'Clarín': ensaio fala sobre a fantasia de viver no Brasil, país do "tudo bem"
O artigo da jornalista Soledad Dominguez que resgata uma parte preciosa da cultura brasileira,
ressaltando um perfil do seu povo e suas particularidades,
foi publicado neste fim de semana no jornal Clarín. Ela diz que a sua
decisão de viver no Rio de Janeiro nasceu com a música. Quando tinha
entre sete e dez anos ouvia músicas de Chico Buarque, Elis Regina,
Vinicius de Moraes e outros grandes. Suas vozes a acompanharam
em viagens de carro que fez na companhia da família para Florianópolis.
Outras influências pode ter sido o mar do Brasil, as curvas das
estradas, as colinas verdes e as chuvas abundantes que Elis Regina e Tom
Jobim descreveram na canção "Águas de Março".
"Logo eu iria perceber que a questão ia além da música e geografia",
comenta Soledad. Ela percebeu que no Brasil essa é uma maneira
espontânea de ser mais conectado com o seu interior. "Às vezes, senti
que esta forma diferente de estar no mundo também caracterizou
a linguagem. Ainda me lembro da primeira vez que me ouvir falar em
Português", destaca o texto da comunicadora. Ela afirma que tem
lembranças de viagens a praias brasileiras. "Percebi (...) que os
brasileiros poderia ser barrigudo, careca ou qualquer outra coisa, mas
nenhuma dessas condições físicas eram irritantes para qualquer um. Em
todos os casos, homens e mulheres exibiram tranquilos os mínimos ou
clássicos biquínis ou sungas", observa a autora.
Havia
vergonha de mostrar seus corpos, segundo ela. Os adultos lhe explicaram
que havia uma diferença marcante com os argentinos, que eram mais
recatados, sempre em shorts e até mesmo com malhas inteiras. "Num verão
da minha adolescência, comprei um vestido de tecidos artesanal. Era
colorido e curto, ele me acompanhou durante toda a minha juventude. Mas
o vestido estava quase o tempo todo pendurado no armário. Toda vez que
eu o via, parecia exótico, bonito, sensual... Mas, se eu realmente
tivesse a pretensão de usá-lo, não me deveria me inspirar na Argentina.
Só o fiz quando me senti segura na informalidade da terra brasileira", contou Soledad.
De
volta a Buenos Aires, Soledad manteve o estilo descontraído todos os
dias. A primeira coisa que
ela fez foi experimentar as danças e ela se
matriculou num curso de ritmos afro-brasileiros. Cada batida de
percussão se conectava mais ao seu próprio corpo. Depois de um tempo,
ela começou a expandir o seu conhecimento
com o Brasil. "Um dos livros que eu particularmente gostei foi Raízes
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o que me levou a uma compreensão
dos processos de formação social. E foi a partir de outras leituras, que
melhor conheci uma cultura que estava me levando completamente. Depois
de anos flanado a língua e acumulando dados e experiências que eu tomei
uma decisão: eu concorri a uma bolsa de estudos de pós-graduação para a
especialização em Ciências Humanas na América do Sul. Eu desembarquei no
Rio em 2005, começando assim o que eu chamo de etapa carioca da minha
vida adulta. Aos poucos, descobri semelhanças e diferenças entre
a realidade e a fantasia que eu tinha construído ao longo dos anos. Eu
não recebi o Brasil com expectativas claras. Mas, com a convicção de que
nada poderia dar errado no país", diz o texto.
Durante o
primeiro mês, Soledad mudou de casa cinco vezes, enfrentou uma fila
para processamento de visto de estudante com chineses, americanos e
colombianos. "Então eu sabia o quanto era estranho meu amado Brasil",
disse ela. Soledad ainda teve problemas como o atraso no depósito do
recurso da bolsa de estudos e outras questões administrativas. Até que,
após uma fase de otimismo, ela começou a desconfiar que nem tudo estava
tão bem, mas resolveu encarar os fatos sem drama. Através de uma canção
de Ivan Lins, Soledad descobriu como era este outro lado do Brasil.
