Com apostas polêmicas e um histórico de prejuízos bilionários, a gestão de Luciano Coutinho à frente do BNDES vira alvo de críticas e pode resultar em CPI no Congresso
Por Luís Artur NOGUEIRA e Paulo JUSTUS
Episódio 1: São Paulo, 3 de setembro de 2009. Na
sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o
governo federal anuncia a modelagem financeira do polêmico projeto do
trem-bala, que ligará Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Na época,
foi anunciado que o consórcio vencedor teria à disposição R$ 20,7
bilhões em empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) a juros reduzidos, o equivalente a 60% do custo da obra. A
oferta de financiamento, no modelo “de pai para filho”, não foi
suficiente para atrair investidores. As três tentativas de leilão, em
2010 e 2011, fracassaram.
Luciano Coutinho, presidente do BNDES: "A promoção da competitividade de grandes
empresas de expressão internacional é uma agenda que foi concluída"
Episódio 2: Rio de Janeiro, 28 de junho de 2011. O
BNDES divulga um comunicado no qual disponibilizava R$ 4,5 bilhões dos
R$ 5,6 bilhões necessários para viabilizar uma fusão entre o Pão de
Açúcar e as operações do Carrefour no Brasil. Como se sabe, o Casino,
sócio francês do empresário Abilio Diniz no Grupo Pão de Açúcar, nunca
concordou com a ideia. Catorze dias depois de muita polêmica,
o banco desistiu da operação natimorta.
Nas duas ocasiões descritas, o BNDES recebeu inúmeras críticas.
Houve questionamentos sobre o interesse social das propostas, o
benefício econômico que elas proporcionariam ao País e o custo para os
cofres públicos. Talvez por pura sorte do BNDES, ou pelo bom senso dos
investidores envolvidos, as duas iniciativas naufragaram – ainda que
temporariamente, no caso do trem-bala. Há, no entanto, uma série de
episódios controversos que tiveram um desfecho diferente. O mais recente
é a derrocada das empresas X, de Eike Batista, nas quais o banco tinha
ao menos R$ 10,4 bilhões comprometidos.
Todos eles passam pela batuta do presidente Luciano Coutinho, o
maestro de decisões polêmicas, que vão da escolha de “empresas campeãs”,
passam por companhias que faliram e culminam agora com o Grupo EBX. O
professor Coutinho, como é chamado por seus colegas da Unicamp, sempre
se notabilizou por estudos ligados a políticas industriais. Além disso, o
jeito discreto, o estilo disciplinado e a sua fala pausada, em tese, se
encaixam perfeitamente no perfil esperado de um presidente do maior
banco de fomento da América Latina, que encerrou 2012 com R$ 715,5
bilhões em ativos. É uma instituição que concedeu R$ 505 bilhões em
empréstimos, segundo o balanço mais recente divulgado pelo Banco
Central.
Eike Batista: o BNDES apostou mais de R$ 10 bilhões nas empresas
do Grupo EBX. Segundo a Consultoria Legislativa da Câmara,
as garantias exigidas eram frágeis, como as ações das próprias
empresas, que desabaram na Bovespa
Quem já teve contato com o BNDES enaltece o rigor técnico e as
exigências impostas na hora de conceder um empréstimo. Tal metodologia
ajuda a explicar o baixo índice de inadimplência de suas operações,
inferior a 1%. Em entrevista à DINHEIRO, no mês passado, o presidente da
Saint-Gobain no Brasil, Benoit d’Iribarne, afirmou que “a instituição é
excelente para as empresas”, mas reclamou do excesso de burocracia.
“Estamos aqui há 75 anos e ainda nos pedem uma montanha de papéis.” Por
isso, com tantos procedimentos rigorosos até mesmo com clientes de
longa data, para muita gente anda difícil compreender o motivo que levou
Coutinho e sua equipe a abraçar o Grupo EBX, de Eike Batista, que
sempre atraiu investidores através de promessas de resultados futuros – a maioria, diga-se, nunca foi cumprida.
Como se sabe, no início do mês, Eike anunciou a possível suspensão,
em 2014, da produção do único poço da petrolífera OGX que está em
operação, derrubando drasticamente as ações de várias empresas do grupo.
Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 15 de julho,
mostrou ainda que o BNDES adiou a cobrança de contratos com o
empresário. Outro acordo prorrogou a exigência de desempenho técnico da
Usina Termelétrica Porto do Pecém, no Ceará, que está sendo construída
por meio de uma parceria entre a EDP e a MPX Energia, do Grupo EBX. O
projeto de R$ 3 bilhões tem quase 50% de financiamento do BNDES.
As dificuldades pelas quais o grupo fizeram Eike solicitar, na
semana passada, o adiamento da cobrança de um empréstimo-ponte, de R$
400 milhões, feito em 2011 para a companhia OSX, de construção naval,
que venceria em agosto. Um relatório assinado pelo economista César
Mattos, da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, mostra que
os empréstimos ao empresário somam R$ 11,5 bilhões e possuem garantias
consideradas frágeis, como as ações das próprias empresas. O documento,
que norteia pedidos da formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) sobre a gestão de Coutinho no BNDES, questiona se haveria
necessidade real de financiar as companhias de um indivíduo que já foi o
homem mais rico do Brasil e o sétimo mais rico do mundo até o ano
passado.
Em nota, o BNDES informa que o valor total das operações
contratadas com o Grupo EBX é de R$ 10,4 bilhões, sendo que nem tudo foi
liberado. Quanto à queda no valor das ações, a instituição refuta a
ideia de prejuízo, pois “o resultado final de cada investimento só pode
ser aferido com a efetiva venda dos ativos, o que não ocorreu”. As
empresas X não são as únicas eleitas pelo BNDES que fracassaram. Em
fevereiro deste ano, a BNDES Participações (BNDESPar), subsidária que
faz participação direta em empresas consideradas eficientes, confirmou a
baixa contábil de R$ 657 milhões relativos à sua participação na LBR,
dona das marcas Parmalat e Bom Gosto, em recuperação judicial.
O BNDES adiou a cobrança de contratos da EBX e prorrogou a exigência de desempenho
da Usina Termelétrica Porto do Pecém
O banco contribuiu com R$ 700 milhões para a criação da gigante do
setor de leite, em 2011, passando a deter 30% de seu capital. A BNDESPar
também investiu em outras empresas que passaram por sérias dificuldades
financeiras, como a Indústria de Alimentos Nilza, o curtume Braspelco e
o frigorífico Independência. A prática de nomear campeãs nacionais,
aliás, coincide com a entrada de Coutinho na presidência do banco em
2007. Essa política, com benefícios duvidosos para a sociedade, pode
acontecer basicamente de duas formas: via financiamentos bilionários a
juros subsidiados, ou por participação direta via BNDESPar. Há muitos
casos em que as duas coisas acontecem ao mesmo tempo, como na empresa de
celulose Fibria.
Pouco transparente na hora de explicar as suas escolhas, a BNDESPar
tem uma enorme concentração em mineração, energia, óleo e gás,
alimentos e papel e celulose, setores que correspondem a cerca de 90%
das ações em poder da subsidiária. A concentração, por si só, não seria
um problema se a aposta nesses setores se comprovasse bem-sucedida ao
longo dos anos. Mas não é o que está acontecendo, como mostra um estudo
dos pesquisadores Sergio Lazzarini, do Insper; Aldo Musacchio, da
Harvard Business School; e Claudia Bruschi, da Fundação Getulio Vargas,
de São Paulo. Foram analisados 47 papéis que fizeram parte da carteira
da BNDESPar no período de 2004 a 2012.
O estudo, portanto, não contempla o tombo do mercado de ações neste
ano – desde janeiro, o Índice Bovespa acumula queda de cerca de 20%. Do
total de papéis analisados, 30 tiveram um rendimento médio mensal
inferior ao do Índice Bovespa, e 22 apresentaram queda no valor de
mercado (leia quadro "Aposta errada?"). “Uma vez que o BNDES utiliza
recursos públicos, não está claro quais são os benefícios de sua
política de investimentos em ações”, concluem os pesquisadores. No ano
passado, a BNDESPar teve queda no lucro de 93%, de R$ 4,3 bilhões para
R$ 300 milhões. A estratégia de patrocinar “campeãs nacionais”, no
entanto, parece estar com os dias contados.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no mês de abril,
Coutinho disse que “a promoção da competitividade de grandes empresas de
expressão internacional é uma agenda que foi concluída”. E emendou: “É
uma política que tinha méritos e chegou até onde poderia ir”, afirmou
Coutinho, praticamente assinando um recibo de que é preciso corrigir a
rota que havia tomado até aqui. Vale lembrar que o caminho escolhido
ainda dificulta o acesso de pequenas empresas ao dinheiro barato do
banco estatal. Embora tenha aumentado o capital para esse segmento, 63%
dos desembolsos estão nas mãos de poucos grandes grupos.
