“Nós vamos entrar em um período de turbulência política”
Em entrevista durante o FSM, Boaventura Souza Santos fez uma análise dos novos partidos na Europa, falou sobre a ofensiva do imperialismo estadunidense na América Latina e sobre a conjuntura política brasileira; “O governo tem que saber de que lado está e não pode estar do lado de Kátia Abreu”, disse.
Por Simone Freire e Luiz Carvalho
De Túnis (Tunísia)
É
necessário romper com as lógicas do neoliberalismo para tentar superar a
atual crise política, econômica e social internacional. Alternativas
são possíveis e, embora estejam emergindo lentamente, já causam
impactos. Esta é a avaliação do sociólogo Boaventura Souza Santos,
professor do Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra
(Portugal).
Nesta entrevista, realizada durante o Fórum Social
Mundial (FSM) deste ano, em Túnis (Tunísia), ele falou sobre
alternativas de poder que surgiram recentemente como o partido Syriza,
na Grécia; e o Podemos, na Espanha. Para ele, as alternativas “não podem
vir dos partidos tradicionais”, pois perderam suas ligações com suas
bases.
A nova ofensiva do capitalismo na América Latina, o
interesse em desestabilizar o Brics, bem como a necessidade de uma
articulação internacional mais efetiva de movimentos sociais e uma
reforma política no Brasil também foram avaliados pelo sociólogo na
entrevista abaixo.
Começando pela Europa, o que podemos avaliar na atual conjuntura?
As
políticas que dominam neste momento são típicas do neoliberalismo. O
que estamos a assistir são cortes nas despesas públicas dos Estados, nas
despesas sociais, educação, saúde, privatização da previdência social,
redução dos
salários, precarização do trabalho. Muito das
características do mundo do trabalho que nós conhecíamos na América
Latina, o trabalho sem carteira assinada, nós, neste momento, também
encontramos na Europa.
No caso da Grécia, mais de 50% dos jovens
até os 29 anos estão desempregados. Na Espanha, não será muito diferente
dessa porcentagem. Portugal é menos, mas mesmo assim, o nível de
desemprego é alto. Sobretudo a Europa do sul está mergulhada em uma
profunda crise e não se vê qualquer alternativa neste momento, embora
ela comece a surgir, mas muito lentamente, fundamentalmente na Grécia,
com o partido Syriza, que ao ganhar as eleições ousou fazer algo que até
agora era considerado impossível, que era por nas negociações a
possibilidade de uma alternativa à austeridade e às políticas de
contração das despesas públicas.
Os partidos, sejam da esquerda
ou da direita, adotaram medidas do neoliberalismo. Os partidos
socialistas estão totalmente desacreditados na Grécia e na Espanha, em
Portugal nem tanto. E surgiram outras forças políticas que são um
fenômeno novo que é um tipo novo de partido com uma articulação forte
entre movimentos sociais e partidos. Isso é muito forte no Syriza e no
Podemos, da Espanha, partido que acho que ganha as próximas eleições em
dezembro deste ano.
No caso do Podemos, a formulação política é
feita pelos movimentos sociais e por cidadãos que apoiam o Podemos,
chamados ‘círculos de cidadãos’. Depois os círculos elegem as
assembleias de cidadãos, que definem a agenda política do partido. É uma
combinação entre democracia participativa e democracia representativa
dentro do partido. O melhor remédio contra a corrupção das lideranças
partidárias.
Penso que no final de 2015 nós teremos uma paisagem
política diferente na Europa. Tudo é uma incógnita e, como digo, os
sociólogos são bons para prever o passado, prever o futuro é sempre mais
complicado.
O senhor citou novas formas de
organização, mas ainda dentro de partidos. O que senhor acredita que
seja possível alguma forma de organização que não seja da maneira
tradicional, ou seja, com bandeiras e partidos?
Os
partidos de maneira nenhuma vão, nas próximas décadas, ter um monopólio
de representação política. A maioria das pessoas, sobretudo os jovens,
não são membros de movimento sociais, de ongs, nem de partidos. Os
partidos não souberam integrar esta juventude, burocratizaram-se demais
e perderam suas ligações com suas bases. Portanto, o que estamos a
ver, que vai haver uma intervenção política daquilo que eu chamo de
“presenças coletivas”. Não são movimentos, não são partidos, são
presenças coletivas nas ruas, são ações não institucionais.