"Aprendi a ouvir os outros e a evitar o confronto. Eu nunca vi no Brasil
fortes discussões políticas em encontros sociais. Discordâncias são
expressas sem a veemência que eu vejo em Buenos Aires. Notícias sobre
o dólar, inflação, política e futebol estão na Argentina recorrente de
modo exaustivo. Eu não estou dizendo que o Brasil deva ficar de fora
destas questões. Mas tudo acontece com uma ênfase menos acentuada",
opinou a escritora.
"Otimismo e alegria me acompanham desde que
cheguei. Eles eram visíveis, por exemplo, no tratamento amigável dos
meus amigos da faculdade. Eles me fizeram sentir confiante desde
o primeiro contato, como de costume no Brasil, que é o de dar e receber
um abraço e dois beijos. Devo esclarecer que a privacidade não
significa, necessariamente, um verdadeiro compromisso. É mais de um
calor que se reflete até mesmo em diminutivos amorosos usados para
nomear pessoas. Eu sempre fui Sol (dificilmente Soledad) e alguns
companheiros são chamados Paulinha (Paula nunca) ou Gigi (nunca
Gizella). Eu podia sentir que a proximidade também experimentando o
estilo dos cariocas, quando se aproxima uma mulher. Mais de uma vez, em
eventos, eles me levaram pela mão ou cintura para dançar. Quase sem
palavras. Mas confesso que sinto falta de gestos, às vezes, discursivos
de namoro e cavalheirismo dos argentinos", diz o texto de Soledad.
A
autora diz que há um lugar onde eu ela reunia com os seus ideais de um
Brasil tropical: as praias do Rio de Janeiro, Ipanema, principalmente.
"Como moro no Rio, eu pude entender melhor o brasileiro, naturalmente, o
perfil tanto comentado pelos meus pais", diz ela. A comunicadora
ressalta que se sente à vontade nas suas atitudes, até na forma de
caminhar. Comenta sobre a postura da mulher brasileira, que tem uma
imagem estereotipada no exterior, o que a incomoda muito, pois percebe
que as mulheres não são as 'presas fáceis que comentam lá fora'. "Eu
nunca tinha visto em topless no país da suposta desinibição. Algum tempo
atrás, um grupo de mulheres realizou o que foi chamado de toplessazo,
em Ipanema, favorável à naturalização destas práticas nas praias. Eu fui
para o evento, mas eu não estava confortável. Enquanto eu estava com a
parte superior do biquíni, me senti de alguma forma tateada por um
exército de olhos curiosos, fotógrafos e cinegrafistas que gravaram a
ação feminina como peculiaridades secretas e, justificadamente,
proibidas. Alguns comentários agressivos me fizeram entender que o
topless não é algo natural no Brasil", destaca o texto.
Soledad
avalia que o corpo sensual é apenas uma parte do Carnaval carioca. Nem
todo mundo passa pelo Sambódromo. Na verdade, a grande festa é dada nas
ruas dos bairros que atraem as pessoas para cantar e dançar com os
vários trajes: antenas de néon, com peruca, bandanas coloridas.
"Foi
o suficiente para eu ver meus amigos vestidos como bebês, trompete na
mão, para valorizar a memória mais bonita que tenho da maior celebração.
Isso é o suficiente para saltar ao ritmo de canções folclóricas
tradicionais como "Mamãe Quero", evocando a Carmen Miranda dos anos 40.
Essa alegria deve ser preservada, para ajudar a amortecer o efeito
inegável de sujeira e odores deixados nas ruas depois da quarta-feira de
cinzas. Ela diz que as desigualdades sociais também são notórias no Rio
e relembra as suas experiências ao se deparar, na Zona Sul da cidade,
com os dois lados da cidade, as favelas e os imóveis de luxo. Ela relata
que, há quatro anos, passou pela experiência de viver em Porto Alegre.
"Lá
os invernos são rigorosos e os gaúchos são mais como os argentinos. Eu
percebi que eu sou intolerante a dias nublados e à sensação térmica do
frio. E mais. Eu descobri que eu me identifico mais com a azáfama do Rio
de Janeiro. É um tipo de música que me faz sentir em casa. A
informalidade do "abraço" apertado de Gilberto Gil (...) eu carrego
comigo a cada viagem para Buenos Aires, onde eu sempre fico aguardando o
segundo beijo no outro lado da face", diz a autora.
Fonte: Jornal do Brasil
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