O BNDES apostou em empresas que fracassaram, como a LBR, dona da Parmalat e da Bom Gosto
“Os pequenos empreendedores ainda são minoria na carteira do
banco”, diz Bruno Caetano, diretor-superintentendente do Sebrae- SP. “A
burocracia é tão grande quanto a de um banco comercial.” Outra crítica
que é feita ao BNDES envolve empréstimos subsidiados aos chamados
“países amigos”, como Argentina, Venezuela, Cuba e nações africanas.
“Qual é a razão econômica e social para o Brasil?”, indaga Lazzarini, do
Insper. “Não faz nenhum sentido.” Em 2012, os desembolsos do BNDES para
financiamentos em outros países somaram US$ 2,2 bilhões. Angola foi o
principal destino dos recursos, com US$ 654 milhões para obras de
infraestrutura, tocadas por grandes construtoras brasileiras.
Em segundo lugar aparecem os Estados Unidos, com US$ 250 milhões em
desembolsos, pouco à frente da Argentina (US$ 245 milhões) e da
República Dominicana (US$ 237 milhões). Até mesmo Cuba, dos irmãos
Castro, recebeu US$ 220 milhões, além de possuir uma linha de
financiamento para a compra de alimentos de US$ 400 milhões e um
financiamento de 71% da obra do Porto de Mariel, situada a 45
quilômetros de Havana, estimada em US$ 957 milhões. Com receio de não
receber o pagamento do empréstimo, o governo avalia abater a dívida por
meio de serviços de médicos cubanos no Brasil. Em nota, o BNDES afirma
que “não financia países, mas sim exportações de bens e serviços de
engenharia e construção produzidos no Brasil, gerando emprego e renda no
País.”
César Colnago, deputado (PSDB-ES): "O retorno que o banco está recebendo
dessas operações não é do tamanho do esforço que o BNDES faz"
O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO As escolhas, porém, têm
um custo alto, tanto para o contribuinte quanto para as contas
públicas. Essas operações bilionárias significam, na prática, prejuízo
aos cofres da União. Tal movimento tem se intensificado nos últimos anos
diante da ânsia do governo em turbinar a capacidade dos bancos públicos
de estimular a economia. Graças aos sucessivos aumentos de capital
promovidos nessas instituições com recursos do Tesouro Nacional, o
estoque da dívida delas passou de R$ 14 bilhões, ou 0,5% do PIB em 2007,
para R$ 406 bilhões em 2012, ou 9,2% do PIB. Cerca de 90% desse valor
refere-se ao BNDES.
“Estamos caminhando rapidamente para que a dívida dos bancos
públicos represente mais de 10% do PIB”, diz o economista Mansueto
Almeida, especialista em contas públicas. Embora, tecnicamente, os
empréstimos para os bancos não pesem na dívida líquida da União, essas
operações aumentam a sua dívida bruta. Isso porque o BNDES empresta
dinheiro a um juro inferior àquele pago pelo Tesouro para angariar
recursos no mercado. A diferença entre as taxas de captação do Tesouro
(a base é a Selic, em 8,5%) e as de empréstimo do BNDES (a base é a
TJLP, em 5%) é bancada com dinheiro do contribuinte. Considerando que o
volume de dívida do BNDES junto ao Tesouro é hoje de R$ 375 bilhões, o
custo anual dessa operação é de R$ 18 bilhões, estima Almeida (leia
quadro "A Bolsa Família das grandes empresas").
