Impostometro

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

José Dirceu

A juventude de José Dirceu, em uma biografia de muitas vidas


Já virou lugar-comum dizer que existem muitos “Josés Dirceus”, ou pelo menos dois – o de antes e o de depois de chegar ao poder. Vou me deter aqui no período que vai até a Lei da Anistia, em 1979, até porque esta é a parte mais interessante de sua vida e, consequentemente, da biografia escrita pelo jornalista Otávio Cabral, Dirceu – A Biografia: Do movimento estudantil a Cuba, da guerrilha à clandestinidade, do PT ao poder, do Palácio ao Mensalão (Record, 364 pgs. R$ 39,90). Esse período corresponde também aos capítulos do livro mais objetivos e menos contaminados pelo Fla-Flu ideológico que prevalece no debate político travado na mídia. Por fim, é também uma fase da nossa História que ganha um imprevisto paralelo com o presente, agora que movimentos de protesto tomam as ruas, a polícia reprime de forma truculenta, e cresce uma sensação difusa de insatisfação e descontrole, com desdobramentos ainda difíceis de calcular em nossa vida política (a própria manifestação contra o reajuste das passagens em São Paulo já está sendo chamada de “Batalha da Maria Antônia 2.0”, em referência à ocupação do campus da USP, episódio protagonizado por Dirceu em 1968).
O principal mérito do livro de Otávio Cabral é dar unidade narrativa a uma série de episódios até aqui tratados de forma dispersa, com diferentes graus de veracidade, confiabilidade e profundidade. O leitor mediano deve saber que Dirceu foi líder estudantil, que foi preso pelo regime militar e depois trocado pelo Embaixador americano sequestrado, que viveu exilado em Cuba etc, mas provavelmente sem um entendimento articulado e sequencial desses acontecimentos. Cabral reconstitui com competência essa cronologia: com base em depoimentos de 63 pessoas próximas a Dirceu (nem todas identificadas) e no acesso a documentos só recentemente franqueado pela Lei de Acesso à Informação, ele constrói um encadeamento lógico de núcleos temáticos, ainda que nem todos recebam a atenção devida. O biografado preferiu ficar em silêncio, mas seus assessores e advogados colaboraram com o projeto, segundo o autor.
Leia aqui um trecho do livro “Dirceu: a biografia”.
Em uma breve recapitulação, seguem algumas informações interessantes que o livro traz em seus primeiros nove capítulos, que vai até 1979, quando Frei Betto apresentou Dirceu a Lula em São Bernardo e teve início mais uma vida de Dirceu (que mereceria uma biografia à parte).  A infância e adolescência são tratadas em pinceladas rápidas: na pequena cidade mineira de Passa-Quatro (onde seu pai, conservador e católico, era simpatizante da UDN), Dirceu só ficou até os 14 anos, quando se mudou para São Paulo. Na capital paulista viveu “quase como um trombadinha”, usando a mesma roupa por 15 dias seguidos e sem dinheiro para nada. A situação melhorou um pouco quando apareceu um bico na TV Tupi, do qual foi demitido por indisciplina. Foi num serviço externo no trabalho seguinte, como office boy, que Dirceu assistiu a uma passeata dos alunos da Universidade Mackenzie, simpáticos à ditadura, comemorando o golpe militar, em 1964. Dirceu já sabia de que lado estava.
Quando se tornou o primeiro de sua família a ingressar numa universidade, no curso de Direito da PUC, Dirceu já militava no clandestino PCB (para desespero de seus pais, quando souberam). O jovem cabeludo não gostava de estudar e logo enxergou na atividade política “uma chance de ascensão pessoal e profissional”.  Sempre segundo Cabral, já como presidente do Centro Acadêmico, Dirceu demonstrou carisma, pragmatismo e outro talento, o de conquistador, namorando, entre outras colegas, a bela e rica Iara Iavelberg – que mais tarde entraria na guerrilha e seria mulher de Carlos Lamarca (Iara foi assassinada pela repressão em 1971, depois de ter dividido uma cela com uma jovem militante mineira, Dilma Rousseff, codinome Wanda). Enfileirando seguidores e namoradas, Dirceu logo ganharia apelidos como “Alain Delon dos pobres” e “Ronnie Von das massas”.

