Feminicídio: o que não tem nome não existe
Alice Bianchini, Fernanda Marinela e Pedro Paulo de Medeiros.
O
Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em 03.03.2015, o Projeto de
Lei 8305/14, do Senado, que inclui o feminicídio como homicídio
qualificado, classificando-o ainda como hediondo.
O feminicídio
constitui a manifestação mais extremada da violência machista fruto das
relações desiguais de poder entre os gêneros. Ao longo da História, nos
mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são
assassinadas pelo tão-só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte
de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros, torturas,
mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos
armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e
fora da família.
Vários países, principalmente na América
Latina, criminalizaram o feminicídio, trazendo, em sua descrição típica,
requisitos específicos e que
se diferenciam de um local para outro.
Têm-se aqui medidas penais gênero-específicas.
Essa tendência
para a criminalização também chegou ao Brasil. O projeto de lei que
criminaliza o feminicídio considera que há razões de gênero quando o
crime envolve: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou
discriminação à condição de mulher.
A criminalização do
feminicídio tem provocado um intenso debate entre os estudiosos das
questões de gênero (sociólogos, psicólogos, juristas etc.), alguns
justificando a necessidade de criminalização da conduta e outros
entendendo que ela já se encontra contemplada nos tipos penais
existentes na legislação brasileira (homicídio qualificado, sequestro,
vilipêndio de cadáver etc.).
Independentemente da posição por se
criminalizar especificamente ou não o feminicídio, há consenso em
relação à gravidade do problema e à necessidade de explicitá-lo, de
torná-lo visível, para que seja conhecido e compreendido e, a partir
daí, seja intensificada a sua prevenção. Isso, contudo, pede
sensibilidade e mobilização social. A tarefa é por demais complexa para o
Judiciário, que terá uma margem muito limitada de ação, já que a sua
atuação é condicionada à existência do fato, ou seja, do crime. Não se
pode esquecer que quando o Judiciário é chamado a atuar o bem jurídico
já foi lesado. Às medidas preventivas, portanto, é que devemos dedicar a
maior parte de nossa atenção.
Por longo tempo, as mulheres foram
(e hoje ainda muitas o são) educadas a partir de valores de submissão e
invisibilidade: no espaço privado, somente lhes era dado desenvolver os
papeis de criadoras e cuidadoras; no espaço público, sobre elas se
lançavam olhos, vozes e gestos de reprimenda, se fugissem do seu
“atributo da natureza”. Aliás, mesmo um dos principais problemas de que
eram vítimas, a violência, somente passou a ser estudado com mais afinco
partir da década de 90 do século passado, quando então é visto como
assunto de diretos humanos e de saúde pública.
No contexto da
violência contra a mulher é que se insere a análise acerca da
conveniência da criminalização do feminicídio. Tal discussão é
fundamental no campo político, social e jurídico. Ainda que não haja
acordo sobre a criminalização do feminicídio, existe um consenso mínimo
acerca de algumas das suas características: a morte das mulheres pelo
fato de ser mulher é produto das relações de desigualdade, de exclusão,
de poder e de submissão que se manifestam generalizadamente em contextos
de violência sexista contra as mulheres. Trata-se de um fenômeno que
abarca todas as esferas da vida de mulheres, com o fim de preservar o
domínio masculino nas sociedades patriarcais.
Não obstante o
reconhecimento do problema, bem como da necessidade de se criarem
instrumentos para seu controle, estudiosos divergem acerca da
criminalização específica, sendo que um dos principais argumentos
daqueles que se posicionam de forma contrária é exatamente a proteção já
realizada por meio de tipos penais neutros, citando o homicídio
qualificado, o sequestro, as lesões, o estupro, a vilipendiação de
cadáver etc.
Os simpatizantes da criminalização
gênero-específica, por sua vez, alegam que não são suficientes os tipos
penais neutros, pois o fenômeno da violência contra a mulher permanece
oculto onde subsistem pautas culturais patriarcais, machistas ou
religiosas muito enraizadas e que favorecem a impunidade, deixando as
vitimas em situação de desproteção. Ou seja, corre-se o risco de
sentença ser alcançada por tais concepções de mundo, o que reforçaria a
invisibilidade do fenômeno e impediria que se fizesse justiça ao caso
concreto, já que a maior carga de desvalor do fato (feminicídio) não
estaria sendo levada em consideração. E não se propõe punir mais, mas em
fazê-lo de acordo com a gravidade do fato.
