Artigo
A educação da segregação
Sofro quando insisto em sair à rua da forma como acho
que devo ser respeitada. Mas não estou disponível à decisão masculina
de me respeitar ou não
por Paula Campos Pimenta Velloso
Anúncio de vagão exclusivo para mulheres
“O senhor está se encostando na minha cara!”, disse a mulher sentada a duas fileiras do meu assento. O homem continuou imóvel, em pé
ao seu lado. Apenas acrescentou ao desrespeito um sorrisinho e a
alegação de que ela, pela idade, não seria mais objeto do seu assédio.
Ele não precisava ter dito nada. Pega o Metrô lotado todos os dias,
respaldado pelo consenso de que ninguém reagirá quando se esfregar por
aí. Mas ela falou alto e firme e ele teve de se virar um pouco.
Da estação Carioca até a Cantagalo, quando o Metrô do Rio assume sua
eufemística forma “de superfície”, outros tipos como esse ainda
aguardavam muitas outras mulheres. Todas sabemos disso. Por este motivo,
me surpreendeu o comentário de uma jovem que disse “essa senhora, eu hein, por que não pegou o vagão das mulheres?”. Eu acompanho a discussão sobre o carro
exclusivo do Metrô, a possível implantação em outros municípios, a
fortuna de políticas semelhantes em outros
países em que o sexismo se
apresenta em graus insuportáveis. Mas não havia me dado conta, até
aquele momento, de que um preço alto que pagamos por medidas desse tipo é
o fato de que elas não educam.
Em um vagão de Metrô, é possível ver muito da forma como a dignidade
das mulheres continua associada, de forma considerável, à figura do
homem. Uma mulher provavelmente não será desrespeitada se for
desinteressante para o olhar de um homem - isto é, se for feia, velha ou
gorda segundo os padrões de sensualidade. Não estou dizendo que homens
ditam, por exemplo, as regras de peso certo, mas que provavelmente não
assediarão uma mulher que não se apresentar, aos seus olhos, atraente.
Além disso, como vimos, ela poderá ser agredida com este exato
argumento. Talvez acompanhada estivesse mais segura.
Em todos os casos, entretanto, o eventual respeito não se deve à
mulher, mas ao interesse que seu agressor tem por ela, ou à fidelidade
de classe que ele manifesta por outro homem.
Vivemos, portanto, em um ambiente social
em que homens agridem e desrespeitam mulheres pública e diariamente.
Isto é um dado e não é fácil exigir que uma mulher não escolha se
preservar em um espaço protegido. Mas a suposição de que quem não está
disponível a agressão e desrespeito deve se trancar em um algum lugar
precisa nos escandalizar e não provocar adesão! A garota que rumava à Zona Sul não entendeu nada quando viu a mulher reagir ao desrespeito com dignidade. Mas ambas tem uma lição a nos dar.
Desde já, me obrigo a afirmar que, quando saio com minha sobrinha,
por exemplo, qualquer medida de proteção parece fazer todo sentido. Não
quero ninguém encostando nela. Não quero que ela tenha, como eu tenho, a
memória de que estranhos podem dispor dela. E a quero longe de outras
investidas mais sutis, embora igualmente repugnantes, como as que uma
moça que ainda não sentiu por dentro as alterações que seu corpo já
sofreu por fora tem de experimentar quando vai à rua. Mas também quero
que ela seja esperta, ciente de que nada disso é permanente e de que ela
não é em si disponível. E isso minha proteção infelizmente não vai
provocar.
O vagão exclusivo é uma medida que vai na contramão do que quero para
as mulheres. Por definição, segrega. Promove uma limitação injusta,
isto é, para dar mobilidade, restringe-a a um espaço determinado.
Injusta e covarde, porque conta com a minha decisão de não estar
disposta a ser agredida, humilhada, estuprada etc. quando vou e volto
dos lugares na hora que eu quero, com a roupa que eu quero e sozinha. É
como se eu só pudesse compor o espaço público desde que em um estado
desinteressante para um homem, acompanhada por um homem, ou separada dos
homens. Mas o meu problema aqui é que, talvez pior do que tudo,
políticas como a dos vagões exclusivos colaboram para a fixação do
machismo que, afinal, é a razão da sua criação.
Parece-me que a questão está mal posta quando pensada em termos de
sermos contrárias ou favoráveis ao vagão exclusivo. Não creio que seja o
caso de questionar se mulheres devem ou não ser preservadas dos
horrores do convívio agressivo com homens. Sabemos onde vivemos e
vivemos em um lugar hostil às mulheres. Entretanto, a última coisa que
devemos fazer com a nossa preservação é torna-la instrumento da nossa
submissão. Deve nos parecer impensável que, para fazer coisas
elementares, como voltar do trabalho, tenhamos de nos meter num vagão só
para mulheres, cobrir nossas pernas ou baixar nossas cabeças.
Não obstante, frequentemente, quem adere à medida faz a perigosa
ressalva: “fazer o que, né? Vai ter sempre algum patife para querer
passar a mão em mim”. Algo como dizer que reconheço os limites da
política dos vagões exclusivos, mas não estou disposta a fazer nada
sobre o assunto. Isso não dá.
É claro que uma medida assim saneia um problema gravíssimo, não há o
que discutir. O que deve ser pensado, entretanto, é que o resolve na sua
expressão mais imediata e com os resultados mais efêmeros. No vagão, só
estamos preservadas de agressões por um momento. A população de homens
de segunda ordem que cobre as ruas do Rio de Janeiro continuará pronta
para fazer qualquer barbaridade. Além disso, uma falsa impressão de que
as coisas vão bem, ou que, pelo menos, melhoraram, não vai colaborar
para criar em nós mulheres a indignação necessária à radicalização do
problema. E sem esta, não creio que chegaremos a uma alteração
substancial na forma segundo a qual somos tratadas pelos homens.
Corremos um risco. A separação que o vagão opera não resolve o
desrespeito e a agressão. Estes restam quase imaculados, protegidos pelo
mesmo invólucro com que segregamos mulheres em um carro, em uma roupa,
em um horário, em um endereço, ou em uma companhia. De fato, a longo
prazo, seria desejável que esse tipo de prerrogativa suscitasse em
todos, homens e mulheres, através de uma forma de consciência, o
respeito cuja falta criou a segregação como necessidade. Mas não sabemos
se será assim. Além disso, não faz muito sentido barganharmos com a
liberdade. Já sabemos o suficiente, isto é, que o Rio de Janeiro tem
vagão exclusivo há 7 anos e seu metrô é mais um mau exemplo que a cidade
nos dá.
Se imaginarmos que o vagão exclusivo é uma solução, ou se aderirmos a
ele com mansidão, o que teremos será apenas uma profusão de medidas que
libertam restringindo. Estou certa de que elas farão tão pouco por nos
proteger do machismo, quanto um vagão para negros ou para homossexuais
faria para nos proteger do racismo ou da homofobia. Porque, não criam
entre nós o sentimento de que o desrespeito merece resposta.
Não é fácil. Como todas nós, sofro quando insisto em sair e me pôr na
rua da forma como acho que devo ser respeitada. Mas não estou
disponível à decisão masculina de me respeitar ou não. Não vou conceder
nada. Não uso vagão exclusivo, porque seu preço é muito alto. Aquela
garota do metrô me ensinou isso. E com a mulher aprendi que quero estar à
altura da minha liberdade. Quero unir a minha voz à dela.
Paula Campos Pimenta Velloso é doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio
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