A juventude de José Dirceu, em uma biografia de muitas vidas
Já
virou lugar-comum dizer que existem muitos “Josés Dirceus”, ou pelo
menos dois – o de antes e o de depois de chegar ao poder. Vou me deter
aqui no período que vai até a Lei da Anistia, em 1979, até porque esta é
a parte mais interessante de sua vida e, consequentemente, da biografia
escrita pelo jornalista Otávio Cabral, Dirceu – A Biografia: Do
movimento estudantil a Cuba, da guerrilha à clandestinidade, do PT ao
poder, do Palácio ao Mensalão (Record, 364 pgs. R$ 39,90). Esse período
corresponde também aos capítulos do livro mais objetivos e menos
contaminados pelo Fla-Flu ideológico que prevalece no debate político
travado na mídia. Por fim, é também uma fase da nossa História que ganha
um imprevisto paralelo com o presente, agora que movimentos de protesto
tomam as ruas, a polícia reprime de forma truculenta, e cresce uma
sensação difusa de insatisfação e descontrole, com desdobramentos ainda
difíceis de calcular em nossa vida política (a própria manifestação
contra o reajuste das passagens em São Paulo já está sendo chamada de
“Batalha da Maria Antônia 2.0”, em referência à ocupação do campus da
USP, episódio protagonizado por Dirceu em 1968).
O principal mérito do livro de Otávio Cabral é dar unidade narrativa a
uma série de episódios até aqui tratados de forma dispersa, com
diferentes graus de veracidade, confiabilidade e profundidade. O leitor
mediano deve saber que Dirceu foi líder estudantil, que foi preso pelo
regime militar e depois trocado pelo Embaixador americano sequestrado,
que viveu exilado em Cuba etc, mas provavelmente sem um entendimento
articulado e sequencial desses acontecimentos. Cabral reconstitui com
competência essa cronologia: com base em depoimentos de 63 pessoas
próximas a Dirceu (nem todas identificadas) e no acesso a documentos só
recentemente franqueado pela Lei de Acesso à Informação, ele constrói um
encadeamento lógico de núcleos temáticos, ainda que nem todos recebam a
atenção devida. O biografado preferiu ficar em silêncio, mas seus
assessores e advogados colaboraram com o projeto, segundo o autor.
Leia aqui um trecho do livro “Dirceu: a biografia”.
Em uma breve recapitulação, seguem algumas informações interessantes
que o livro traz em seus primeiros nove capítulos, que vai até 1979,
quando Frei Betto apresentou Dirceu a Lula em São Bernardo e teve início
mais uma vida de Dirceu (que mereceria uma biografia à parte). A
infância e adolescência são tratadas em pinceladas rápidas: na pequena
cidade mineira de Passa-Quatro (onde seu pai, conservador e católico,
era simpatizante da UDN), Dirceu só ficou até os 14 anos, quando se
mudou para São Paulo. Na capital paulista viveu “quase como um
trombadinha”, usando a mesma roupa por 15 dias seguidos e sem dinheiro
para nada. A situação melhorou um pouco quando apareceu um bico na TV
Tupi, do qual foi demitido por indisciplina. Foi num serviço externo no
trabalho seguinte, como office boy, que Dirceu assistiu a uma passeata
dos alunos da Universidade Mackenzie, simpáticos à ditadura, comemorando
o golpe militar, em 1964. Dirceu já sabia de que lado estava.
Quando se tornou o primeiro de sua família a ingressar numa
universidade, no curso de Direito da PUC, Dirceu já militava no
clandestino PCB (para desespero de seus pais, quando souberam). O jovem
cabeludo não gostava de estudar e logo enxergou na atividade política
“uma chance de ascensão pessoal e profissional”. Sempre segundo Cabral,
já como presidente do Centro Acadêmico, Dirceu demonstrou carisma,
pragmatismo e outro talento, o de conquistador, namorando, entre outras
colegas, a bela e rica Iara Iavelberg – que mais tarde entraria na
guerrilha e seria mulher de Carlos Lamarca (Iara foi assassinada pela
repressão em 1971, depois de ter dividido uma cela com uma jovem
militante mineira, Dilma Rousseff, codinome Wanda). Enfileirando
seguidores e namoradas, Dirceu logo ganharia apelidos como “Alain Delon
dos pobres” e “Ronnie Von das massas”.
Em 1968, após ser eleito presidente da
União Estadual dos Estudantes (numa eleição acusada de fraude pela outra
candidata), Dirceu comandou a ocupação da Rua Maria Antônia, após uma
passeata marcada por confrontos de facções, tiros e coquetéis Molotov.