Dirceu discursa em passeata antes da ocupação da Rua Maria Antônia, em 1968
Em 1968, após ser eleito presidente da União Estadual dos Estudantes (numa eleição acusada de fraude pela outra candidata), Dirceu comandou a ocupação da Rua Maria Antônia, após uma passeata marcada por confrontos de facções, tiros e coquetéis Molotov. Depois de três meses, de uma batalha com estudantes da Mackenzie e outros conflitos que acabaram resultando na morte do estudante José Guimarães, de 20 anos, o quartel-general do movimento estudantil no campus de Filosofia, Ciências e Letras da USP foi finalmente invadido pela polícia. Pelo menos nesse momento, Dirceu revelou prudência e sensatez: “Vamos recuar. Vai ser um massacre. Eles vão começar a matar estudantes”. Cabral, porém, classifica essa atitude como “um instinto de preservação que beirava a covardia”, cedendo á tentação de escrever “contra”, e não “sobre”, seu personagem.
Além de revelar a aversão de Dirceu pela imprensa, tratando os jornalistas que recebia com desprezo, a ocupação da Maria Antônia também foi marcada por um episódio de triste lembrança: ele cedeu aos encantos de uma bela morena de roupas justas, que se revelaria uma agente infiltrada, que repassou ao Dops paulista várias informações sobre os estudantes. Descoberta, foi expulsa do campus. Menos sorte teve outro espião, o estudante da Mackenzie João Parisi Filho, supostamente interrogado, submetido a sevícias, algemado e mantido em cárcere privado.

