Polêmica
Esfera pública, visibilidade e biografias
O que está em jogo é muito mais do que o direito de
publicar uma fofoca sobre Caetano Veloso . É a natureza da esfera
pública
por Fórum de Interesse Público
O Brasil pós-88 pode ser considerado uma democracia ativa e vibrante
por uma série de critérios. O País desenvolveu um conjunto de formas de
participação que hoje são consideradas exemplares em todo o mundo.
Assistiu à expressão de um conjunto muito forte de movimentos nos
últimos 20 anos: a campanha das diretas, a campanha pelo impeachment
de Collor e as manifestações de junho passado. Todas essas
manifestações ajudaram a democracia brasileira a avançar através da
presença forte de atores sociais na esfera pública pautando o Estado e o
sistema político. A força da nova democracia brasileira é o vigor da
sua esfera pública. É ai que os diferentes atores sociais se expressam,
trocam ideias e influenciam o sistema político.
No entanto, uma questão tem assolado a esfera pública no Brasil nos
últimos 20 anos, a saber o desequilíbrio entre representação e
visibilidade. Desde a redemocratização brasileira a
questão do papel dos
artistas na esfera pública aparece como um desequilíbrio na noção de
público. Os artistas e os indivíduos com maior visibilidade se
posicionam publicamente supostamente com mais peso do que os demais
indivíduos, tornando a esfera pública um espaço com fortes
desequilíbrios. Alguns governos transformaram tal fato em política
pública, tal como foi o caso do governo FHC, no qual artistas como
Caetano Veloso e Renato Aragão assumiram a representação da sociedade
civil no programa Comunidade Solidária. Tal designação, absurda em si
mesma, supunha que a visibilidade substitui a representatividade. Este é
o mote que se expressa agora na disputa em torno da biografias.
Vale a pena discutir um pouco sobre o papel das biografias na ideia
de público e de esfera pública. As biografias operam com duas ideias, a
da exemplaridade e a das tensões da vida privada. Os indivíduos que são
biografados o são porque eles expressam formas de vida que nos ajudam a
interpretar as nossas próprias contradições. Ou, no caso da biografias
políticas, porque, no passado, indivíduos foram capazes de tomar
decisões que podem ajudar os políticos atuais - pensemos em algumas das
excelentes biografias sobre Churchill e Roosevelt - a tomarem decisões.
De qualquer maneira, se pensarmos em biografias excelentes publicadas
recentemente, como a de Hanna Arendt por Elizabeth Young Bruehl ou de
Clarice Lispector, por Benjamin Moser, o que as torna interessantes é
justamente a natureza contraditória e a tensão na vida privada dos
biografados.
Não sabemos ao certo se a mãe de Clarice Lispector foi estuprada e
qual foi o impacto desta violência na vida e na obra da escritora. Nem
qual foi a natureza do relacionamento entre Hanna Arendt e Heidegger. As
versões são diferentes e os autores escolhem versões que frequentemente
não agradam aqueles que estão próximos dos biografados. É justamente
isso o que torna o gênero interessante, a natureza contraditória das
vidas privadas que adquirem visibilidade pública. É justamente esse
aspecto que os artistas brasileiros querem suprimir das biografias.
Vale a pena mencionar a natureza contraditória da vida pública no
Brasil. O nosso País vive ainda na sua plenitude a tradição do
familismo, isto é, das relações privadas que adentram a esfera pública
para manutenção de privilégios, entre os quais podemos incluir a memória
oficial. É assim que vemos algumas das pérolas que circularam pela
imprensa brasileira na última semana: a família de Paulo Leminski
preocupada com uma biografia que retrata o problema do alcoolismo; a
família do Roberto Carlos preocupada com elementos da sua vida amorosa, e
assim por diante. Deve-se pensar comparativamente. Seria possível fazer
a biografia do ex-presidente Roosevelt sem tratar da sua relação com
Lucy Mercer? Ou Hanna Arendt sem a sua relação com Heidegger? Este é o
ponto sensível da questão. O familismo brasileiro exige uma estória
oficial para os seus membros e está disposto a arruinar um gênero
literário importante na busca dos seus objetivos.
O que está em jogo na discussão sobre biografias é muito mais do que o
direito de publicar uma fofoca sobre Caetano Veloso ou Roberto Carlos. É
a natureza da esfera pública no País que está em jogo, ou seja, se ela
será determinada por atores com supervisibilidade e tementes das
contradições das suas imagens privadas ou se ela será uma esfera pública
de iguais. Uma esfera pública de iguais exige uma pluralidade visões
sobre a vida dos indivíduos que as biografia são capazes de produzir.
Se houver exageros - é possível que eles existam - existem leis no
país capazes de puni-los, tal como ocorre em todas as demais
democracias. É importante que tanto o Congresso Nacional como Judiciário
reconheçam o direito à liberdade de expressão das pessoas com
visibilidade, sem o qual a democracia brasileira dará um passo para
trás.
*Leonardo Avritzer é professor titular de ciência política da UFMG
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