A confissão do coronel
O militar Paulo Malhães revela como, quando e por que sumiu com o corpo do deputado Rubens Paiva durante a ditadura
Alan Rodrigues (alan@istoe.com.br)
Às vésperas dos 50 anos do golpe militar
de 1964, respostas perseguidas há anos pelos familiares dos mortos e
desaparecidos políticos da ditadura começam a aparecer. Na quinta-feira
20, o coronel reformado do Exército Paulo Malhães revelou ao jornal “O
Dia” que ele foi um dos chefes da operação militar montada pelo
Ministério do Exército em 1973 para desaparecer com o corpo do deputado
federal Rubens Paiva, assassinado nos porões do DOI-Codi-Rio em 1971. O
militar, um dos mais atuantes agentes do Centro de Informações do
Exército (CIE), afirma na entrevista que as atrocidades cometidas por
ele e por seus pares foram feitas com o conhecimento prévio dos generais
do regime. Ele revela também que, para evitar o risco de identificação
dos militantes mortos, os militares arrancavam as arcadas dentárias e os
dedos das mãos dos presos políticos assassinados pelo regime. Eleito
parlamentar pelo PTB em 1963 e cassado dez dias após o golpe, Paiva –
agora sabe-se – foi enterrado duas vezes, uma no Alto da Boa Vista, zona
norte da capital carioca, e posteriormente nas areias da praia do
Recreio dos Bandeirantes, zona oeste da cidade. “Recebi a missão para
resolver o problema, que não seria enterrar de novo. Procuramos até que
se achou (o corpo). Levou algum tempo. Foi um sufoco para achar. Aí
seguiu o destino normal”, disse Malhães ao jornal. “Normal” era o mar
como cemitério. A confissão do militar vem à tona 43 anos após o
assassinato de Paiva e quatro dias depois de o jornal “O Globo” revelar
que a ordem de dar um fim definitivo à ossada do parlamentar partiu, em
1973, do gabinete do ministro do Exército Orlando Geisel, irmão do
ex-presidente da República, o general Ernesto Geisel.

Coronel confirma ter lançado o corpo de Rubens Paiva ao mar

Segundo o militar, ele recebeu a missão de “dar um fim” ao corpo do
parlamentar cumprindo uma ordem da Seção de Operações do Centro de
Informações do Exército (CIE), acostumado, diz a reportagem, a
“consertar cagadas” de militares de outros órgãos da repressão. O
militar, ouvido pelo jornal carioca, contou que montou uma equipe de 15
homens que, disfarçados de turistas, passaram 15 dias abrindo buracos na
praia, escondidos dentro de
uma barraca, até encontrarem a ossada
ensacada. “De lá, ele (o corpo) seguiu de caminhão até o Iate Clube do
Rio, foi embarcado numa lancha e lançado no mar. Estudamos o movimento
das correntes marinhas e sabíamos o momento certo em que ela ia para o
oceano”, disse. O oficial admite que sabia de quem era o corpo
procurado. “Eu podia negar, dizer que não sabia, mas eu sabia quem era,
sim. Não sabia por que tinha morrido nem quem matou. Mas sabia que ele
era um deputado federal, que era correio de alguém”, conta.
Malhães diz que estava investigando uma guerrilha no sul do Brasil
durante a prisão do deputado. Só ao receber a missão é que foi informado
de que o corpo tinha sido inicialmente enterrado em 1971 no Alto da Boa
Vista. Mas, na ocasião, os militares temiam que obras na avenida Edson
Passos acabassem revelando o cadáver. Então, o corpo foi retirado do
local no mesmo ano e novamente enterrado na praia do Recreio dos
Bandeirantes. Em 1973, o coronel conta que o CIE resolveu dar uma
“solução final”.

assassinado pelos órgãos de repressão militares.
A família quer que a morte sirva de exemplo
“Tiraram ele do Alto da Boa Vista, porque ia passar na beira de uma
estrada, levaram para o Recreio e enterraram na areia. Só que a Polícia
do Exército (PE) quase toda viu isso. Esse translado”, explica Malhães.
“O Leãozinho viu, não sei mais quem viu também, mas o troço veio à
tona”, acrescentou. “Leãozinho” era o coronel reformado Ronald José Mota
Batista de Leão, ex-chefe do Pelotão de Investigações Criminais (PIC).
Em fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade apresentou um relatório
parcial sobre o caso e disse que recebeu uma carta de Leão informando
que tinha visto Paiva ser recebido por dois agentes do Centro de
Informações do Exército: Rubens Paim Sampaio e Freddie Perdigão Pereira.
Em 20 horas de depoimento prestado à Comissão da Verdade do Rio de
Janeiro, o coronel reformado Paulo Malhães afirmou que chegou a pensar
em “enterrar, queimar, botar no ácido” o corpo do deputado. Mas que
resolveu “esse problema de modo que não deixou rastro”. A confissão de
Malhães ocorre no momento em que o Ministério Público Federal (MPF)
admite que denunciará, nos próximos dias, os agentes do regime
envolvidos na morte do ex-deputado Rubens Paiva. Para fundamentar a
denúncia, os procuradores da República ouviram 24 pessoas, em mais de 30
horas de depoimentos. Uma destas, o coronel da reserva Armando Avólio
Filho, na época no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do
Exército (PIC-PE), confirmou que viu, por uma porta aberta, o
ex-deputado sendo torturado pelo tenente Antônio Carlos Hughes de
Carvalho e levou o fato ao comandante do DOI-Codi-Rio, o então major
Belham, no dia 21 de janeiro de 1971. Hughes morreu no ano passado. Os
oficiais negam.

A filha do deputado Rubens Paiva, Vera Paiva, professora da USP,
afirmou que a família recebeu com surpresa e alívio as revelações de que
o corpo de seu pai foi desenterrado e jogado no mar em uma operação
comandada pelo Exército. “Para nós, essa revelação confirma algo que já
desconfiávamos: que meu pai foi assassinado, e não desaparecido.” Ela
espera que o esclarecimento total da morte de seu pai sirva de exemplo
às autoridades para que esclareçam outras mortes e demais crimes
ocorridos durante a ditadura, para “aliviar a alma das famílias”.
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