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quarta-feira, 28 de maio de 2014

A pacificação violenta da Maré

A pacificação violenta da Maré

Caio Castor
O histórico de violações cometidas pela Polícia Militar nas favelas do Rio de Janeiro, em especial o Bope, preocupam os moradores da Maré, que receiam que os abusos que estão ocorrendo com a presença do Exército piorem ainda mais quando a UPP for instalada e o Bope assumir o papel que o Exército desempenha hoje

Por Tatiana Merlino e Caio Castor, 
Do Rio de Janeiro, 
Especial para o Viomundo
Saindo de um canteiro na altura da Passarela 6 da avenida Brasil, no Rio de Janeiro, os dois moto-táxis nos conduzem por entre ruas, becos e vielas da Vila do João, no Complexo da Maré, rumo ao nosso destino final, o morro do Timbau.
No caminho, há carros, buzinas, motos, bicicletas, gente circulando, comércio a todo vapor. Em meio à vida movimentada de uma favela carioca, cruzamos com homens do Exército: fardados, roupas camufladas, usando óculos espelhados, luvas, capacete e portando fuzis.
Logo à frente, mais soldados, em cima de um jipe. E depois, mais homens, num tanque de guerra. No trajeto, de cerca de dez minutos entre a avenida Brasil e o local onde marcamos o encontro com moradores, cruzamos seis vezes com os militares, instalados no complexo de favelas da Zona Norte do Rio, onde moram 130 mil pessoas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No local de encontro, dois moradores nos esperam. Eles concordaram em conversar sob a condição de anonimato, pois explicam que desde a ocupação da Maré pela polícia, em 30 de abril, seguida dos 2.500 homens das Forças Armadas — 2.050 da Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército e 450 fuzileiros navais da Marinha –, que chegaram em 5 de abril, o clima entre os moradores é de medo e apreensão.
Muitos dos moradores que procuramos negaram-se a dar entrevistas, alegando receio de represálias. Mesmo quando dissemos que as
entrevistas poderiam ser feitas sob anonimato, recearam ser identificados de alguma forma e mantiveram a decisão de não falar.
39ª UPP
Em 30 de março, as polícias Militar e Civil do Rio de Janeiro deram início ao processo de ocupação das 16 comunidades que compõem o Complexo da Maré.
A força de elite da PM, o Bope (Batalhão de Operações Especiais) estava à frente da operação. Em 5 de abril, homens de tropas federais, comandadas pelo Exército, entraram na Maré para preparar a instalação da 39ª Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio.
A ocupação das Forças Armadas foi autorizada pela presidenta Dilma Rousseff por meio da lei da GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Os homens permanecerão na região até 31 de julho, após o término da Copa do Mundo — mas há possibilidade de extensão.
O Complexo da Maré está situado entre o aeroporto internacional Tom Jobim (Galeão) e o centro da cidade. Fica próximo a importantes avenidas expressas da cidade, a Linha Vermelha, a Linha Amarela e a avenida Brasil. Situa-se, além disso, na rota de deslocamento de parte dos 700 mil turistas que devem visitar o Rio de Janeiro durante a Copa do Mundo.
Apesar de sua excelente localização, o complexo não é servido com transporte público. Para entrar e sair, os moradores precisam se deslocar até as vias principais. Dentro, funcionam inúmero serviços de mototaxi.
No dia da entrada da polícia na Maré, 30 de março, o governador Sérgio Cabral disse que a ocupação foi uma resposta do povo do Rio de Janeiro ao crime organizado.
“Fomos provocados e intimidados nos últimos dois, três meses pelo poder paralelo em uma tentativa de enfraquecer uma política de segurança. É uma resposta que o povo do Rio de Janeiro e do Brasil reconhece”, afirmou.
Lógica de guerra
No entanto, a relação das forças de segurança do Estado com os moradores da Maré, marcada pela lógica da “guerra” ao tráfico, tem sido marcada por truculência, desrespeito e violência, e atingido principalmente os jovens e negros. E apesar da presença militar, o tráfico segue presente na comunidade. Apenas não ostenta mais suas armas na rua.
Entre os principais relatos estão abordagens repetidas, mandados coletivos de apreensão, arrombamentos de carros e assédio sexual. A maioria das violações, relatam os moradores, ocorre à noite, quando há pouca gente na rua. Há casos, também, de tapas na cara, intimidações e entradas nos domicílios na ausência dos moradores, por meio da “chave mestra”.
Um dos moradores que conversou conosco sob condição de anonimato contou que foi revistado várias vezes desde a chegada do Exército. “Às vezes, você entra numa rua e é parado. Anda mais um pouco, na mesma rua, e é parado de novo. Outro dia, abriram minha mochila e quando viram que eu tinha um computador, pediram a nota de compra. Me revistaram até quando eu estava passeando com meu bebê. Mandaram eu carregá-lo e revistaram o carrinho. Isso gera revolta”, define.
“Depois das 22 horas a situação piora e as pessoas começam a se recolher. Se a gente aparece na janela, xingam: ‘Sai daí filha da puta, entra!’ Há violações de domicílios, pegam dinheiro, pegam drogas”, denuncia Gilmar Cunha, morador da Maré e presidente do grupo Conexão G, organização não governamental que atua junto à população LGBT das favelas, com sede no complexo. “Há casos concretos, mas muitas pessoas não querem denunciar”.
Paz armada?
“Atenção moradores, aqui quem fala é a força de pacificação. Estamos aqui para servir e protegê-los. Mas precisamos de sua colaboração”, anuncia, de um tanque, a polícia pacificadora, na manhã do dia 5 de abril, enquanto soldados empunham fuzis e metralhadoras. “Como se pacifica com um tanque, com uma arma ponto 30?”, questiona um morador. “Como eles falam isso num território que consideram inimigo?”, indaga outro.