Depois de três meses, de uma batalha com estudantes da Mackenzie e
outros conflitos que acabaram resultando na morte do estudante José
Guimarães, de 20 anos, o quartel-general do movimento estudantil no
campus de Filosofia, Ciências e Letras da USP foi finalmente invadido
pela polícia. Pelo menos nesse momento, Dirceu revelou prudência e
sensatez: “Vamos recuar. Vai ser um massacre. Eles vão começar a matar
estudantes”. Cabral, porém, classifica essa atitude como “um instinto de
preservação que beirava a covardia”, cedendo á tentação de escrever
“contra”, e não “sobre”, seu personagem.
Além de revelar a aversão de Dirceu pela
imprensa, tratando os jornalistas que recebia com desprezo, a ocupação
da Maria Antônia também foi marcada por um episódio de triste lembrança:
ele cedeu aos encantos de uma bela morena de roupas justas, que se
revelaria uma agente infiltrada, que repassou ao Dops paulista várias
informações sobre os estudantes. Descoberta, foi expulsa do campus.
Menos sorte teve outro espião, o estudante da Mackenzie João Parisi
Filho, supostamente interrogado, submetido a sevícias, algemado e
mantido em cárcere privado.
O núcleo seguinte da biografia é o congresso clandestino da UNE, que
reuniu 800 estudantes em Ibiúna, em1968, e teve desenlace desastroso,
com a prisão e espancamento de Dirceu, Vladimir Palmeira e outros
líderes estudantis e na detenção temporária e fichamento de mais de 700
jovens – entre eles César Maia, José de Abreu, Gianfrancesco Guarnieri e
Lúcia Murat. A responsabilidade de Dirceu nesse episódio é um tema
polêmico que merecia investigação mais profunda, não ficando claro até
que ponto seu personalismo resultou na descoberta e invasão do congresso
pela polícia (“Vacilei muito”, ele já declarou a respeito). Escreve
Cabral: “A lista dos 706 presos [em Ibiúna] se transformaria, nas mãos
dos militares, em uma agenda de ‘comunistas subversivos’. Nos anos
seguintes, nove seriam assassinados pelo regime militar. Outros sete
continuam na lista dos desaparecidos políticos.”
Os presos políticos libertados em troca do embaixador americano Charles Elbrick (1969)
Cabral passa então à troca de 15 presos políticos pelo Embaixador
americano Charles Elbrick, sequestrado por integrantes da ALN – Aliança
Libertadora Nacional em 1969. O episódio, um dos mais simbólicos da
resistência à ditadura, está contado em detalhes no filme e no livro
‘Hércules 56’, de Silvio Da-Rin. Dirceu já estava preso há 10 meses e 24
dias quando foi libertado e embarcado num avião militar para o México,
de lá seguindo para Cuba pouco menos de um mês depois. Foi uma operação
arriscadíssima, conduzida num dos momentos mais negros da ditadura: já
sob a vigência do AI-5 e com generais linha-dura se recusando a negociar
(incluindo Médici, futuro presidente), todas as condições estacam dadas
para o fracasso, mas a pressão do Governo americano, que temia a morte
de Elbrick, falou mais alto. Na famosa fotografia dos presos políticos
libertados (e banidos do Brasil), Dirceu é o único que levanta os punhos
para mostrar as algemas, com a expressão de desafio característica de
todas as imagens da sua juventude.
Seguem dois capítulos sobre o treinamento de guerrilha de Dirceu em
Cuba – interrompido por uma queda de 10 metros ao tentar atravessar um
rio por uma corda esticada – e sua desastrosa experiência à frente do
MOLIPO – Movimento de Libertação Popular, em sua primeira volta
clandestina ao Brasil. A reconstituição dos 23 dias passados no México,
com a desconfiança e as rixas surgindo entre Dirceu e seus colegas, é um
dos pontos altos da biografia. Em 30 de setembro de 1969, Dirceu e mais
12 exilados partiriam para Havana, onde ele adotou o codinome Daniel
(mais tarde, Hoffmann) e assumiu um papel de liderança bastante
contestado pela colônia brasileira na ilha, que o considerava pouco
confiável e carreirista, existindo a suspeita de sua colaboração com o
serviço secreto cubano.
Criado e treinado em Cuba, o MOLIPO foi a experiência mais trágica na
história da resistência à ditadura. Praticamente todos os seis
integrantes foram assassinados pela repressão, em um curto período.
