''Dúvidas sobre a morte de Jango só aumentam''
Em entrevista, Lucília de Almeida Neves Delgado
afirma que a memória histórica de Jango “é injusta”, e baseada no
“esquecimento e na desqualificação”. Esclarecer esse período, enfatiza,
“é um dever histórico”
05/08/2013
A
falta de “explicações sólidas” sobre a morte do ex-presidente João
Goulart, fez dele o “político mais injustiçado da história do Brasil”,
assinala Lucília de Almeida Neves Delgado em entrevista concedida à IHU On-Line, após comentar o documentário Dossiê Jango,
dirigido por Paulo Henrique Fontenelle. Ao analisar o filme à luz da
História, Lucília, que há anos dedica-se à pesquisa sobre os fatos
políticos do período militar, enfatiza que ele “reforça exatamente a
construção de mais evidências sobre o possível assassinato de João
Goulart”. Segundo ela, “de todas as pessoas que se envolveram na procura
de provas e evidências sobre a morte de Jango, 18 morreram. Entre elas
os políticos uruguaios Zelmar Michelini e Gutierrez Ruiz, que eram
amigos do Jango e estavam investigando a morte dele. Também o empresário
Enrique Foch Diaz, que mais conseguiu reunir muitas informações sobre a
morte de Jango e escreveu um livro intitulado Jango: um crime perfeito,
faleceu pouco tempo depois de publicado o livro”. E dispara: “Ficamos
pensando: o que aconteceu para que todas essas pessoas, de uma forma ou
de outra, fossem falecendo? A maioria por problemas cardíacos e alguns
em decorrência de acidentes de carro. São coincidências muito estranhas,
e as indagações sobre a morte de Jango só aumentam”.
De
acordo com Lucília, Jango poderia ter retornado ao Brasil em 1974, dois
anos antes de sua morte, período em que seu processo de cassação havia
expirado. “Não havia mais razão legal para que ele continuasse no exílio
e excluído da vida pública nacional. Uma interpretação que tem ganhado
força é a de que com a distensão do regime, seguida de possíveis pleitos
eleitorais, João Goulart e outros líderes políticos do pré 1964
poderiam se candidatar a algum cargo público. Como o governo militar não
assimilava seu retorno à ativa, a opção teria sido a de eliminá-los”,
esclarece. E acrescenta: “havia um temor do governo de que lideranças
excluídas em 1964 e que estavam no exílio voltassem para o Brasil com
uma força muito grande. Esse temor era maior especialmente no caso dos
ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, ambos mortos em
1976”.
Para ela, a memória histórica de Jango “é
injusta”, e baseada no “esquecimento e na desqualificação”. Esclarecer
esse período, enfatiza, “é um dever histórico. (...) Não podemos
construir uma história com sombras nebulosas, ainda mais sobre o
episódio da morte de um ex-presidente, que após sua deposição amargou um
exílio de mais de 12 anos”.
Lucília de Almeida
Neves Delgado é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em
História da Universidade de Brasília – UNB. Possui graduação em História
pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestrado em Ciência Política
pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Ciências
Humanas/Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É autora de,
entre outros, Comando Geral dos trabalhadores no Brasil (1961-1964)
(Petrópolis: Vozes, 1986); e PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964)
(São Paulo: Marco Zero, 1989).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que leitura o “Dossiê Jango” apresenta sobre a história do ex-presidente Jango?
| Lucília de Almeida Neves Delgado - Foto: Reprodução |
Lucília de Almeida Neves Delgado – O
“Dossiê Jango” não apresenta uma nova leitura sobre a história do
ex-presidente João Goulart porque as questões levantadas pelo
documentário falam de um assunto que já é abordado há muitos anos, e que
se tornou mais forte quando começou a se falar da Operação Condor. O
filme reforça exatamente a construção de mais evidências sobre o
possível assassinato de João Goulart. Os depoimentos são muito
contundentes, com exceção do depoimento de Muniz Bandeira, historiador,
que afirma que Jango sofreu um problema cardíaco natural. As demais
pessoas que se manifestam no filme, de uma forma ou de outra, dão
declarações que reforçam a possibilidade de Jango ter sido assassinado.