Nós
vamos entrar em um período de turbulência política em que vai haver
muita ação dessas presenças coletivas, cuja orientação política é muito
difícil de definir. A polarização social em termos de esquerda e
direita é muito difícil de definir nestas presenças. Muitas delas são,
obviamente, de esquerda, outras são, obviamente, de direita, e outras se
recusam completamente a ser etiquetadas de direita ou de esquerda.
Isso
implica em saber se estamos diante de manifestações espontâneas ou de
espontaneidade manipulada. Acho que há das duas coisas e é muito difícil
distinguir. Há espontaneidade em muitos protestos de pessoas que não
foram integradas na cidadania e que acham que têm direito a melhor
educação, serviços de saúde, a melhor transporte público, e genuinamente
têm uma agenda que poderia continuar a identificar como de esquerda
mesmo que se recusem a ser definidos assim.
Por outro lado, nós
temos também, como na Venezuela, manifestações espontâneas que tem
exatamente por objetivo derrubar os governos progressistas e tem um
conteúdo de classe diferente, a classe alta. É muito claro perceber até
pela cor de pele das pessoas que estão nas manifestações. Neste momento
estas espontaneidades podem estar sendo manipuladas.
Eu tenho
defendido, e temos prova disso, que estamos entrando em um período em
que o imperialismo norte americano voltou ao continente. Isso não quer
dizer que há uma teoria da conspiração e que é tudo produzido pelos
Estados Unidos. Está interessado em desestabilizar e se infiltrar.
Quais os resultados da Primavera Árabe? Como enxerga a transição aqui na Tunísia?
Nós
estamos no país [Tunísia] onde a primavera árabe talvez tenha tido mais
êxito.Onde é que estão as continuidades? As continuidades são as que a
gente vê hoje na democracia. A democracia esta esvaziada de politicas
sociais. E o neoliberalismo esta conduzindo o desemprego e o declínio.
Este é um país, onde mais de 50% dos jovens também estão desempregados. É
um país onde a única indústria basicamente é o turismo. E com um
atentado, como o que aconteceu recentemente, pode destruir durante um
tempo o turismo.
É uma situação complicada porque a democracia
traz liberdade, mas não traz emprego. Então eles dizem e dizem muito bem
porque se cria uma frustração. O que aconteceu na Tunísia é muito
importante para o mundo, portanto é muito importante que estejamos aqui.
Sobre
o Fórum Social Mundial, você acredita que ele é hoje um instrumento
efetivo, que trás ações e pode trazer resultados futuros?
O
Fórum tomou a opção muito cedo de ser um ponto de reunião dos
movimentos sociais que poderiam viajar a Porto Alegre. Tem uma limitação
que foi não conseguir reunir aqueles que mais precisavam dele, que são
as organizações e os movimentos menores que não tem o apoio das maiores
organizações não-governamentais que financiam viagens. O que ele
permitiu foi que os diferentes movimentos e organizações fossem se
conhecendo e isso é uma vantagem que é inestimável.
Em segundo
lugar, o FSM tomou desde o início a opção, polêmica, de não intervir
diretamente com posições, com medidas e propostas concretas. Muitos de
nós criticamos isso e eu fui dos que criticaram. O que se viu é que a
certa altura o Fórum foi de desacreditando como uma fonte de
alternativas para um mundo que está pior do que estava antes.
A
grande oportunidade que o Fórum deu e que não se realizou é que é muito
importante os camponeses não falem só com os camponeses, as mulheres não
fazem só com o movimento de mulheres, os indígenas só com os indígenas,
os direitos humanos só com os direitos humanos e os trabalhadores só
com os trabalhadores. E [a participação mais ampla] foi uma conquista.
O
que nós não conseguimos, e isso é o maior fracasso do Fórum, foram
articulações sustentadas de movimentos entre diferentes tópicos.
Conseguimos já articulações grandes como a Via Campesina, mas é questão
dos camponeses.
O que nós temos que fazer cada vez mais é que as
lutas de um movimento tem que ser partilhada por outros movimentos. Isso
é que é o grande desafio.