No dia da ocupação militar, uma manifestação intitulada “Maré resiste” questionou o processo de militarização da comunidade. “No ano que marca os 50 anos do Golpe Militar de 1964, soldados e tanques das forças armadas voltam a ocupar as ruas do Rio de Janeiro num espetáculo midiático sensacionalista. Dessa vez (novamente), as favelas são o alvo, tratadas como fontes da violência e inimigas da cidade”, dizia a nota de convocação do ato.
A participação dos moradores foi pequena. Com medo de represálias, apenas tiravam fotos, timidamente. Em um dos cartazes, perguntava-se: “Cadê mandado coletivo na Vieira Souto”, questionando o mandado de busca coletivo, assinado por um juiz, autorizando a entrada na casa das pessoas. Vieira Souto é uma avenida no bairro de Ipanema, região nobre da cidade. Nesse mesmo dia, de mãos dadas, crianças foram conduzidas para um caminhão e levadas para a delegacia. Só foram liberadas após a atuação de advogados militantes.
Terra sem lei
O Rio de Janeiro, acredita Gilmar Cunha, vive um processo de militarização das favelas. “Isso é notório.” E a ocupação da Maré, que para ele, é uma “invasão”, “está sendo marcada por casos de violência. De fato, a polícia e o Exército não estão preparados para um trabalho como esse. Eu não apoio a forma como está sendo feita a implementação dessa UPP. Não sou contra a política da UPP em si, mas contra a forma como eles se posicionam diante desse território, desvalorizando a vida, o ser humano”.
Para ele, não adianta sair “um dono e entrar o outro”, referindo-se ao tráfico e às Forças Armadas. “Queria que não tivesse UPP e que não tivesse tráfico. Não é a escolha de um ou de outro.”
Jorge Luiz Barbosa, coordenador da organização não governamental Observatório de Favelas, sediada na Maré, explica que antes da chegada da UPP o que havia na favela eram regras estabelecidas pelo tráfico, como hora de abrir e fechar o comércio, o horário para o término do baile funk, cobrança pela segurança dos comerciantes e decisão sobre horário de abertura das escolas. “Eram regras arbitrárias e violentas.”
Hoje, explica, “quando a polícia entra na forma de uma UPP, querem ser síndicos, donos do território, estabelecendo as mesmas regras: a que horas será o baile, se tem alvará do mototáxi, se o comércio pode ou não funcionar, se jovens podem se reunir. A polícia passa a assumir o papel de regular a vida na favela, que não é sua atribuição. Sai narcotraficante e entra polícia? Não estamos a fim de ter donos de novo. A população quer é ter liberdade para construir sua própria vida, sem traficante e sem policial”, define.
O que os moradores também dizem é que com a chegada do Exército na Maré o local virou “terra de Marlboro”, que, na gíria, significa terra sem lei, terra de ninguém.
“Os moradores, que já tinham que lidar com o tráfico, que continua lá, com as milícias, agora tem mais o Exército. Por mais que houvesse dificuldades na relação dos moradores com o tráfico, havia um certo código de convivência. Hoje, eles não sabem mais o que fazer. Se conversam com a polícia, podem desagradar o tráfico e sofrer represálias. Se falam com o tráfico, podem ter que responder por um processo de associação ao tráfico”, relata uma moradora de outra comunidade, que acompanhou a ocupação da Maré pelo Exército.
“O equilíbrio que existia entre as facções de tráfico foi rompido. Elas não se atacavam há muito tempo, mas começaram a se atacar, porque sentiram que a polícia não estava disposta a evitar esses confrontos, se mantendo à parte e deixando que o confronto acontecesse”, completa Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência. Para ele, a suposta situação de tranquilidade que a ocupação estabeleceria não se viu na prática. “Pelo contrário, as pessoas ficam com muito medo, muito recuadas.”