Duas coincidências importantes, para analisar o contexto de atuação da
Operação Condor, tendo Jango como foco, foram as mortes de dois
políticos da Frente Ampla, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, e
Carlos Lacerda, além de João Goulart. Mortes ocorridas num período
inferior há um ano, de 1976 a 1977. De todas as pessoas que se
envolveram na procura de provas e evidências sobre a morte de Jango, 18
morreram. Entre elas os políticos uruguaios Zelmar Michelini e Gutierrez
Ruiz, que eram amigos do Jango e estavam investigando a morte dele.
Também o empresário Enrique Foch Diaz, que mais conseguiu reunir muitas
informações sobre a morte de Jango e escreveu um livro intitulado Jango:
um crime perfeito, faleceu pouco tempo depois de publicado o livro.
Diaz foi o último dos 18 a morrer. O filme também apresenta o depoimento
de Mário Neira, que participou da Operação Escorpião que, segundo suas
palavras, tinha como objetivo assassinar Jango. Embora essa testemunha
não seja muito fidedigna, pois é um criminoso recrutado pela repressão
política do Uruguai para fazer parte de suas equipes de investigação, a
dúvida persiste. E ficamos pensando: o que aconteceu para que todas
essas pessoas, de uma forma ou de outra, fossem falecendo? A maioria por
problemas cardíacos e alguns em decorrência de acidentes de carro. São
coincidências muito estranhas, e as indagações sobre a morte de Jango só
aumentam.
Exumação do corpo
Há
outros fatos que não têm explicações sólidas. O mais relevante diz
respeito a não realização de biópsia no corpo do ex-presidente. Muitos
perguntam por que a família não pediu a exumação do corpo, na verdade, a
esposa dele, Maria Teresa Goulart, fez o pedido. Entretanto, um mês
depois voltou atrás. A sensação que temos é de que ela sofreu uma
pressão muito grande para retirar o pedido. Caso o presidente Goulart
tenha morrido por causas naturais não havia razão alguma para evitar a
necropsia de seu corpo. Ao contrário, seria uma ação favorável ao
governo militar. Todas as dúvidas estariam resolvidas.
João
Goulart foi o único presidente do Brasil que morreu no exílio. Em 1976,
muito longamente, começava-se a falar em liberalização do regime. O
filme mostra isso. E havia um temor do governo de que lideranças
excluídas em 1964 e que estavam no exílio voltassem para o Brasil com
uma força muito grande. Esse temor era maior especialmente no caso dos
ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, ambos mortos em
1976.
O filme registra também, e isso é muito
interessante, que em 1974, o prazo de cassação, por dez anos, dos
direitos políticos de Jango, já estava superado. Portanto, não havia
mais razão legal para que ele continuasse no exílio e excluído da vida
pública nacional. Uma interpretação que tem ganhado força é a de que com
a distensão do regime, seguida de possíveis pleitos eleitorais, João
Goulart e outros líderes políticos do pré 1964 poderiam se candidatar a
algum cargo público. Como o governo militar não assimilava seu retorno à
ativa, a opção teria sido a de eliminá-los.
Jango poderia ter retornado ao Brasil dois anos antes da sua morte?
Na
verdade, mesmo tendo passado os dez anos de sua cassação, se retornasse
ao Brasil, com certeza, João Goulart seria preso. As evidências são de
que os militares desconsideravam o próprio tempo de punição que
estabeleceram anteriormente. Jango, inúmeras vezes, tentou negociar seu
retorno ao Brasil, mas não teve êxito. Quando de sua morte não houve
sequer autorização para que seu velório fosse realizado em caixão
aberto. Ao contrário, o caixão estava lacrado.
Essa
foi a condição estabelecida pelo governo federal para que ele pudesse
ser enterrado em sua terra, São Borja (RS) e não na Argentina, onde
faleceu. Tal fato reforça a ideia de que o regime militar usou de todos
os recursos possíveis para fazer prevalecer uma memória de esquecimento
sobre o presidente Jango. É lógico que há uma questão ideológica e
estratégica nessa orientação. Creio que, no contexto de construção do
esquecimento, tudo foi feito para impedir a visibilidade da imagem do
presidente morto, o que poderia causar uma comoção muito grande. A visão
de um corpo inerte e sem vida é forte, mas a de um rosto atrás de um
pequeno vidro, por mais reverência que se tenha, não causa o mesmo
impacto.
