Qual não foi minha surpresa quando estive em uma livraria para comprar Contos Reunidos (Alfaguara, 2013), de Vladímir Nabókov, e encontrei um derradeiro exemplar exposto e já extensivamente manuseado, a julgar pela capa amarfanhada e cheia de nódoas. Ainda mais curiosa foi a reação da solícita atendente, que não se conteve e exclamou: bela escolha! Até pouco tempo, as pessoas que me perguntavam o que estudo não distinguiam o nome do autor a menos que se mencionasse Lolita.
 
Impulsionada pela publicação de livros que dialogam com sua obra no Brasil, como Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi (Girafa, 2004), Em Casa com Nabokov, de Leslie Daniels (LeYa, 2011), e, em especial, o fascinante O Encantador: Nabokov e a felicidade, de Lila Azam Zanganeh (Alfaguara, 2013), a coletânea da Alfaguara fez Nabókov ressurgir na cena cultural brasileira.
 
Vladímir Vladímirovitch Nabókov (1899-1977) nasceu em São Petersburgo, onde viveu até 1917. Cresceu em ambiente multicultural: inglês, russo e francês faziam parte de seu dia a dia. Em 1917, por causa da conturbada conjuntura revolucionária, a família parte, primeiro, em direção à Crimeia e, mais tarde, para Inglaterra e Berlim. Nabókov estudou em Cambridge e, depois do assassinato do pai (1922), mudou-se para Berlim, onde se casou com Vera Slonim (1925) e teve seu único filho, Dmítri (1934). Passou ainda alguns anos em Paris (1937-1940), mas, com a iminência da Segunda Guerra Mundial, rumou com esposa e filho para os Estados Unidos (1940). Depois do êxito de Lolita (1955) retornou à Europa e viveu em Montreaux. Faleceu em 1977, em Lausanne.
 
No primeiro período de exílio, ainda sob o pseudônimo Vladímir Sírin, destacou-se como um dos escritores mais ilustres do período, publicando vasta obra prosaica, dramática e poética. Ele também despontou como tradutor e autotradutor, professor, crítico literário e lepidopterologista (especialista em borboletas).
 
Mais da metade dos contos agora publicados era inédita no Brasil e os que já haviam saído receberam nova tradução de José Rubens Siqueira. Ele partiu de versões em inglês feitas pelo autor, pelo filho e pela esposa, Vera, ou ainda em colaboração com outros tradutores, sempre que possível com a própria supervisão.
 
À exceção da grafia dos nomes de origem russa, de algumas questões de tradução e da falta de posfácio ou introdução à edição brasileira, a coletânea da Alfaguara não apenas supre a lacuna como também apresenta outra face do escritor. Mais (re)conhecido pelos romances e pela autobiografia Fala, Memória: Uma Autobiografia Revisitada (1967), Nabókov escreveu, entre 1921 e 1952, em torno de 70 contos. Eles figuram em variadas antologias do gênero e são incluídos na bibliografia de disciplinas em universidades ao lado de nomes como Tchékhov, Poe e Cortázar.
 
A maior parte dos contos foi escrita em russo e saía em jornais e revistas da emigração publicados na Alemanha e na França. Alguns deles foram reunidos em coletâneas, primeiro na Europa, ainda nos anos 1930, e, mais tarde, nos EUA. Foram transpostos para o inglês, segundo Dmítri, por “fruto de desanuviada colaboração entre pai e filho”.
 
Os textos de Contos Reunidos dialogam com as distintas fases de produção artística de Nabókov, seja no contexto da obra desse primeiro momento ou nos romances e contos posteriores. Sua pena revisita a questão identitária, o passado na terra pátria e o presente de apátrida e estrangeiro em qualquer lugar. Ao mesmo tempo, manipula a palavra, o tom sugestivo e o (des)iludido leitor por meio de alternâncias de foco narrativo, elementos-surpresa e ironias sub-reptícias. Nabókov exalta a defesa da elegância, do primor e da especificidade em detrimento do “vulgar” e do “lugar-comum”.
 
O traçado nabokoviano, entremeio de prosa e poesia, reverbera heranças culturais, além de uma linguagem híbrida e de sua cosmovisão intertextual. Por meio de jogos com o leitor, as surpresas-indícios são sutilmente anunciadas ao longo dos contos em intermitente encobrir e descobrir e em reminiscências e acasos envoltos na névoa de um tempo cíclico e etéreo que gira em torno de alusões e elisões e mescla nitidez e nebulosidade.
 
Os contos nabokovianos e, nas palavras de Dmítri, os “ecos da juventude de Nabókov na Rússia, [...] o perío-
do de emigrado na Alemanha e na França, e a América que estava inventando, como dizia, depois de ter inventado a Europa”, revelam temas que, com suas múltiplas camadas de sentidos, passeiam por temas diversos: memória, exílio e deslocamentos espaciais e temporais, como em “A Visita ao Museu”; questões sobre poder e totalitarismo, como em Fala-se Russo, O Leonardo, Nuvem, Castelo, Lago; o irrecuperável, como em Primavera em Fialta e A campainha; o eterno retorno, como em O Círculo; os possíveis aléns, como em Ultima Thule e As Irmãs Vane; e, acima de tudo, a consciência e o impulso criativo, como em Fumaça Entorpecente.
 
Os procedimentos linguísticos e estilísticos nabokovianos são revelados no ritmo, por vezes alucinante em frases longas que irrompem de um fôlego só, por vezes tomado por orações curtas e fulminantes, nos efeitos pictóricos e sonoros e nas guinadas de discursos: do indireto para o direto, do exterior para o interior das personagens. Nesse rodopio de zoom in e out do texto-fotografia nabokoviano, as palavras – estilhaços e fragmentos de imagens e cenas – tentam recuperar os “vais e vens” entre “presentes” e passados, entre as nuanças do casual e a força das circunstâncias. Como o próprio nos recorda em Deuses, “as palavras não têm fronteiras”.
 
Brian Boyd, biógrafo e um dos maiores pesquisadores da obra nabokoviana, questiona por que continuamos a ler e reler o escritor: “A resposta mais óbvia é: estilo. Mas, embora admiremos (seu) estilo, (...) não retornaríamos constantemente a Nabókov se houvesse apenas estilo em sua obra e não houvesse o narrar”. Também mais (re)conhecido por ser um dos estilistas mais memoráveis tanto em língua russa como em inglês, o escritor declarava haver “três pontos de vista a partir dos quais um escritor pode ser considerado: ... como narrador (ou contador de histórias), como professor e como encantador”. Nabókov reúne os três “com a precisão de um poeta e a imaginação de um cientista”, já que “não há ciência sem fantasia e não há arte sem fato”, em suas próprias palavras.