A invasão da Líbia pela Otan, a morte de Kadafi e a tragédia de Lampedusa
Achille Lollo
 
de Roma (Itália)
No
 dia 5 de outubro, o governo italiano enviou a Lampedusa a ministra da 
Integração, Cecile Kyenge, para fazer o balanço da tragédia; a seguir o 
presidente da República, Giorgio Napolitano, mandou baixar a bandeira 
nacional nos prédios públicos para homenagear os 363 africanos mortos no
 mar. Nos campeonatos de futebol, basquete e vôlei as equipes dedicaram 
um minuto de silêncio para lembrar as vítimas, enquanto os canais 
estatais Rai-1, Rai2 e Rai-3 realizaram várias reportagens sobre o drama
 da imigração.
Porém, dois dias depois, dia 7, 
tudo voltou como era
antes: o Parlamento Europeu não agendou o debate 
sobre os programas para financiar a integração dos imigrantes na União 
Europeia, enquanto o governo italiano repassava para o Alto Comissariado
 das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e outras agências 
humanitárias o ônus dos imigrantes africanos.
Mais
 do que isso, nenhum parlamentar “progressista” do partido do governo, o
 Partido Democrático (PD), de Enrico Letta, tomou a iniciativa de lançar
 uma proposta de lei para anular a Lei Bossi-Fini, que penaliza com 
prisão e deportação os imigrantes considerados clandestinos.
Uma
 lei que não faz nenhuma distinção entre as pessoas que fogem de confl 
itos e aquelas que vêm de situações conjunturais dramáticas e que, 
sobretudo, não tem um pingo de solidariedade com os jovens que fogem do 
desemprego e da fome, sejam eles mulheres grávidas ou crianças.
Uma
 lei que serve apenas aos interesses da União Europeia e que os governos
 italianos introduziram em suas instituições esquecendo que essa mesma 
Itália foi um país que, de 1870 até 1964, inundou o mundo com imigrantes
 pobres, analfabetos e teimosos por querer trabalhar e, assim, construir
 um mundo melhor.
Os imigrantes africanos
A
 invasão da Líbia por parte das tropas do OTAN e a destruição do modelo 
institucional criado por Kadafi , a Jamayria, se transformou em uma 
verdadeira tragédia para os imigrantes africanos que estavam trabalhando
 na Líbia. Um contingente que somava cerca de 1 milhão de homens, além 
de 200 mil mulheres.
De fato, os vencedores e, 
sobretudo, as brigadas salafitas da Cirenaica que se havia apoderado de 
Benghazi e da capital Trípoli, começaram a praticar uma autêntica 
limpeza étnica acreditando que os imigrantes africanos se juntariam aos 
fiéis de Kadafi , ainda majoritários nas regiões de Sirte e da capital 
Trípoli.
Por isso, e sob o olhar dos soldados da 
OTAN, dos diplomatas europeus e dos empresários das transnacionais, em 
Trípoli, e nas demais cidades da Líbia aconteceram horrendos massacres 
de “Black People” (homens negros), acusados de terem sido soldados de 
Kadafi .
Depois vieram as prisões em massa. 
Muitos deles foram e continuam sendo torturados para se obter uma 
confissão que permita as novas autoridades da Líbia justificarem um 
tratamento tão desumano com pessoas cuja única culpa é serem negros e de
 origem africana.
Calcula-se que nas prisões e 
nos ditos “campos de controle” há, ainda, cerca de 150 mil africanos. 
Outros 400 mil foram reintegrados nos trabalhos humildes e braçais que 
os líbios se recusam fazer. Cerca de 50 mil foram mortos durante a dita 
libertação, enquanto outros 200 mil foram obrigados a sair pelas 
fronteiras do sul em direção ao Sudão, à Eritréia, ao Chade e ao Mali, 
passando do mal para o pior. Restam na Líbia, aproximadamente, menos de 
400 mil africanos que desde janeiro de 2012 tentam desesperadamente 
atravessar o canal da Sicília para fugir de um país que virou um 
inferno.
Todos esses africanos — que pagam de 
2.000 até 3.500 euros por um lugar em velhos barcos de pesca 
superlotados — vem, na maioria, de países destruídos por guerras civis 
(Somália, Eritreia, Sudão), ou pela pobreza (Mali, Níger, Chade, Egito, 
Tunísia, Marrocos).
Todos eles já pediram vistos 
de entrada nos consulados e nas embaixadas dos países da União Europeia,
 dos EUA e do Canadá. Mas seus pedidos foram sempre rejeitados.
De
 fato, o sonhado carimbo verde no passaporte é concedido somente a quem 
tem recursos para investir ou às “pessoas inteligentes e politicamente 
adequadas às regras da democracia ocidental”. Isto é, os filhos das 
burguesias que sustentaram e integraram os regimes corruptos, 
autoritários e abertamente neocoloniais. Eles, sim, têm o direito de 
desembarcar nos aeroportos dos países ditos de “Primeiro Mundo”. Para os
 demais filhos do povo, inclusive aqueles com diplomas universitários, o
 destino é o mar assassino do canal da Sicília. Depois, se conseguem 
desembarcar há o inferno da dita integração nos “centros de acolhimento”
 do sul da Itália.
