Cultura
Resenha
A Segunda Guerra vista do bunker
por Elias Thomé Saliba
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publicado
14/06/2015 08h32
Os diários de uma aristocrata russa que integrou o complô contra Hitler
A princesa Vassiltchikov, obrigada a destruir papéis
A guerra
anulou a experiência humana. Os homens voltaram das batalhas
emudecidos, incapazes de reconstituir os acontecimentos. Quando escreveu
isso a propósito da Primeira Guerra Mundial, sem nem sequer supor a
catástrofe humana do conflito posterior, o filósofo Walter Benjamin
referia-se aos memorialistas, aqueles que, testemunhas dos embates,
desenvolveram uma ansiedade autoprotetora ao assumir a condição de
narradores. Talvez por isso tenham sido raríssimos os diários escritos
durante o desenrolar dos eventos a chegar até nós.
Uma dessas raridades são os Diários de Berlim, 1940-1945 (Boitempo,
480 págs., R$ 69), de Marie Vassiltchikov, princesa russa que, ainda
criança, logo após a Revolução de 1917, exilou-se com a família na
França e na Lituânia. Na Berlim de 1939, conseguiu emprego como
tradutora e secretária no Departamento de Informações do Ministério das
Relações Exteriores do Estado Nazista. Esse departamento era constituído
de intelectuais, jornalistas, fotógrafos e escritores um pouco
distantes tanto da SS (a unidade de proteção da elite do Partido
Nazista) quanto do seu Serviço de Segurança, que concentrou a maior
parte de cientistas a planejar o Holocausto.
Os diários de Marie são originais não
apenas porque foram escritos por uma mulher nos porões nazistas. Eles
também se transformaram em registros quase únicos da fracassada Operação
Valquíria para assassinar Hitler, em
julho de 1944. Datilografados e
divididos em partes espalhadas por diferentes lugares, com vários
trechos escritos em um código taquigráfico pessoal, só puderam ser
reunidos pela autora após a Guerra. Ainda assim, antes do fim do
conflito, páginas foram destruídas por ela em razão de suas óbvias
implicações com a conspiração. Grande parte do material, sobretudo as
fotografias, nunca foi recuperada. As páginas escritas entre julho de
1941 e julho de 1945 desapareceram (e o irmão da autora, George,
reconstituiu esse período utilizando-se de cartas e registros
posteriores). Somente 30 anos após a Guerra outros lapsos foram
completados pela autora, que publicou a totalidade dos Diários em 1978, poucas semanas antes de sua morte.
O conjunto destaca-se
pelo estilo direto e pela ingenuidade aristocrática em dividir os
personagens entre aqueles com “decência” (os civilizados) e os que não
tinham nenhuma, tacanhos e brutos. “Ele é fora do comum. Todos os seus
esforços têm por foco os valores de uma ordem superior, com os quais nem
a disposição deste país nem a dos Aliados possuem sintonia. Ele vive em
um mundo mais civilizado, coisa a que – lástima – nenhum dos lados
parece pertencer.” Esse trecho é a descrição que Marie faz de seu chefe e
amigo, Adam Trott, mas pode ser lido como a descrição dela própria.
Os primeiros dois anos do diário, que
cobrem o período de vigência do pacto nazi-soviético, não são nada
agradáveis para Marie, pois muitos desconfiam de sua condição de
aristocrata russa. Tal clima é atenuado pela ampla rede de relações com
amigos de todas as nacionalidades, egressos da aristocracia europeia. A
situação muda após 1941, quando a União Soviética se torna inimiga,
exigindo maior dedicação de Marie e ao mesmo tempo criando uma redoma de
proteção a si mesma, pois ela tornara-se mais útil pelo seu
conhecimento do inglês, do alemão e, é claro, do russo.
As entrelinhas revelam seu profundo
envolvimento na conspiração. Alguns trechos são cômicos: “Depois do
jantar, discutimos longamente com um zoólogo famoso sobre a melhor
maneira de nos livrarmos de Adolf. Ele disse que na Índia os nativos
usam pelos de tigre picados e misturados à comida. A vítima morre alguns
dias depois e ninguém consegue identificar a causa. Mas onde poderíamos
encontrar pelos de tigre por ali?” Dois dias após a descoberta da
conspiração, a ingênua Marie tentou convencer a atriz Jenny Jugo a obter
do ex-amante, Joseph Goebbels, notícias sobre o paradeiro de Adam
Trott. “É uma completa loucura falar com um tal canalha que acredita,
como Stalin, que a gratidão é uma doença dos cães”, respondeu Jenny.
Restaram poucas referências diretas aos detalhes da
malfadada Operação Valquíria, mas algumas ironias, como a de argumentar
que faltou improvisação à milimétrica conspiração alemã. Uma
consideração que remete à brincadeira de Lenin, segundo a qual nunca
haveria revolução na Alemanha, porque no dia em que os rebeldes
decidissem tomar as estações ferroviárias, entrariam na fila para
comprar os bilhetes. Marie mostra que a operação não obteve apoio de
setores importantes das Forças Armadas alemãs e que o golpe dependeu do
sucesso de apenas um homem, Claus von Stauffenberg, a quem ela conheceu,
frequentador do alto-comando nazista.
Depois do fracasso da
conspiração, a maioria dos colegas de Marie, alguns envolvidos no
episódio, como Trott, foi presa e condenada à morte. Ela própria
espanta-se por ter sobrevivido tanto às perseguições da Gestapo quanto
aos bombardeios da ofensiva final sobre Berlim. Uma das razões para a
sua sobrevivência foi o fato de haver hesitação no comando alemão em
eliminar certos integrantes do departamento. Os nazistas poderiam ainda
utilizá-los como instrumentos ou moedas de troca em eventual negociação
com os aliados, o que não ocorreu.
De resto, além de constituir um raro
testemunho ocular dos derradeiros bombardeios de Berlim, os diários
trazem um depoimento sublime sobre o cotidiano da Guerra, com o frescor
de quem mal completara 23 anos. E o fato de demorar em publicá-los
reforça o vaticínio de Benjamin sobre a morte das palavras e o
emudecimento pelo luto de todos os narradores da tragédia da guerra.
*Reportagem publicada originalmente na edição 853 de CartaCapital, com o título "A guerra vista do bunker"
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