Desde o desembarque no Brasil dos primeiros militantes, o Dops já tinha
os nomes de todos os membros do movimento e conhecia pormenores de seus
planos. Ao longo de 1971, o MOLIPO esteve à frente de atentados a bomba,
assaltos a bancos e até do incêndio de um ônibus, a pretexto de…
protestar contra o aumento das passagens. Mas em novembro daquele ano
começou o massacre. Dirceu, contudo, conseguiu escapar, voando de volta
para Cuba. Entre as hipóteses para o fracasso consumado do MOLIPO,
Cabral menciona a tese de que Dirceu seria um delator – já levantada
pela historiadora Taís Moraes no livro “Sem vestígios – Revelações de um
agente secreto da ditadura militar”.
Ao longo de todo o texto de Otávio Cabral, o anedótico prevalece
sobre a análise e a contextualização: em uma biografia que se pretende
definitiva, não deixa de ser problemático que momentos críticos da vida
do protagonista sejam tratados apenas tangencialmente. Ou, o que é mais
grave, que hipóteses polêmicas como a da delação no MOLIPO tenham sido
apenas reproduzidas, sem que o autor aprofundasse sua apuração; trata-se
de assunto gravíssimo, que merecia ser escarafunchado até que novas
informações reforçassem a hipótese ou a enterrassem de vez. Não sendo
assim, trata-se apenas de alimentar um boato. Idem em relação à
reprodução da insinuação leviana sobre a natureza da relação entre
Dirceu e seu protetor cubano, Alfredo Guevara.
Mais interessante é a reconstituição da atribulada vida amorosa de
Dirceu, que numa determinada altura lembra o personagem Mattia Pascal,
de Luigi Pirandello, com uma esposa em Cruzeiro do Oeste, sob identidade
falsa, e um caso fixo em São Paulo. O sucesso de Dirceu com as mulheres
é talvez o único aspecto de sua vida que Cabral trata com admiração.
No último núcleo temático da biografia – antes de ela chegar ao
encontro de José Dirceu com Lula em São Bernardo, promovido por Frei
Betto no momento mesmo em que se criava o PT – Cabral trata do período
em que Dirceu viveu clandestino em Cruzeiro do Oeste, no interior do
Paraná, onde se casou e teve um filho com Clara, bela e bem-sucedida
dona de uma loja de roupas. O casamento lhe valeu o apelido de Pedro
Caroço, referência a uma canção brega da época, “Severina Xique-Xique”
(“Ele tá de olho é na butique dela”, dizia o refrão bem humorado).
Dirceu viveu na pele do comerciante Carlos Henrique de 1975 até a lei da
Anistia, em 1979, quando simplesmente informou à esposa que ele não era
ele e partiu para São Paulo. Paro por aqui.
Após a leitura de “Dirceu: a biografia”, permanecem muitos os
assuntos por esclarecer, confirmar ou desmentir no período tratado neste
texto, goste-se ou não de José Dirceu (e independentemente dos seus
atos no poder, pelos quais já foi julgado e condenado no Supremo).
Diversos episódios deveriam ter sido objeto de um esforço mais tenaz por
parte do biógrafo do que a transcrição de uma única fonte ou versão,
nem sempre confiável.
Em entrevista concedida em dezembro de 2005, usada como uma das
muitas epígrafes do livro, Dirceu afirmou: “O que fiz só vou falar mesmo
depois de 80 anos. O que fiz na guerrilha, na luta armada, no mundo,
isso só depois de 80 anos”. Talvez Dirceu esclareça todas as dúvidas
remanescentes quando der sua própria versão da história. Mas, como ele
ainda está com 67, ainda vai demorar um pouco. Como ele ainda é um ator
político de peso, até lá terá certamente acumulado novas histórias,
incluindo memórias de um novo período no cárcere (ou não). Mas é
importante enfatizar que Dirceu viveu todas essas aventuras, cometendo
erros e acertos, em um período da História brasileira em que era fácil
distinguir o bem do mal, em que havia alvos e inimigos claramente
delineados. Todos tinham lado naquela guerra. Hoje vivemos uma situação
bastante diferente: as manifestações que tomam conta das ruas, ainda que
delas se tente fazer uso partidário, escapam de qualquer controle e se
voltam contra todos os partidos, não em função de uma reflexão teórica
sobre a eficácia do nosso modelo representativo, mas como reação
espontânea e instintiva, como sinal de que a paciência da sociedade com
as nossas práticas políticas está acabando, processo agravado pelos
sintomas de crise na economia. Convém prestar atenção nesse sinal.
Fonte: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/page/2/
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