Sete noites sem dormir
O histórico de violações cometidas pela Polícia Militar nas favelas do Rio de Janeiro, em especial o Bope, preocupam os moradores da Maré, que receiam que os abusos que estão ocorrendo com a presença do Exército piorem ainda mais quando a UPP for instalada e o Bope assumir o papel que o Exército desempenha hoje.
Dona Edith é uma dessas pessoas [o nome é fictício, para preservar a entrevistada]. Moradora da favela Nova Holanda, trabalha com serviços gerais. Separada, mãe de duas filhas, conta que ainda está com olheiras, resquício das noites mal dormidas na semana que antecedeu a entrada do Exército na Maré. Foram sete noites sem conseguir dormir de ansiedade.
Sua vida e de sua filha de hoje onze anos nunca mais foi a mesma desde 2010, quando o Bope entrou em sua casa sem mandado judicial e achou que a menina, à época com sete, era um suspeito procurado pela PM. Ela dormia toda coberta por um edredom quando teve um fuzil apontado para sua cabeça. Desde então, ficou traumatizada. “Ela não pode ver imagem de caveira que vomita.” Ela faz referência à farda do grupo de elite da PM, que tem uma caveira gravada no ombro.
Embora insista que não é uma defensora do tráfico, dona Edith afirma ter mais medo dos policiais do que dos traficantes. “Se você não mexe com o traficante, ele não mexe com você”, afirma. O receio, então, é que com a saída do Exército e a entrada de um grande contingente do Bope, a história possa se repetir. “Além disso, tem as histórias das outras UPPs”, explica.
Enquanto apurávamos esta reportagem, ocorreu o caso do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira. Ele tinha 25 anos quando foi morto após policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) localizada na comunidade Pavão-Pavãozinho terem realizado uma operação na noite do dia 21 de abril para, segundo a PM, checar uma denúncia relativa ao tráfico de drogas no local.
A morte do rapaz gerou protestos, que foram acompanhados de um outro assassinato, de Edilson da Silva Santos, de 27 anos, morto com um tiro no rosto durante protesto de moradores que se seguiu à morte de Douglas. Outro caso que teve grande repercussão foi o do assassinato do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, que desapareceu após ser levado para uma UPP na Rocinha, em julho do ano passado. Mortes e abusos cometidos por agentes do Estado em área de UPP tem colocado a viabilidade do programa em cheque.
Violência é inerente à polícia
Na avaliação de Maurício Campos, a cada UPP que se instala nas comunidades, diminuem as expectativas positivas por parte dos moradores, já que há o exemplo de experiências negativas em outras favelas. Assim, “as condições para haver uma boa relação inicial entre forças ocupantes e moradores é cada vez menor”. Segundo ele, a violência policial é inerente à instituição “e já era praticada quando não havia UPP”. “Por mais que dissessem que seriam novos policiais, quem os formaria? Os próprios policiais da PM que já existiam, que tinham toda essa prática de violação, de desprezo pelo direito das pessoas das favelas”
Além disso, ele acredita que a violência também é inerente à ocupação em si, “que traz um elemento de tensão mais permanente entre polícia e comunidade. Com os policiais permanentemente na comunidade, as ocasiões para ocorrer atritos entre polícia e população são muito maiores”. Para Campos, a abordagem militar do problema da segurança é completamente falida. “Está demonstrado que o caminho militar é um fracasso. E a UPP é mais um passo no caminho militar, na ocupação militar, no enfrentamento militar”.
