Em nome do pai, em nome do filho
Projetos que discutem o aborto em tramitação no Legislativo não levam em consideração uma peça importante: a mulher
31/07/2013
do Rio de Janeiro (RJ)
O
aborto é a quinta causa de morte materna no Brasil, de acordo com o
Conselho Federal de Medicina (CFM). O Mapa da Violência Contra a Mulher,
publicado em 2012,mostra que o estupro é terceiro item entre as
violências sofridas pela mulher, perdendo apenas para a física e
psicológica, respectivamente.
Os dados mostram a
obviedade da discussão do assunto no país. Não à toa, tramitam diversos
projetos sobre o assunto nas casas do legislativo e com mais intensidade
na última década. Por meio de uma busca bem superficial no site das
duas casas com a palavra “aborto” e “estupro” aparecem cerca de oito mil
projetos com as duas temáticas.
Dois destes têm
se destacado nas discussões parlamentares e da sociedade nos últimos
tempos. O primeiro, que já se encontra em sanção presidencial é o PLC
03/2013 – que prevê atendimento obrigatório e integral de pessoas
vítimas de violência sexual –; o outro é o PL 478/2007 – que prevê um
Estatuto do Nascituro e conta com projetos apensados que inclui
assistência financeira à mãe estuprada, criminaliza o aborto, entre
outros.
No projeto, que depende da sanção
presidencial, um dos pontos polêmicos é a expressão “profilaxia da
gravidez”, que permite que a vítima do estupro possa tomar a pílula do
dia seguinte, permitida no Brasil e distribuída pelo Sistema Único de
Saúde (SUS) e vendida em farmácias; outro ponto que causou polêmica é o
inciso que garante o “fornecimento de informações para vítimas sobre os
direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis” .
O
pedido de veto foi realizado por representantes de entidades como
Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB), Federação Espírita do Brasil,
Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política, Movimento Nacional
da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, Associação Nacional da
Cidadania pela Vida e Confederação Nacional das Entidades de Família aos
ministros Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral) e Gleisi Hoffmann (Casa
Civil), e a representantes do Ministério da Saúde durante uma reunião na
última semana. Pelo trâmite do projeto, a presidenta Dilma Rousseff
deve dar seu parecer até o dia 1º de agosto.
Para
a coordenadora do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, Rosângela
Talib, há uma má interpretação do grupo que está se colocando contra.
Para ela,esta lei apenas torna legal o que já é praticado desde sob
decreto que institui o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, mas
a defesa pelo aborto em casos de estupro foi publicado em 2009, quando o
José Serra era ministro da Saúde, e revisado em 2005.
“A
prática do aborto em caso de estupro não é de agora e o termo
‘profilaxia da gravidez’, que mais tem sido atacado, já é uma norma
técnica que regula a distribuição da pílula do dia seguinte. A
profilaxia se refere a isso, assim como inclui também em relação à DSTs,
mas algumas pessoas têm interpretado que esse é um subterfúgio para
permitir a interrupção da gravidez em qualquer momento”, analisa.
Atualmente,
de acordo com o Código Penal, as três formas descriminalizadas de
realização do aborto são em caso de estupro, risco de morte à mãe e caso
o nascituro apresente graves e irreversíveis anomalias físicas ou
mentais. Para Débora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social
da Universidade de Brasília (UnB) esta discussão está mal intencionada e
com outro foco.
“O debate do aborto deve ser
feito sobre um viés de saúde pública e enxergar a mulher que não está
satisfeita com este modelo de assistência à saúde e pelo que se define o
que é direito social em saúde. O aborto está sendo criminalizado dentro
de um cenário em que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez
um aborto. Estamos falando de um contingente de mulheres que têm suas
necessidades de saúde não satisfeitas e precisamos olhar para elas e
ouvi-las”, informa Débora.
O Estatuto do
Nascituro ainda é mais grave em relação às preocupações de Débora. O
projeto de lei, entre outros pontos, proíbe o aborto em casos de
estupro, dá direitos jurídicos ao nascituro, prevê a paternidade do
estuprador – dando direitos de ser reconhecido na certidão de
nascimento, além de exigir, como pai, que ele pague pensão até os 18
anos – proíbe estudos em células-tronco, e criminaliza manifestações e
informações a favor do aborto, podendo ser penalizado criminalmente.
Débora
Diniz chama a atenção para o que o projeto pretende. “É preciso dar os
devidos nomes ao que esse projeto exige: ele ignora as mulheres, dá um
estatuto de criança às células recém-fecundadas, obriga a mulher a se
relacionar com os piores violadores da sua vida, e, talvez, da sua
própria história. Essa me parece que pode ser a mais ardilosa estratégia
do silenciamento do estupro familiar. Essa mulher, que vai ser obrigada
a conviver com o sujeito, ela pode ser capaz de não denunciar ou ir
para a ilegalidade”, analisa.
O Estatuto está em
tramitação na Câmara dos Deputados. O Projeto já passou pela Comissão de
Seguridade Social e Família (CSSF) e se encontra na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e depois seguiria para
plenário, mas, o presidente da Comissão de Direitos Humanos, pastor
Marco Feliciano (PSC-SP), pediu para que o projeto passasse por sua
comissão.