Redemocratização
A
redemocratização do Brasil, embora pressionada pela sociedade civil e
por expressivo movimento social, só aconteceu mediante uma negociação
que garantiu uma transição pacífica. Nesse contexto os acontecimentos
referentes às mortes de João Goulart e Juscelino Kubitschek foram
relegados ao esquecimento. No caso da morte de Juscelino, pouco se pode
fazer, pois ele faleceu num acidente de carro. Teria de se investigar se
houve algum problema no carro, mas é quase impossível provar algo. No
caso do Jango havia a possibilidade de fazer uma investigação porque era
possível exumar o corpo para esclarecer a causa de sua morte. Mas, de
uma forma ou de outra, é preciso que se busque esclarecimentos mais
detalhados sobre as morte dos ex-presidentes Jango e Juscelino. Essa é
uma condição essencial de registro da verdade histórica. E o direito à
História é uma das condições de exercício da cidadania plena. Não
podemos construir uma história com sombras nebulosas, ainda mais sobre o
episódio da morte de um ex-presidente, que após sua deposição amargou
um exílio de mais de 12 anos.
Se Jango de fato
morreu de um problema cardíaco, por que não se fez a exumação e a
biopsia? Por que essa resistência tão grande de anos e anos para se
analisar seus restos mortais? A ausência de autópsia é mais um dado que
sugere que sua morte não foi natural, porque se tivesse sido natural,
para o respaldo do próprio governo militar à época, deveria ter sido
feita a exumação de seu corpo.
Injustiça
Jango
é o político mais injustiçado da história do Brasil. Veja o caso de
Juscelino: não tinham como apagar a obra dele porque a construção de uma
capital da República, como Brasília, é algo extremamente palpável.
Eterno. Além disso, quando foi prefeito de Belo Horizonte e governador
de Minas Gerais, investiu muito na chamada construção da modernidade,
que tem uma representação concreta, por exemplo, na Lagoa da Pampulha.
No caso de Getúlio Vargas, sua morte o fez herói e mito. Além disso, sua
obra governamental foi ampla, diversificada e sólida. Abrangeu
realizações políticas, econômicas, culturais e sociais, embasadas em
sólida concepção nacionalista, trabalhista e desenvolvimentista. No
campo social, a maior herança de Getúlio Vargas é a Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT. Mesmo que ela tenha sido escrita em um tempo de
ditadura, a importância de sua dimensão social e econômica é, por si só,
suficiente para cravar a memória do ex-presidente na História Nacional
Brasileira.
O João Goulart, pelo contrário, pagou
um preço muito alto por suas convicções trabalhistas, reformistas e
nacionalistas. Ele governou o Brasil no auge da Guerra Fria. Logo depois
de Cuba ter se tornado em um país socialista. Jango tinha uma postura
trabalhista, quase socialdemocrata, mas não teve tempo, nem condições
para concluir obras que ficassem marcadas na história do Brasil. Mesmo
assim três grandes marcos destacaram-se no seu mandato presidencial: a
criação da Eletrobrás, que contribuiu para tirar o Brasil das mãos da
exploração estrangeira da energia elétrica; segundo, o Estatuto do
Trabalhador Rural que levou a legislação social às áreas rurais; e
terceiro, a criação da Universidade de Brasília, uma universidade
visionária e progressista que, no entanto, pagou um alto preço por ter
sido fundada no governo Jango. Durante o regime militar a UnB sofreu
contínuas pressões como: prisão de estudantes, invasão do campus
universitário e demissão de professores.
Crise institucional
Em
um contexto de muita polarização política, Jango enfrentou uma crise
institucional permanente. Tomou posse sob pressão, pois os ministros
militares do presidente Jânio Quadros, de quem era vice-presidente,
usaram de todos os recursos possíveis para impedir sua posse como
presidente, quando da renúncia do presidente, no ano de 1961. Goulart,
governou então, durante cerca de dois anos, como presidente, em um
sistema de governo parlamentarista, que lhe restringia poderes. Em
janeiro de 1963, com o retorno do presidencialismo, passou a governar
com todos os poderes constitucionais de um presidente da República.