Para Mc Leonardo, nome artístico de Leonardo Pereira Mota, funkeiro, ex-presidente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) e morador da favela da Rocinha, onde há uma UPP instalada, a ocupação militar da Maré tende a ser “desastrosa”. Para ele, não é possível “esperar resultado bom de coisa ruim. E a militarização é ruim”.
Leonardo afirma que apoiaria a UPP se ela fosse a sigla de Unidade de Políticas Públicas e a polícia fosse apenas parte disso. “Mas não. A polícia é o projeto para favela, por meio do qual se coloca armas nas mãos de pobres para combater pobres armados.” Segundo ele, a mídia tentou apelidar o tráfico de poder paralelo, “mas, para mim, poder paralelo é a UPP. Ela tem um poder paralelo constituído. E as violações fazem parte desse poder paralelo dado às Forças Armadas e à polícia”, define.
Jorge Luiz Barbosa, do Observatório de Favelas, acredita que o uso das Forças Armadas para a segurança pública é um equívoco. “O Exército não está preparado para isso. Eles são uma máquina de guerra e não estão preparados para atuar no território. A presença deles nos dá a certeza que somos a população do território do inimigo. É desproporcional a presença de 2.500 homens numa comunidade que tem a presença de, no máximo, cem traficantes”.
Leonardo rebate uma crítica que é feita àqueles que se opõem ao projeto de UPP, que seriam defensores do tráfico. “Isso aí virou uma pegadinha. Não sou a favor do tráfico. Ele não tem nada de bacana, de lúdico, de legal, de romântico. Ele reproduz o que o capital produz, a opressão para o poder. Oprimir para ganhar dinheiro.” Segundo ele, quem irá agir contra a UPP “é o trabalhador favelado, que não vai aguentar. As pessoas tem relógio biológico”.
Recorte geracional
A popularidade da UPP junto aos moradores pode ser medida de acordo com a faixa etária, acreditam moradores de comunidades. “O idoso que quase não sai mais de casa, que quer dormir cedo, apoia a UPP”, explica Leonardo. “Mas o jovem, que precisa de cultura, que circula pela cidade, não”. Para ele, “está difícil gostar da UPP, porque muitas das vezes, tolhido de seu divertimento, o jovem está vivendo sob tutela”.
Marielle Franco, da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), concorda. “No dia da ocupação, vi senhoras tirando foto perto da cavalaria e com o comandante do Batalhão”. Porém, em outras favelas onde há UPP e as violações têm se tornado corriqueiras, mesmo os mais velhos já começaram a mudar de ideia.
“No Pavão-Pavãozinho, por exemplo, eu vi senhoras indignadas, dizendo ‘essas UPPs não valem nada’”. Já os jovens, explica, são mais afetados. “Eles dizem que não podem ficar na rua, que não podem fumar ou beber em paz à noite.” O que se vê, esclarece Marielle, é que o recorte é racial e geracional. “Ouvi de um capitão da UPP que a semente do mal era a juventude.”
Lourenço César da Silva, morador do complexo há mais de 40 anos e diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, acredita que a instalação da UPP da forma como está sendo feita na Maré representa a troca de uma violência por outra. “Lidar com a questão da segurança através de outra força é sempre negativo. O que eu faço é colocar numa balança. A minha expectativa é que morram menos pessoas.”
Fotos: Caio Castor

Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/28666

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