Wanderley Guilherme dos Santos: Plebiscito com temas da direita é desolador
Vestais da esquerda saíram do armário com suas túnicas
udenistas e se abraçam à direita no ataque a algumas das instituições
democráticas vigentes. Sempre estiveram juntas nesse assalto, parceria
obscurecida pela discordância entre elas sobre políticas sociais. O
coração reacionário dessa cumplicidade pulsa na aceitação de que os
políticos que consideram desmoralizados e sem credibilidade são
exatamente os mesmos, esses que estão aí, aos quais entregam a
responsabilidade para elaborar uma proposta de reforma em que todos os
itens sugeridos, até agora, castram avanços pretéritos da sociedade.
Propostas de substituição do sistema proporcional são
comuns à direita e à esquerda desde a publicação da Constituição de 88.
Voto majoritário puro ou misto e voto em lista, para não mencionar a
abolição do voto obrigatório, são variantes nascidas no coração do
reacionarismo nacional, em São Paulo, e em parte adotado pelo Partido
dos Trabalhadores e até por centrais sindicais. Estas, contagiadas pela
vizinhança dos Jardins, retratavam Getulio Vargas como um caudilho
maligno e nunca perceberam, por exemplo, que o imposto sindical
garantiu, fundamentalmente, o financiamento privado da participação
política dos trabalhadores. Privado, isto é, por eles mesmos. Hoje
defendem o financiamento público das campanhas alheias e recusam o
financiamento privado, restrito a pessoas físicas e com limite de
contribuição, enquanto os conservadores especulam com a possibilidade de
que contribuições de qualquer natureza só possam ser concedidas a
partidos, administradas por seus dirigentes, não a candidatos
individuais.
Propostas de substituição do sistema proporcional são comuns à direita e à esquerda desde 88
Eis as fantásticas rupturas democratizantes
alegremente saudadas pelas babás (leia-se “analistas”) dos filhotes dos
filhotes da ditadura. Nunca a esquerda nocauteada admitiu tão
completamente a sedução ideológica da direita contra o poder do voto
popular. Pedir de nariz arrebitado um plebiscito para aprovar opções
elaboradas pela direita é apenas desolador.
Em meio ao assédio do casal de vestais da
esquerda e garanhões da direita tem sido fácil aprovar medidas que não
passam de engodo ou representam tiros demagógicos que fragilizam a
Constituição diante de futuras rajadas reacionárias. Dois exemplos
recentes: a redução para um do número de suplentes de senadores e a do
número de assinaturas para legislação de iniciativa popular.
Com a mímica da redução do número de suplentes de
senadores, a proposta recém aprovada no Senado simplesmente restabelece o
comando autorizado pelo parágrafo quarto do artigo 60 da Constituição
de 1946, fixando em um o número de suplentes, e que valeu até que a
emenda ditatorial de 17 de outubro de 1969, em seu parágrafo terceiro do
artigo 41 da Constituição de 69, aumentasse para dois esse número. A
Constituição democrática de 88 incorporou e consagrou no parágrafo
terceiro de seu artigo 46 esse detrito ditatorial. Pretender avançar
retornando a um texto pré-ditadura equivale a contrabandear gato por
lebre.
Wanderley Guilherme dos Santos: Barrabás e a hora dos calouros
No minueto do impedimento da candidatura de parentes para
a vaga de suplentes de senadores, a emenda dita progressista aprovada
retrocede outra vez à Constituição de 46, que já os tornava inelegíveis
no item c) da alínea I de seu artigo 140. Enorme gato enfatuado, esses
arrufos de vanguarda deixam escapar, pimpona, a verdadeira ratazana,
sócia atleta do sindicato dos corruptores ou da oligarquia familiar – a
instituição genérica da suplência senatorial, em si mesma, a qual
deveria ser simplesmente abolida.
Há pior. A Constituição de 88 prevê, além de plebiscitos e
referendos, a tramitação de legislação de iniciativa popular, desde que
apoiada por um por cento do eleitorado nacional (em torno de 1 milhão e
trezentos mil subscritores). Os senadores Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e
Lindberg Farias (PT-RJ), respectivamente autor e relator da PEC 3/2011,
aprovaram, em 10/7/13, redução da exigência para 0,5% do eleitorado,
com aceitação de subscrição digital, ou seja, cerca de 650 mil
feicebuquistas. À época da Constituinte de 86, o fenômeno das redes
sociais era inexistente e, portanto, nem se prenunciava o perfil que,
aliás, ainda está por ser inteiramente delineado. O eleitorado de então,
em torno de 94 milhões e meio, correspondia a menos 48% dos 140 milhões
e 400 mil eleitores atuais. Era mais do que hospitaleiro o requisito de
subscrição de 1% daquele eleitorado para dar andamento a propostas
legislativas, sem torná-las inviáveis ou criar ameaças potenciais ao
trabalho normal do Congresso. Mas o aumento homeopático no número
absoluto de apoiadores, pela lei que aprovaram, não protege a
vulnerabilidade a que ficam expostos os quase cento e cinqüenta milhões
de eleitores que não opinarem, expulsos da irrisória porcentagem de 0,5%
de ativistas agraciados com a difusão de molotovs legais, propiciada
pelos dois senadores e os que os seguiram, a saber, pouco acima da
metade da Casa, 55 votos a favor.
O crescimento do eleitorado impõe como salvaguarda das
maiorias – atenção, salvaguarda das maiorias – o aumento no porcentual
de apoiadores para justificar o curso obrigatório de iniciativas
populares. Hoje, com a revolução nas mídias sociais e a capacidade de
mobilização de minorias ideologicamente organizadas, a possibilidade de
fustigar o ordenamento legislativo do país é mais do que óbvia. Estão aí
os “anônimos”. Sem mencionar tentativas de congestionar Congressos
legítimos com dezenas e dezenas de iniciativas “populares” coordenados
por grupos fascistas. Aumentar seu potencial de dano a custos baratos é
atentado constitucional que febre momentânea ou aventureirismo crônico
explicam. Inaceitável à a adesão ou silêncio cúmplice dos analistas
modernos e de vanguarda, babás dos netos da ditadura.
Ademais, ficam à mercê os brasileiros não eleitores e,
cassação elitista de direitos, os excluídos do mundo eletrônico, entre
eles os analfabetos digitais ou sem mesada gorda. Pois os facebuquistas
não irão procurar os analfabetos sem renda ou aparelhos eletrônicos para
obter a adesão deles. Nem saberão que há iniciativas de legislação
popular com adesão digital. Sutil discriminação tecnológica.
Estabelecido por decreto ditatorial, o voto ao analfabeto
foi concedido ao final do governo Figueiredo, com a restrição de que,
embora votantes, não podiam ser votados. A Constituição de 88 incorporou
essa meia cidadania, estabelecendo, no parágrafo terceiro de seu artigo
14, que “são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. Agora, os
senadores de esquerda estabeleceram que os netos da ditadura pilotando
tabletes terão oportunidades desiguais de aderir a iniciativas
populares.
À noite do modernismo digital, todos os gatos passam por lebres.
Fonte: IG
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