José Dirceu no congresso clandestino da UNE em Ibiúna (1968)
O núcleo seguinte da biografia é o congresso clandestino da UNE, que reuniu 800 estudantes em Ibiúna, em1968, e teve desenlace desastroso, com a prisão e espancamento de Dirceu, Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis e na detenção temporária e fichamento de mais de 700 jovens – entre eles César Maia, José de Abreu, Gianfrancesco Guarnieri e Lúcia Murat.  A responsabilidade de Dirceu nesse episódio é um tema polêmico que merecia investigação mais profunda, não ficando claro até que ponto seu personalismo resultou na descoberta e invasão do congresso pela polícia (“Vacilei muito”, ele já declarou a respeito). Escreve Cabral: “A lista dos 706 presos [em Ibiúna] se transformaria, nas mãos dos militares, em uma agenda de ‘comunistas subversivos’. Nos anos seguintes, nove seriam assassinados pelo regime militar. Outros sete continuam na lista dos desaparecidos políticos.”
Os presos políticos libertados em troca do embaixador americano Charles Elbrick (1969)
Cabral passa então à troca de 15 presos políticos pelo Embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado por integrantes da ALN – Aliança Libertadora Nacional em 1969. O episódio, um dos mais simbólicos da resistência à ditadura, está contado em detalhes no filme e no livro ‘Hércules 56’, de Silvio Da-Rin. Dirceu já estava preso há 10 meses e 24 dias quando foi libertado e embarcado num avião militar para o México, de lá seguindo para Cuba pouco menos de um mês depois. Foi uma operação arriscadíssima, conduzida num dos momentos mais negros da ditadura: já sob a vigência do AI-5 e com generais linha-dura se recusando a negociar (incluindo Médici, futuro presidente), todas as condições estacam dadas para o fracasso, mas a pressão do Governo americano, que temia a morte de Elbrick, falou mais alto. Na famosa fotografia dos presos políticos libertados (e banidos do Brasil), Dirceu é o único que levanta os punhos para mostrar as algemas, com a expressão de desafio característica de todas as imagens da sua juventude.
Seguem dois capítulos sobre o treinamento de guerrilha de Dirceu em Cuba – interrompido por uma queda de 10 metros ao tentar atravessar um rio por uma corda esticada – e sua desastrosa experiência à frente do MOLIPO – Movimento de Libertação Popular, em sua primeira volta clandestina ao Brasil. A reconstituição dos 23 dias passados no México, com a desconfiança e as rixas surgindo entre Dirceu e seus colegas, é um dos pontos altos da biografia. Em 30 de setembro de 1969, Dirceu e mais 12 exilados partiriam para Havana, onde ele adotou o codinome Daniel (mais tarde, Hoffmann) e assumiu um papel de liderança bastante contestado pela colônia brasileira na ilha, que o considerava pouco confiável e carreirista, existindo a suspeita de sua colaboração com o serviço secreto cubano.
Criado e treinado em Cuba, o MOLIPO foi a experiência mais trágica na história da resistência à ditadura. Praticamente todos os seis integrantes foram assassinados pela repressão, em um curto período.  Desde o desembarque no Brasil dos primeiros militantes, o Dops já tinha os nomes de todos os membros do movimento e conhecia pormenores de seus planos. Ao longo de 1971, o MOLIPO esteve à frente de atentados a bomba, assaltos a bancos e até do incêndio de um ônibus, a pretexto de… protestar contra o aumento das passagens. Mas em novembro daquele ano começou o massacre. Dirceu, contudo, conseguiu escapar, voando de volta para Cuba.  Entre as hipóteses para o fracasso consumado do MOLIPO, Cabral menciona a tese de que Dirceu seria um delator – já levantada pela historiadora Taís Moraes no livro “Sem vestígios – Revelações de um agente secreto da ditadura militar”.
Ao longo de todo o texto de Otávio Cabral, o anedótico prevalece sobre a análise e a contextualização: em uma biografia que se pretende definitiva, não deixa de ser problemático que momentos críticos da vida do protagonista sejam tratados apenas tangencialmente. Ou, o que é mais grave, que hipóteses polêmicas como a da delação no MOLIPO tenham sido apenas reproduzidas, sem que o autor aprofundasse sua apuração; trata-se de assunto gravíssimo, que merecia ser escarafunchado até que novas informações reforçassem a hipótese ou a enterrassem de vez. Não sendo assim, trata-se apenas de alimentar um boato.  Idem em relação à reprodução da insinuação leviana sobre a natureza da relação entre Dirceu e seu protetor cubano, Alfredo Guevara.
Mais interessante é a reconstituição da atribulada vida amorosa de Dirceu, que numa determinada altura lembra o personagem Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, com uma esposa em Cruzeiro do Oeste, sob identidade falsa, e um caso fixo em São Paulo. O sucesso de Dirceu com as mulheres é talvez o único aspecto de sua vida que Cabral trata com admiração.
No último núcleo temático da biografia – antes de ela chegar ao encontro de José Dirceu com Lula em São Bernardo, promovido por Frei Betto no momento mesmo em que se criava o PT – Cabral trata do período em que Dirceu viveu clandestino em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná, onde se casou e teve um filho com Clara, bela e bem-sucedida dona de uma loja de roupas. O casamento lhe valeu o apelido de Pedro Caroço, referência a uma canção brega da época, “Severina Xique-Xique” (“Ele tá de olho é na butique dela”, dizia o refrão bem humorado). Dirceu viveu na pele do comerciante Carlos Henrique de 1975 até a lei da Anistia, em 1979, quando simplesmente informou à esposa que ele não era ele e partiu para São Paulo. Paro por aqui.
Após a leitura de “Dirceu: a biografia”, permanecem muitos os assuntos por esclarecer, confirmar ou desmentir no período tratado neste texto, goste-se ou não de José Dirceu  (e independentemente dos seus atos no poder, pelos quais já foi julgado e condenado no Supremo). Diversos episódios deveriam ter sido objeto de um esforço mais tenaz por parte do biógrafo do que a transcrição de uma única fonte ou versão, nem sempre confiável.
Em entrevista concedida em dezembro de 2005, usada como uma das muitas epígrafes do livro, Dirceu afirmou: “O que fiz só vou falar mesmo depois de 80 anos. O que fiz na guerrilha, na luta armada, no mundo, isso só depois de 80 anos”. Talvez Dirceu esclareça todas as dúvidas remanescentes quando der sua própria versão da história. Mas, como ele ainda está com 67, ainda vai demorar um pouco. Como ele ainda é um ator político de peso, até lá terá certamente acumulado novas histórias, incluindo memórias de um novo período no cárcere (ou não). Mas é importante enfatizar que Dirceu viveu todas essas aventuras, cometendo erros e acertos, em um período da História brasileira em que era fácil distinguir o bem do mal, em que havia alvos e inimigos claramente delineados. Todos tinham lado naquela guerra. Hoje vivemos uma situação bastante diferente: as manifestações que tomam conta das ruas, ainda que delas se tente fazer uso partidário, escapam de qualquer controle e se voltam contra todos os partidos, não em função de uma reflexão teórica sobre a eficácia do nosso modelo representativo, mas como reação espontânea e instintiva, como sinal de que a paciência da sociedade com as nossas práticas políticas está acabando, processo agravado pelos sintomas de crise na economia. Convém prestar atenção nesse sinal.

Fonte: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/page/2/

Nenhum comentário:

Postar um comentário