A Lei Bossi-Fini
Nos
 primeiros anos do século, Berlusconi se tornou o “engraxate de botas” 
de Bush e depois de Putin por consolidar no exterior seu poder e os 
sucessos eleitorais que suas televisões garantiram ao Povo da Liberdade 
(PdL).
A seguir, foi bajular os principais 
governantes europeus, nomeadamente Sarkozy e Angela Merkel, aos quais 
ofereceu transformar o sul da Itália “na fronteira europeia da imigração
 clandestina”. Foi com essa ênfase europeia que o governo Berlusconi 
encarregou o pós-fascista Fini e o líder racista Ugo Bossi, da Liga 
Norte, para que apresentassem ao Parlamento um Projeto de Lei contra a 
imigração clandestina.
Uma lei que além de negar o
 acesso à Itália a quem chega sem visto de entrada, os prende em 
“centros de acolhimento”, sob a acusação de serem clandestinos, 
potencialmente prepostos à deportação.
Tais 
centros, na realidade, são autênticos campos de concentração onde os 
africanos e os magrebinos ficam aí presos até o momento de serem 
deportados. Por outro lado, essa lei penaliza juridicamente, também, 
quem facilita a chegada dos clandestinos. Por exemplo, os pescadores que
 salvam os imigrantes no mar quando os barcos deles afundam depois são 
processados pelos tribunais como “cúmplices”.
Em 
média, somente 5% dos “clandestinos” africanos que desembarcam na 
Sicília são considerados “refugiados políticos”. Outros 25% são aceitos 
porque lhes foi reconhecido o “refúgio por motivos humanitários”. Por 
isso, todo mês se registram muitas evasões dos “centros de acolhimento”,
 com centenas de fugitivos que tentam chegar nas grandes metrópoles 
(Nápoles, Roma, Milão), onde a única alternativa é trabalhar na 
“economia ilegal” das gangues mafiosas. Isto é: virar escravos dos 
mecanismos da “economia ilegal”, até serem presos pela polícia ou pelos 
carabineiros nas contínuas batidas, realizadas nos miseráveis guetos dos
 subúrbios que agora hospedam apenas africanos e magrebinos — não é por 
acaso que hoje nas prisões italianas há quase 10 mil africanos.
Desespero
É
 claro que a sociedade italiana, afetada por uma crise desastrosa e com 
uma taxa de desemprego que chegou ao limite máximo (13,5%), não consegue
 mais integrar e absorver em sua economia os milhares de trabalhadores 
africanos e magrebinos que chegam à Itália sonhando com um trabalho bem 
remunerado.
Diante desse drama, um governo 
“inteligente” teria pedido à União Europeia para que o ônus da imigração
 africana e magrebina fosse partilhado. Infelizmente, os governos 
formados por Berlusconi nunca foram inteligentes, enquanto o atual, 
liderado por Enrico Letta, é apenas obsequioso com a União Europeia.
De
 fato, 15 dias antes da tragédia de Lampedusa, o mar devolveu nas lindas
 praias da Sicília, mais 15 corpos de imigrantes africanos, cujo barco 
quebrou já no fim da travessia. Um acontecimento que mereceu apenas uma 
nota na grande imprensa, enquanto as TVs, por sua vez, também 
reproduziram somente uma parte da intervenção de Cecile Kyenge, a 
ministra da Integração (uma africana originária do Congo que se 
naturalizou italiana).
Depois, no dia 5 de 
outubro apareceram mais 127 corpos. Outros 236 permanecem no fundo do 
mar. Ou seja, dos 518 que embarcaram na Líbia, desafiando o tempo, o mar
 e as balas dos policiais líbios, sobraram apenas 155 sobreviventes para
 completar o já superlotado “centro de acolhimento” de Lampedusa.
Por
 isso, Nicki Vendola, líder do pequeno partido de oposição SEL 
(Socialismo, Ecologia e Liberdade), na sua intervenção no Parlamento, 
apontou o dedo contra esse governo de “amplos entendimentos”.
Disse
 ele: “Estamos enfrentando uma clara manipulação da realidade com as TVs
 que mostram as lágrimas de um ministro do Interior que, na época, votou
 a lei fascista Bossi-Fini. Lei que representa a vergonha de uma direita
 que governou este país durante muitos anos. Lei que não foi contestada 
como se devia e que hoje representa ainda os pressupostos culturais da 
lógica das leis fascistas que a direita votou. Portanto, senhor 
ministro, chega de peças comoventes e procure abrir o debate sobre as 
leis da Itália pré-liberal que, hoje, no lugar de condenar os modernos 
escravocratas, atacam as vítimas desses”.
Infelizmente,
 somente os parlamentares do Movimento 5 Estrelas aplaudiram a 
intervenção de Nicki Vendola. Os outros, direitistas, centristas e 
progressistas do PD, que integram o governo de “amplos entendimentos”, 
simplesmente “tomaram ato da intervenção do prezado colega”. E assim 
tudo continua como era antes, tal como escreveu Giuseppe Tomasi di 
Lampedusa no célebre romance O Leopardo.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.
Foto: Reprodução        
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