Mansueto Almeida, economista: "Estamos caminhando para que a dívida
dos bancos públicos represente mais de 10% do PIB"
Os gastos questionáveis não param por aí. Em linhas especiais os
juros ficam abaixo do mínimo de 5% da TJLP exigido pelo banco. Esse é o
caso, por exemplo, do Programa de Sustentação do Investimento (PSI),
que, no primeiro semestre de 2013, concedeu empréstimos com taxas de 3%
ao ano. Incentivar a compra de bens de capital é uma decisão meritória,
mas nem por isso deixa de gerar despesas aos cofres públicos. Nesse
caso, o Tesouro complementa o custo para manter os juros baixos em até
R$ 4 bilhões por ano, calcula Almeida. O BNDES, por sua vez, se defende
com o argumento de que não “necessariamente” as operações entre o
Tesouro e o banco dão prejuízo. “A diferença pode ser compensada e até
revertida com os pagamentos tributários do BNDES, com o aumento de
investimentos e do PIB, viabilizados por financiamentos do banco, que
geram mais arrecadação – chamado efeito multiplicador”, afirma o
comunicado enviado à DINHEIRO.
Boa parte da expansão do endividamento do banco estatal de fomento
também se explica pela chamada contabilidade criativa, expediente usado
pelo governo federal em 2012 para cumprir a meta de superávit primário
(diferença entre receitas e despesas, exceto gastos para pagamento dos
juros). Por meio desse malabarismo de números, o Tesouro capta dinheiro e
o repassa como empréstimo aos bancos públicos, incluindo o BNDES (leia
quadro "Da dívida ao dividendo"). Os bancos, com mais dinheiro em caixa,
conseguem adiantar bons dividendos à União, que por sua vez usa esse
dinheiro para cumprir a meta de superávit primário. “Isso fez do BNDES
uma verdadeira fábrica de superávit primário”, diz o senador Álvaro Dias
(PSDB-PR), que desde 2005 vem tentando criar uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) para investigar as atividades do banco.
Calote à vista?: o BNDES financia obras em "países amigos". Na foto, o Porto de Mariel, em Cuba,
que tem financiamento de 71% do custo total da obra, estimado em US$ 957 milhões
Outra iniciativa de uma comissão parlamentar mista de inquérito foi
colocada pelo deputado César Colnago (PSDB-ES), que havia pedido
informações sobre a atuação do BNDES junto ao Grupo EBX, há três meses,
depois que Eike Batista trabalhou para levar o estaleiro Jurong do
Espírito Santo para o Rio de Janeiro. “O retorno que o banco está
recebendo dessas operações não é do tamanho do esforço que o BNDES faz”,
diz Colnago. No âmbito da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do
Senado, o episódio acendeu a luz amarela sobre as autorizações de
crédito do Tesouro a empresas estatais. “O Congresso tem de examinar com
lupa”, diz o senador Francisco Dornelles, em referência aos empréstimos
do Tesouro ao BNDES.
Por requerimento da senadora Ana Amélia (PP-RS), a CAE convocou
Luciano Coutinho para prestar esclarecimentos. “O banco tem se lançado
em operações de alto risco”, diz Ana. Além dos aportes do
Tesouro, há questionamentos sobre o uso do dinheiro dos cofres do Fundo
de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem como prioridade financiar o
pagamento do seguro-desemprego. Atualmente, o FAT representa a segunda
maior fonte de recursos do banco. “O BNDES funciona com o
dinheiro do trabalhador brasileiro”, diz Tharcisio Souza Santos, diretor
do FAAP MBA. “E nem por isso nos consultam se queremos ser
financiadores de grandes empresas, que têm acesso a recursos baratos no
Exterior.”
O BNDES defende o financiamento de grandes grupos, pois “a captação
no Exterior envolve risco cambial, o que, sob câmbio flutuante, torna o
custo do hedge elevado, fazendo com que os financiamentos em moeda
estrangeira não sejam apropriados para a maior parte dos negócios”. Mas
salta aos olhos o fato de, apenas no ano passado, o fundo ter
transferido R$ 17 bilhões ao BNDES, sendo responsável por 27,2% do
passivo total do banco. Na ocasião, o saldo acumulado do FAT no BNDES
era de R$ 161,9 bilhões. Juntos, o Tesouro e o FAT representam 79,8% das
fontes de capital do BNDES. São, portanto, recursos do contribuinte que
financiam as escolhas do professor Coutinho. E ele não pode,
definitivamente, tomar decisões de risco sem um retorno que compense seu
principal investidor.
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