Falando das alianças dos movimentos, quando
se forma os Brics, por exemplo, você acredita que é necessário a
construção de um bloco de movimentos que consiga acompanhar estas
questões? E qual o papel que você acha que os Brics vai exercer
efetivamente o mundo?
São duas questões diferentes, mas
relacionadas. No que diz respeito a segunda, os Brics são uma proposta
de governos. Não é dos movimentos sociais. É uma proposta de governos
que são de desenvolvimento intermediário e com grande populações e que
devido a estas características e, devido ao carácter excludente do
neoliberalismo, procuraram criar uma alternativa dentro do capitalismo,
aproveitando a dinâmica da China.
Os Brics são uma ameaça para o
capitalismo central nos EUA. Eles não são uma alternativa socialista,
mas são um deslocamento do eixo dinâmico do capitalismo que tem duas
ameaças fundamentais para o capitalismo norte-americano. Primeiro que
eles estão tentando se libertar da dominância do dólar como moeda
internacional. São uma ameaça em termos financeiros sobretudo porque
propõem a criação do banco dos Brics, alternativo ao banco mundial.
A
segunda grande ameaça é que tem modelos de desenvolvimento que tem
algumas características nacionalistas e que são completamente hostis ao
neoliberalismo. O esforço deles [EUA] é de desestabilizar e impedir que
estes países vão pra frente.
A outra pergunta, e que eu acho mais
importante, é que se isso também não deveria corresponder aos
movimentos sociais. E aqui é a grande dificuldade, porque nós nem sequer
a nível de América Latina conseguimos isso. Eu penso que muito da força
dos Brics deveria haver em uma articulação regional na América Latina a
partir do Brasil com outros países. A tentativa da Alba, na Unasul, do
Banco Sul, foram desestimulados. Essas eram lógicas onde os movimentos
sociais estavam envolvidos. Siituações de solidariedade que não se medem
apenas pelos interesses das multinacionais ou mercado.
Nos
movimentos sociais não temos tido uma dinâmica que permitisse dar um
enfoque mais anticapitalista aos Brics. Acho que o mais provável é que o
Brics comecem a perder força e cada um vá para o seu lado e não
consigam essa união porque vão ser objeto de muita desestabilização por
parte dos EUA.
No caso brasileiro, acredita
os meios de comunicação são fundamentais para orquestrar esta
desestabilização ou, pelo menos, para expandir esta insatisfação da
população?
Não podemos colocar tudo na questão da mídia.
Acho que temos uma acumulação de erros nestes últimos quinze anos. Em
primeiro lugar eu penso que o PT não soube manter e preservar uma
relação forte com os movimentos sociais.
Em segundo lugar não se
fez uma reforma política. Acho que um partido que tem a maioria do voto
popular e que depois tem que entrar em alianças com partidos que são
completamente hostis ao programa do próprio partido cria uma confusão e
paralisia que é chocante.
Em terceiro lugar, foi a questão da
corrupção. O financiamento dos partidos estando nas mãos das grandes
empresas. Você olha para os candidatos e elas financiaram praticamente
todos. Isso cria um distanciamento em relação ao movimento popular,
porque os partidos que são financiados por grandes empresas tem que
pagar de alguma maneira, as empresas estão pelo negócio não por
convicção política.
Por último acho que tem razão, a mídia foi
uma das grandes fraquezas. Não se toca na mídia e na sua articulação com
o capital financeiro. A ideia é que não se hostiliza a mídia porque não
vão nos hostilizar. Portanto a Globo ganhou muito com a publicidade
institucional do governo enquanto mídias alternativas, que precisavam de
muito mais apoio, não tiveram. Neste momento negociar e regular vai ser
muito necessário, mas vai ser muito mais difícil porque vai se partir
de um momento de fraqueza dos governos.
Quanto mais urgente a
necessidade de regulação mais difícil dela ganhar. É o mesmo com a
reforma política. A situação brasileira é complicada e se misturarmos a
dimensão externa com o imperialismo norte-americano as coisas vão ser
turbulentas. Espero que haja uma solução progressista que tenha apoio
dos movimentos sociais. Mas tem que ter contrapartidas. O governo tem
que saber de que lado está e não pode estar do lado de Kátia Abreu se
quer ter os movimentos ao seu lado. Os movimentos no Brasil são
sofisticados e têm grandes líderes.
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