Além da discussão acima, outros argumentos são trazidos pelos que defendem a criminalização do feminicídio. Vejamos:
(a) Instrumento de denúncia e visualização dos assassinatos de mulheres por razão de gênero;
(b) Utilidade criminológica: dados e números concretos, fazendo aflorar a realidade e permitindo uma melhor prevenção;
(c) Poder simbólico do direito penal para conscientizar a sociedade sobre a gravidade singular desses crimes;
(d) Novas figuras penais podem contribuir a que o Estado responda mais adequadamente ante esses crimes;
(e) Compromete as autoridades públicas na prevenção e sanção dos homicídios de mulheres;
(f)
Não se trata de dar um tratamento vantajoso para as mulheres à custa
dos homens, senão de se conceder uma tutela reforçada a um grupo da
população cuja vida, integridade física e moral, dignidade, bens e
liberdade encontram-se expostas a uma ameaça específica e especialmente
intensa.
(g) Princípio da proibição da proteção deficiente;
(h) O Comitê CEDAW vem apoiando as leis de tipificação do feminicídio desde 2006 (Comitê CEDAW, 2006, 2012);
(i) Existe extremo interesse constitucional e do legislador em erradicar as práticas de violência contra a mulher
(j)
Em razão do princípio da igualdade e da obrigação do Estado de garantir
os direitos humanos, é necessário tratar juridicamente de maneira
distinta situações que afetam de maneira diferente a cidadania.
(k)
O legislativo deve determinar a pertinência, oportunidade e
conveniência, em termos de política criminal, da tipificação das
condutas, sendo que existem, tanto no Direito Internacional dos Direitos
Humanos, como no Direito Constitucional de diversos países, elementos
suficientes para justificar a adoção de normas penais gênero-específicas
em matéria de violência contra as mulheres.
Os argumentos
contrários, por outro lado, são eloquentes, mas, em nossa opinião,
insuficientes para afastar a necessária, adequada e urgente
criminalização do feminicídio. Apesar disso, não se os deve perdê-los de
vista, já que servem de alerta para que a preocupação que carregam não
venha a se concretizar. Vejam-se os principais argumentos:
(a) Discriminação em prejuízo dos homens, dando maior valor a vida das mulheres;
(b) Violação do principio básico de direito penal liberal, caracterizado pela igualdade;
(c)
Ambivalência de um conceito cuja força reivindicativa parece diluir-se
convertendo-se de um processo de transformação de categoria
teórico-política em figura de direito positivo;
(d) O poder
político se vale dessa categoria, incluindo-a em sua legislação e, com
isso, isenta-se de investir recursos humanos e econômicos suficientes
para efetivamente conter a violência.
(e) Em muitos países, a tipificação tem sido tão confusa que dificilmente se a pode aplicar
(f)
Reforça a imagem estereotipada das mulheres como vítimas e, em
consequência, reduz ainda mais no imaginário social o empoderamento das
mulheres;
(g) A ênfase deve ser nas políticas preventivas e não nas penais;
(h)
O recurso ao direito penal transformou-se em um instrumento ao alcance
de qualquer grupo político e possui baixo custo, comparado com a
implementação de políticas públicas, e alta popularidade, especialmente
em situações de alta violência e criminalidade;
(i) O direito
penal não é uma via adequada para fazer frente a esse fenômeno, sendo
que a tipificação do feminicídio tem um impacto mais midiático que real,
posto que a proteção das mulheres não se incrementa por esta via,
criticando-se a ênfase unicamente penal da normativa e a falta de
medidas que fortaleçam a prevenção, tratamento e proteção das mulheres.
De
todos os rechaços feitos à criminalização do feminicídio, é importante
detalhar o último (utilização da função simbólica do direito penal), já
que, de fato, é bastante comum que o legislador lance mão do recurso ao
direito penal, quando, sabe-se, seu potencial preventivo (caráter
dissuasório) é muito acanhado (em existindo).
É aqui que entra
em cena a discussão acerca da função do direito penal. Apesar das
divergências, grande parte da doutrina penal é acorde em estabelecer,
dentre outras, a função de proteção de bens jurídicos. Nessa
perspectiva, ainda que a resposta penal seja insuficiente como resposta
do Estado frente à violência contra as mulheres, é uma resposta
imperativa, dada a gravidade do atentado a um bem jurídico fundamental.
Referências bibliográficas
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: lei 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero.
BODELÓN, Encarna. Violencia de género y as respuestas de los sistemas penales. Buenos Aires: Didot, 2013.
MARIÑO, Fernando M. (Org). Feminicidio: el fin de la impunidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013.
TOLEDO VÁSQUEZ, Patsili. Buenos Aires: Didot, 2014.
Alice Bianchini - Comissão da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB, Portal Atualidades do Direito.
Fernanda Marinela - Presidente da Comissão da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB.
Pedro Paulo de Medeiros - Presidente da Comissão de Direito Penal do Conselho Federal da OAB.
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