"Fiz coisas mais importantes na vida", diz militar que capturou Che Guevara
Na madrugada do dia 8 de outubro de 1967, ao receber a denúncia de
que guerrilheiros andavam pela região da Quebrada del Yuro, o capitão da
8ª divisão do Exército boliviano, Gary Prado, não pensou duas vezes:
arregimentou rapidamente 50 de seus melhores homens e os conduziu até o
topo do cânion no qual, de fato, encontravam-se Che Guevara e parte de seu grupo armado, que havia quase um ano tentavam implantar um foco revolucionário no coração da América do Sul.
Após intensa troca de tiros, Che foi preso e conduzido por Prado ao
vilarejo de La Higuera, onde foi executado a mando do então presidente
da Bolívia, René Barrientos.
Hoje com 74 anos, o agora general
reformado ainda parece uma pessoa de prontidão para o combate – seja ele
feito com armas ou palavras. Preso há mais de 30 anos a uma cadeira de
rodas, devido a um projétil que destruiu sua espinha durante um evento
militar (em um acidente nunca esclarecido), ele mostra-se um homem frio e
de consciência tranquila: descreve com humor a ocasião em que, em 1968,
quase foi assassinado por um grupo esquerdista no Rio de Janeiro (que
queria vingar o guerrilheiro argentino) e rejeita com um sorriso irônico
a "maldição do Che", à qual é
atribuída a morte violenta de vários militares envolvidos na captura do revolucionário.
atribuída a morte violenta de vários militares envolvidos na captura do revolucionário.
Busto gigante de Che Guevara adorna a praça central de La Higuera, o remoto vilarejo boliviano no qual o guerrilheiro argentino foi executado em 9 outubro de 1967 Leia mais
Prado exibe diversas condecorações do Exército boliviano e já foi
embaixador do país no México e na Inglaterra. Na parede de sua casa na
cidade de Santa Cruz de la Sierra, aparece em uma foto dando a mão para o
papa João Paulo 2º. "Fiz coisas mais importantes na vida do que
capturar Che Guevara", afirma ele.
Qual foi a reação de Che Guevara no momento em que ele se viu capturado?
Eu tenho duas imagens do Che neste momento. A primeira é a de um homem
acabado, que se rendia. Muita gente me pergunta: o que você sentiu
quando se viu na frente do Che? E eu digo: me deu pena. Era um homem em
péssimo estado físico, com a roupa suja, e seu estado de ânimo não era
melhor. Ele estava totalmente deprimido. Nas horas em que combateu
nossos soldados, Guevara viu morrer vários de seus companheiros e,
quando já estava sob nosso controle, me disse: "isso está acabado".
Porém, curiosamente, ao perceber que o tratávamos bem, seu estado de
ânimo melhorou. Foi nesse momento em que ele começou a se preocupar com
seu futuro e a perguntar o que iríamos fazer com ele. Nesse momento não
havia nenhuma instrução do que não deveríamos fazer com os prisioneiros e
minha resposta foi simples: você será julgado em Santa Cruz de la
Sierra, que é a sede do comando da divisão que o capturou. Ele
provavelmente imaginou que seu julgamento se transformaria em uma causa
célebre. São essas as duas imagens que tenho dele naqueles instantes: o
homem deprimido logo após a captura e uma pessoa mais otimista em La
Higuera.
Como foi a última vez em que o senhor viu Che Guevara vivo?
Foi manhã do dia 9 de outubro, quando chegou a La Higuera de
helicóptero o comandante da minha divisão, o coronel Joaquín Zenteno. Eu
lhe entreguei meus dois prisioneiros [Che Chevara e o boliviano Simeón
"Willy" Sanabria] e os materiais capturados na operação. Zenteno me
pediu para levá-lo até a zona em que havíamos prendido os guerrilheiros.
Após observar a área, ele me disse que tinha que falar com La Paz e
voltou a La Higuera. Eu fiquei perto da Quebrada del Yuro, pois tinha
que fazer uma varredura para acabar com os guerrilheiros que ainda
restavam na zona. Matamos mais dois guerrilheiros em um combate e então
regressamos a La Higuera. Quando chegamos ao vilarejo, um major veio até
mim: "o Che foi executado. Ordens de La Paz". Durante todo o dia, havia
um helicóptero transportando corpos de soldados e guerrilheiros entre
La Higuera e Vallegrande, e a ordem do coronel Zenteno era que o corpo
de Che fosse levado na última viagem. O cadáver dele já estava sendo
amarrado aos patins do helicóptero. Eu me aproximei do corpo e amarrei
meu lenço em volta de sua mandíbula, para que seu rosto não deformasse.
Ele ficou parecendo com uma pessoa com dor de dente. Essa é a última
imagem que eu tenho dele, o momento em que ele partia no helicóptero.
O
senhor acredita na "maldição do Che", que teria ocasionado a morte de
várias pessoas envolvidas em sua captura [como o coronel Joaquín
Zenteno, assassinado em Paris em 1976, e o próprio presidente René
Barrientos, morto em um acidente aéreo em 1969]?
[Sorrindo e balançando a cabeça negativamente] Isso é um disparate.
E
o que o exatamente aconteceu no Rio de Janeiro em 1968, quando um grupo
armado de esquerda assassinou um militar alemão pensando que era o
senhor?
