“Polícia de SP abre inquérito para investigar 'rolezinhos'
Jovens que participaram do ‘rolezinho’ no Shopping Metrô Itaquera, no último sábado, serão investigados sob suspeita de furto, de roubo e de perturbação do sossego (...)
Os ‘rolezinhos’ são encontros marcados pelas redes sociais que atraem centenas de jovens a shoppings. Eles entram pacificamente nos espaços, mas, depois, costumam promover correria.
Além do Itaquera, outros cinco shoppings conseguiram liminares da Justiça para coibir os eventos. Juízes determinaram multa de R$ 10 mil para quem for flagrado em tumultos. Jovens devem começar a ser intimados nos próximos dias para serem comunicados sobre a possibilidade de serem multados (...)
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) disse que a Corregedoria da PM vai investigar abusos cometidos por policiais na ação para coibir o ‘rolezinho’. A reportagem presenciou PMs dando golpes de cassetete num grupo que descia a escada rolante.” O debate sobre os ‘rolezinhos’ é muito mais complicado do que parece. Vamos começar pelos dois extremos:
Por um lado, shoppings são propriedades privadas e, como tais,
pertencem a seus donos e não ‘ao público’ ou ‘ao governo’. Por ser
privado, as regras de acesso ao seu interior são aquelas aplicadas às
propriedades particulares e não aos bens públicos. Você pode impedir um
estranho de entrar em sua casa, mas a polícia não pode impedir aquela
mesma pessoa de sentar no banco da praça pública.
Além disso, furto, roubo, dano ao patrimônio e produzir pânico ou tumulto são delitos.
Logo, se alguém entrou em um shopping e roubou, quebrou vidraça ou causou tumulto, cometeu um delito.
No outro extremo, racismo é crime, e impedir alguém de exercer seus direitos por causa de sua raça, cor ou etnia é racismo.
Ademais, embora o shopping seja uma propriedade privada, ele é aberto
ao público em geral e o proprietário está sujeito às regras
estabelecidas com os lojistas por contrato (imagine se o proprietário do
shopping resolvesse proibir o acesso aos shoppings: os lojistas não
conseguiriam
acessar suas próprias lojas). Além disso, embora seja
propriedade privada, ele também está sujeito a algumas regras de direito
público. Ao receber o alvará para construir e abrir o shopping, seu
dono aceitou regras de direito público. Entre elas, a de que o shopping
seria aberto ao público, independente de estar ali para comprar ou
apenas para olhar. A prefeitura certamente teria imposto outras
condições se aquela construção fosse para atende apenas os interesses de
seus donos, e não de uma comunidade muito maior.
Onde as coisas se complicam com os ‘rolezinhos’ é que não estamos
apenas nos dois extremos ao mesmo tempo, mas que também estamos no meio
entre esses extremos.
Um exemplo: não é racismo discriminar baseado em poder aquisitivo ou
classe social ou local de residência. Restaurantes de luxo fazem isso
todo o tempo ao estabelecerem preços inacessíveis para a maioria.
Passageiros da classe econômica são tratados de forma muito pior que os
da primeira classe. Casas de swing não deixam homens solteiros entrarem
mas deixam mulheres solteiras entrarem. Bancos têm agências exclusivas
para seus melhores clientes aos quais os demais não têm acesso. E esses
são apenas alguns entre milhões de exemplos diários onde o acesso a
propriedades privadas abertas ao público é restrito legalmente por seus
donos.
O problema
surge quando o dono do shopping passa a agir com base no ‘por sua cor ou
etnia, você parece pobre; logo não pode entrar’.
O racismo e outras formas de preconceito ilegais podem existir de
forma mascarada. Para ficar em um exemplo fácil, se uma empresa decide
que apenas pessoas com baixa taxa de gordura no tórax podem trabalhar em
determinada função, ela está, na verdade, prejudicando mulheres muito
mais do que homens pois mulheres tendem a ter – por razões óbvias – mais
gordura naquela parte do corpo.
O
mesmo pode ocorrer no 'rolezinho'. Ao dizer que pessoas vestidas de
certa forma não podem acessar determinado local, pode haver preconceito
ou mesmo racimos se a vasta maioria das pessoas que se vestem daquela
forma são negras e pardas. O contra-argumento, no caso, é que pessoas
negras, mestiças etc que se vestem de forma 'adequada' (o que quer que
isso signifique) podem acessar tal local. O contra-contra-argumento é
que pouquíssimas pessoas daquela etnia ou raça de fato se vestem da form
aceita pelo shopping e logo, são a exceção que reafirmam a regra. Ou
mesmo que pessoas brancas vestidas da mesma forma não sofrem o mesmo
tratamento. E assim vai.
Ao mesmo tempo,
temos que lembrar que os donos do shopping têm obrigações em relação aos
lojistas (de preservar a segurança do ambiente, por exemplo) e aos
demais frequentadores (de preservar sua segurança física, por exemplo).
Logo, precisam tomar as medidas necessárias para evitar tumultos e
badernas. Inclusive coibindo a permanência de arruaceiros no local.
O problema é que existe uma enorme distância entre preservar a ordem e
ativamente impedir ou dificultar o acesso de jovens pardos e negros
vestidos de determinada maneira. Daí o magistrado, na reportagem acima,
ter aplicado multa apenas para quem causou a baderna. A ideia não é
impedir o acesso, mas punir quem passar dos limites.
O cerne do problema, contudo, é que em um país sem espaços públicos
adequados, o shopping – ainda que seja um espaço particular – virou um
espaço essencialmente público (mesmo que não seja essa a intenção de seu
dono, ele lucra com isso), e ainda não nos reconhecemos como membros de
uma mesma comunidade. E isso, felizmente ou não, não é um problema que a
lei ou um magistrado consegue resolver por nós.
Fonte: http://direito.folha.uol.com.br
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