“O tema do Estatuto do Nascituro é de
competência da Comissão de Direitos Humanos. A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro”, argumentou o pastor em seu pedido
ao presidente da Câmara Eduardo Alves. Feliciano é uma das vozes que
pedem o veto parcial do PL 03/2013, que está esperando sanção
presidencial.
A vontade (e o direito) da mulher O
caso do Uruguai é emblemático. Após a legalização do aborto, o país não
registrou nenhum caso de morte de mulher que abortou. O subsecretário
do Ministério da Saúde Pública do Uruguai, Leonel Briozzo, apresentou
que no período de dezembro de 2012 a maio de 2013 foram realizados 2.550
abortos legais, sendo um dos países com as menores taxas de aborto do
mundo. Atrelado a isso, o país intensificou campanhas educativas sobre o
tema.
Rosangela Talib defende essa estratégia de dar autonomia à mulher na decisão do seu exercício da sexualidade.
“A
gente apoia o direito das mulheres decidirem, de acordo com a sua
consciência e apoiada na sua fé religiosa, inclusive. Queremos que ela
possa tomar a decisão do que é ideal para a vida dela . No caso de uma
gravidez resultante de uma violência sexual, exigir que esta mulher
geste essa criança por nove meses e, depois, se ela não se sentir
confortável, entregar a criança para doação é pensar a maternidade como
um processo biológico apenas, o que não é real. Exigir da mulher esse
sacrifício, é claro que tem que ter condições para que possa levar isso
adiante, agora, se ela optar por não fazer isso, também tem que ter as
melhores condições para esta decisão”, explica.
Débora
Diniz é mais incisiva e fala que o Estatuto não reconhece os direitos
da mulher na decisão do seu corpo e da sua vida. “Este projeto ignora a
existência da mulher, que é uma mulher que está em sofrimento porque ela
acabou de sofrer uma violência, e vale lembrar que uma parcela
importante da violência acontece com meninas – crianças e adolescentes –
e dentro de casa, portanto, absolutamente fragilizadas e
vulnerabilizadas”.
E ainda completa: “Reduzir o
sofrimento da mulher por alienação financeira é uma violência. Quando a
mulher decide abortar não é, em sua maioria, carência material, mas uma
decisão do melhor momento para a sua vida, sua necessidade e liberdade. O
projeto parte para um silenciamento da mulher”, analisa apontado o caso
do PL 3748/2008 apensado ao Estatuto do Nascituro, que prevê que o
poder executivo pague mensalmente pensão à mãe da criança nascida de
gravidez decorrente de estupro até que complete 21 anos de idade.
Conflito de garantias
O
Brasil é um país laico. Mas, o que preocupa pesquisadores e militantes
da área é que a discussão do aborto tem se pautado no campo da religião.
“A
gente está vendo com bastante restrição o papel da bancada religiosa, a
sua crença e as decisões tomadas devido a esta crença são de foro
íntimo, ela não deve pautar a nação. Se eu acho errado o aborto, não vou
fazer isso pra minha vida, mas não posso impedir que outras pessoas
coloquem em risco a própria vida, transformando o abortamento em
problema de saúde pública, assim como tivemos recentemente a ‘cura
gay’”, analisa Rosângela. Ela acrescenta: “Você considerar que é pecado
pode pautar e regrar a sua vida, mas não pode pautar a vida de todas as
pessoas, que, inclusive, não têm a mesma crença que você. É através do
respeito à laicidade que teremos o respeito a todas as religiões. E não
podemos ver o que tem acontecido agora, estamos falando de índices
significativos de violência, o Estado tem como responsabilidade a
garantia do atendimento”, informa a coordenadora do Católicas pelo
Direito de Decidir. No próprio projeto há outras inconsistências.
A
proposta original do Estatuto do Nascituro proíbe qualquer tipo de
aborto no Brasil. Um dos substitutivos que pode ou não ser votado tem um
artigo que garante a manutenção do artigo do código penal, mas ao mesmo
tempo estabelece que os genitores não podem causar nenhum dano ao
nascituro. “Isso impossibilita o aborto e pesquisas com células-tronco,
por exemplo”, informa.
Também violando um
princípio constitucional, que é o direito à informação, o Estatuto prevê
nos artigos 24, 27, 28 e 29 detenções de seis meses a um ano àqueles
que induzirem a mulher à prática do aborto, por meio de informações
sobre o tema, ou por quem assumir publicamente que praticou o aborto.
“Isso
é restrição de liberdade de informação e de expressão. Qualquer
informação em saúde não pode vir com restrições religiosas. Devem ter
acesso dos melhores métodos de planejar a sua sexualidade, não podem
ficar restritos a isso por conta de determinações religiosas”, conclui
Débora Diniz.
Além disso, Débora informa também a
questão das políticas de focalização com priorização expostas no
projeto: “A proteção e priorização desta criança rompe com os direitos
das demais que estão na fila de espera de adoção. Você tem um ponto de
partida que ignora as mulheres, um ponto no meio do caminho que ignora o
universo do debate da adoção, do que significa uma lista universal de
adoção, além da política de transferência de renda por meio da ‘bolsa
estupro’, até os 18 anos da criança. Se nós queremos realmente proteger a
saúde reprodutiva da mulher, todas as mulheres de idade reprodutiva,
que venham a engravidar e precisem, devem ter acesso à política de
transferência de renda”, analisa.
Foto: Bruno Poppe/Folhapress
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/14871
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