevivido tanto às perseguições da Gestapo quanto aos bombardeios da ofensiva final sobre Berlim. Uma das razões para a sua sobrevivência foi o fato de haver hesitação no comando alemão em eliminar certos integrantes do departamento. Os nazistas poderiam ainda utilizá-los como instrumentos ou moedas de troca em eventual negociação com os aliados, o que não ocorreu.
De resto, além de constituir um raro testemunho ocular dos derradeiros bombardeios de Berlim, os diários trazem um depoimento sublime sobre o cotidiano da Guerra, com o frescor de quem mal completara 23 anos. E o fato de demorar em publicá-los reforça o vaticínio de Benjamin sobre a morte das palavras e o emudecimento pelo luto de todos os narradores da tragédia da guerra. 
*Reportagem publicada originalmente na edição 853 de CartaCapital, com o título "A guerra vista do bunker"

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