Em 1967, eu havia recebido uma bolsa para fazer um
curso na Escola de Estado Maior do Brasil, na Praia Vermelha. Eu vivia
em Copacabana e estudava com oficiais de vários países, como argentinos,
paraguaios, portugueses, italianos. E havia um alemão, que vivia perto
de mim. Um dia, vestidos como civis, pegamos o ônibus juntos. Eu desci
primeiro e ele desceu umas duas quadras depois. O que sabemos é que, no
momento em que ele se aproximava de sua casa, dois homens apareceram
entre os carros e dispararam diversos tiros contra ele. Quando souberam
da história, os oficiais da Escola Maior foram até minha casa para me
levar para um lugar seguro. Uma das possibilidades levantadas foi a de
que os assassinos o tinham confundido comigo, que o atentado deveria ser
feito contra mim. Mas isso nunca foi comprovado e minha vida continuou
relativamente normal. De qualquer modo, eu tive uma vantagem, pois
comecei a morar dentro do edifício militar da Praia Vermelha, junto com
oficiais brasileiros, o que me fez poupar pelo menos três anos de
aluguel no Brasil. Recentemente, em 1999, um colega me ligou dizendo: "O
'Fantástico', da Rede Globo, está mostrando uma reportagem sobre as
pessoas que tentaram te matar e haviam se enganado". Ele me mandou uma
gravação e lá estavam os caras que tentaram me matar, que supostamente
pertenciam a uma célula comunista.
Hoje o senhor é um
general reformado com uma longa carreira no Exército e no governo
boliviano. O senhor gosta de ser recordado principalmente como o homem
que capturou Che Guevara?
Na minha vida, fiz coisas mais
importantes do que capturar Che. Mas isso é algo com que eu tenho que me
acostumar a viver, certo? Neste escritório [apontando para dezenas de
retratos nas paredes], sempre ouço a mesma pergunta: 'mas como você não
tem nenhum foto do Che aqui?'. E a minha resposta é a mesma: por que vou
ter uma foto do Che aqui? Fiz coisas mais importantes na minha vida.
Mas tenho muitos livros publicados sobre ele, como referência.
Como seriam a Bolívia e a América do Sul caso a guerrilha de Guevara tivesse tido êxito?
Um governo dessa natureza não teria sobrevivido na Bolívia, que não tem
saída para o mar e na época estava rodeada de ditaduras militares [de
direita]. É impossível pensar que uma guerrilha de esquerda conseguiria
tomar o poder na Bolívia. Nossas fronteiras e espaço aéreo seriam
fechados, ninguém mais iria entrar aqui. Era uma utopia, um sonho
complicado. Por outro lado, o que Cuba fez com o Che foi uma traição: o
abandonaram. O governo de Fidel Castro o mandou para a Bolívia para se
livrar dele. Em 1965, Fidel leu publicamente a carta em que Che se
despedia de Cuba e renunciava a seus cargos no governo da ilha. Naquele
momento, Che estava conduzindo uma guerrilha na República Democrática do
Congo e li [em um relato escrito pelo guerrilheiro cubano Daniel
Alarcón Ramírez, que acompanhava Che na empreitada], que Guevara ficou
furioso ao saber da publicação de sua carta. Ele queria que essa carta
só fosse publicada caso ele fosse morto no Congo, para que Cuba fosse
isentada de qualquer responsabilidade de intervenção no país africano.
Isso fechou seu caminho de volta a Cuba, pois ele havia renunciado a
tudo. E a mesma coisa aconteceu quando ele chegou a Bolívia: ele teve
pouquíssimo suporte de Cuba para conduzir sua guerrilha.
Escolher o Sudeste da Bolívia como área de operação da guerrilha foi um erro?
A população dessa região já era dona de suas terras e nunca havia sido
oprimida como o foram os mineiros bolivianos, por exemplo, que se
encontram em outras regiões da Bolívia. Além disso, é uma área que
concentrava muitos ex-combatentes da Guerra do Chaco [conflito
territorial sangrento ocorrido entre Bolívia e Paraguai de 1932 a 1935],
todos extremamente nacionalistas e zelosos de seu território. O Che não
iria conseguir nunca recrutar essa gente para sua guerrilha. Além
disso, a partir de 1964, o presidente René Barrientos conduzia um
programa chamado "Ação Cívica", em que o Exército fazia diversos
trabalhos sociais para a gente do campo. Os camponeses gostavam do
Exército e viraram delatores do movimento guerrilheiro.
Matar Che Guevara foi a melhor decisão?
Nesse momento [após ele ser capturado] não me pareceu a melhor decisão.
Mas foi algo compreensível. Em 1976, o general Alfredo Ovando [que
comandava o Exército da Bolívia em 1967] me contou como foi a reunião
com o presidente Barrientos que decidiu o destino de Guevara. Eles
consideraram um julgamento, mas logo descartaram a ideia, pois seria um
show midiático. Além disso, em um julgamento, Guevara teria que ser
condenado a pelo menos a 30 anos de prisão, pois ele tinha invadido a
Bolívia e matado diversos soldados bolivianos. E onde prendê-lo? Na
época, as cadeias na Bolívia mal tinham paredes, só ficava preso quem
queria. Seguramente iríamos ter que lidar com diversas tentativas para
libertá-lo. Seria um fator de agitação permanente. Assim que a conclusão
do alto poder foi a seguinte: era necessário executá-lo.
Mas isso também criou um mártir...
O procedimento da execução foi errado. Nós [diversos oficiais presentes
em La Higuera] não fomos consultados sobre qual era a melhor forma de
sair daquele impasse. Não tínhamos ordem para matar Che no momento em
que o capturássemos e diversos camponeses o viram saindo vivo da
Quebrada del Yuro e caminhando em direção a La Higuera. O governo quis
informar que Che havia sido morto em uma troca de tiros, mas todos já
sabiam que isso não tinha acontecido. Ter sido capturado em combate e
morto em uma escolinha em um lugar isolado da Bolívia contribuiu para a
criação do mito em torno dele.
Fonte: http://noticias.uol.com.br.
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