Mas
seu mandato continuou sobre forte pressão. Além de pressionado pelos
movimentos sociais, que queriam a efetivação de reformas sociais e
econômicas, as chamadas reformas de base, sofreu cotidiana oposição de
empresários nacionais e internacionais, de segmentos conservadores da
Igreja Católica, que temiam a instauração o comunismo no Brasil, da
grande imprensa e dos grandes proprietários rurais. Ou seja, ele se viu
pressionado por todo o lado. Nesse quadro de hostilidade e pressões,
não conseguiu construir uma marca governamental que fosse
suficientemente sólida para não ser apagada. A partir daí se construiu
uma visão absolutamente injusta sobre João Goulart. Na verdade, ele foi
um homem público perspicaz, muito solidário e comprometido com as causas
dos mais pobres, como hoje prega o Papa Francisco.
Infelizmente
a memória consolidada sobre Goulart é muito injusta, pois baseada em
dois suportes: esquecimento e desqualificação. Apenas para
contextualizar, viajei de férias durante as semanas de lançamento do
Dossiê. Quando voltei tive uma dificuldade enorme para assistir o filme,
pois além de estar sendo ofertado somente em dois cinemas de Brasília,
os horários de sua apresentação eram poucos. Consegui vê-lo em uma
sessão das 13:00 horas. Na sala de projeção não tinha mais do que 20
pessoas.
Como a senhora vê o trabalho da Comissão da Verdade e a possível exumação do corpo de Jango?
Há
uma intenção, já declarada, da Comissão da Verdade de proceder à
exumação dos restos mortais de Jango. Penso, entretanto, que graves
dificuldades terão de ser enfrentadas. Uma delas refere-se ao tempo. Já
se passaram mais de 36 anos de sua morte, e alguns técnicos dizem que
talvez seja impossível se chegar a alguma conclusão mais definitiva
sobre a causa “mortis” pelo estudo ósseo. Se assim for, a distância
temporal terá contribuído para que a névoa que cobre a verdade sobre a
morte de João Goulart não seja dissipada.
Quando à
pesquisa, estudo, produção acadêmica e notícias da imprensa sobre o
João Goulart, chego à conclusão de que foram construídas duas formas de
abordagem em torno dele. Uma delas aprofunda a via do esquecimento, ou
seja, tenta-se jogar Jango no limbo, anula-se a presença dele na
história do país. A outra via é a da desqualificação, baseada em um
discurso que ressalta suas qualidades negativas em detrimento de suas
qualidades positivas. Jango pagou o preço de ser um reformista no tempo
da guerra fria, quando o temor do comunismo era avassalador. Apesar de
não ser comunista, não era anticomunista, pois visitou a China Popular e
a União Soviética. Além disso, tinha o costume de conversar com a
população mais pobre e com os sindicalistas. Baseado nesses fatos a
oposição construiu um discurso ideológico, segundo ao qual, sob seu
governo o Brasil ou se transformaria em um país comunista ou em uma
república sindicalista. Para ela, portanto, era necessário,
desestabilizá-lo, depô-lo e excluí-lo da história brasileira.
A
Comissão da Verdade está buscando esclarecer essa parte da história,
mas imagino que esteja sofrendo uma grande pressão. Para mim fica uma
dúvida prática. Quem guarda o túmulo de João Goulart e zela pela
preservação de seus restos mortais, até a definição sobre a exumação?
Como
historiadora, tenho duas esperanças: a primeira é de que os
historiadores por meio de pesquisas e publicações façam jus à memória de
Jango. Precisamos dar conta dessa tarefa inconclusa e desafiadora. O
trabalho do historiador Jorge Ferreira, que recentemente publicou uma
biografia de Jango, nesse sentido, é exemplar. A segunda esperança é de
que, mais cedo ou mais tarde, as circunstâncias da morte do presidente
deposto em 1964 sejam esclarecidas. Por isso, a oportunidade de atuação
da Comissão da Verdade é ímpar. Considero que se ela conseguir
esclarecer, ao menos alguns casos simbólicos, terá cumprido um papel
histórico muito relevante. Espero que a morte de Goulart seja
esclarecida, como ocorreu com a de Rubens Paiva. Esse é um dever
histórico.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/15560
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