Filósofo diz que Igreja deve surpreender. "Especialmente em uma época em que o ativista substitui o militante"
A melhor do papa até agora foi “a Igreja não vai ser babá
de ninguém”. É uma frase que indica uma aposta no mundo moderno, onde o
liberalismo se tornou senso comum. Ainda que possa parecer uma entrada
tardia na modernidade, é um passo significativo. Afinal, nunca se sabe
ao certo quando é que é bom aderir ao novo, se quando ele é muito novo
ou se quando ele parece tão velho que até já derrotou inimigos que
diziam vir do futuro.
Papa percorre as ruas do Rio de Janeiro com papamóvel aberto nesta segunda-feira (22/07)
O liberalismo é uma doutrina nascida em torno
do século XVII (John Locke à frente) que, entre outras coisas, faz a
defesa da liberdade individual. Com ele surge o indivíduo moderno,
umbilicalmente ligado à noção de autonomia. É nesse sentido, de dizer
para todos que a Igreja Católica não vai (mais) infantilizar ninguém,
que o papa Francisco está abdicando de qualquer função que lembre a
puericultura ou a ordenação de rebanho de ovelhinhas. Mas, é claro, ele
não pode ser um liberal. A Igreja tem pretensões de atemporalidade,
tanto quanto seu dono, Deus, e não deve se filiar a qualquer ideário que
se mostre muito datado. Então, em que sentido exato o Papa está
retirando a canga do pescoço do católico?
O Papa Francisco é argentino e jesuíta. Ou seja, ele vem de um povo orgulhoso e de um grupo que nasceu moderno.
O orgulho argentino é bom. A humildade que o cristianismo
pede às vezes se torna uma ideologia barata. Na boca de um professor
orgulhoso, o cristianismo pode recobrar seu sentido mais cristão. Jesus
nunca foi de abaixar a cabeça. Caso fosse, não seria crucificado,
obviamente. A humildade de Jesus nunca foi piegas, sempre esteve ligada à
ideia de poder aprender, de reescrever lições quando estas são
expressões altas, aquelas que podemos chamar de “divinas”.
Papa recebe bandeira do Brasil dentro do avião em qual veio de Roma (22/07)
O papa Francisco parece claramente esse tipo de
pessoa, com um olhar vivaz e sem aquela postura de corpo resguardado,
encurvado – verdadeira ou falsamente – como as de João Paulo 2º e Bento
16. Nunca gostei do olhar vindo de baixo, próprio daqueles dois. Quem
pintaria Jesus olhando por debaixo, sorrateiro, quase que escondendo
expressões? Ninguém fez isso. É o demônio que olha assim.
O vínculo com o jesuitismo também ajuda. Diz o filósofo
alemão Peter Sloterdijk que os primeiros sujeitos modernos, em termos
filosóficos, foram os jesuítas. Os jesuítas, segundo ele, foram os que
fizeram coisas que se mostram como características do sujeito: pensar
pela própria razão. Mas pensar assim para passar da teoria à prática.
Ora, pensar pela própria razão não é sinônimo de pensar contra tudo e
todos, não é rebeldia ininterrupta. Trata-se, antes, de poder ser o
conselheiro de si mesmo e, portanto, desinibir-se o suficiente para
conseguir realizar empreendimentos próprios.
Um dos empreendimentos próprios dos jesuítas: a Companhia
de Jesus. O nome diz tudo: Companhia. Havia a Companhia das Índias, era
uma empresa. Os jesuítas criaram exatamente isso, uma empresa. Uma
empresa militar, de ensino e nos moldes organizacionais do capitalismo
nascente, com o objetivo de enfrentar aqueles que pareciam ser os
verdadeiros modernos, os reformadores.
Os jesuítas fizeram algo mais moderno que os
reformadores: eles se puseram deliberada e conscientemente como
instrumentos da Contra Reforma, levada a cabo por uma empresa. Eles
pegaram dos adversários, os protestantes, a ideia do indivíduo autônomo,
mas resolveram manter aquilo que os protestantes tolamente perderam: a
infalibilidade do papa. Assim, toda vez que o indivíduo pudesse parecer
como fraco, a empresa tinha como retaguarda uma força exterior a mais
que ela própria. Quando nos lembramos disso tudo, vemos o quanto a
Contra Reforma foi talvez mais moderna que a Reforma, mais exigente em
relação a criar homens modernos, ao menos no seu interior.
Ora, se é assim que Francisco se vê, então, levando em
consideração os nossos tempos, pode muito bem ser que ele esteja
projetando para todos o que antes, na origem da Companhia de Jesus, era
algo próprio dos seus membros. Francisco diz que o católico não será
mais conduzido como criança. Ele próprio já andou dando declarações que,
depois, tiveram de ser refeitas pela voz oficial e impessoal da Cúria.
Ele é um homem da Igreja, mas altamente centrado na capacidade de ser
uma pessoa com identidade e vontade próprias, sem precisar de qualquer
Border Collie para conduzi-lo. Sendo assim e sendo orgulhoso, não é de
todo errado cogitar que esteja transmitindo ao católico esse ideal de
postura.
Caso as coisas continuem nessa toada, e nenhum raio
abrupto quebre o ritmo das coisas, a Igreja Católica ainda vai dar o que
falar, surpreendentemente, e em favor de seu reflorescimento,
especialmente em uma época em que o ativista substitui o militante.
Aguardem!
*Paulo Ghiraldelli Jr, de 55 anos, é filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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