A monstruosidade de Belo Monte e descalabro em Altamira que Dilma não teve coragem de ver
Foto: Arquivo/Xingu Vivo
Em entrevista, D. Erwin Kräutler questiona: "Por que os
teólogos não aproveitaram a audiência com Dilma para unir-se aos povos
indígenas no grito uníssono de “Demarcação já!”?
Do IHU-Online
A
chegada de um novo ano quase sempre traz votos de renovação e
esperança. Porém, 2015 não começa com esse espírito para quem vive nas
cercanias das obras de construção da Usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará. Em entrevista concedida por e-mail para IHU On-Line, o bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, dom Erwin Kräutler, denuncia o que já havia previsto: “a grande euforia que cinco anos atrás tomou conta da cidade de Altamira, a ponto de muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos Belo Monte”,
cedeu lugar a um surdo desânimo. Até agora, nada do que comerciantes,
empresários e os políticos de plantão esperaram e prognosticaram como a
salvação do oeste do Pará se realizou. A cidade está quase
intransitável. Homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O
povo está apreensivo e assustado”, pontua.
A difícil situação apontada por dom Erwin é
ainda mais complicada quando se tenta traçar uma perspectiva de futuro
do governo que se inicia. Isso, levando em consideração as posturas que a
presidente Dilma Rousseff vem
adotando nesse seu segundo mandato. Além de não citar questões que são
velhas demandas de povos indígenas em seu discurso de posse, a
presidente nomeia Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Sinais que, para dom Erwin, podem dizer muito do que pode vir pela frente. “Para Dilma, Belo Monte nunca
foi assunto de pauta com movimentos populares ou a população
diretamente impactada. (...) O governo continua a defender o latifúndio e
os privilégios que tem concedido ao agronegócio contra os povos
indígenas. (...) O rolo compressor continuará a passar por cima de todos
nós aqui noXingu e em breve por cima dos povos do Tapajós e de outros rios da Amazônia”, prevê.
Dom Erwin Kräutler é bispo prelado de Xingu, PA, presidente do
Conselho Indigenista Missionário - CIMI.
Confira a entrevista.
IHU
On-Line - Há mais de cinco anos o senhor alerta para os riscos e
implicações sociais e ambientais da construção de Belo Monte. Como tem
sido acompanhar esse processo, desde a elaboração do projeto até o
início da construção da usina?
Foto: Valter Campanato/ABr |
Dom Erwin Kräutler - Na
realidade, essa luta contra o barramento do Rio Xingu já dura mais de
30 anos. Por algum tempo acreditávamos que o projeto fosse arquivado.
Foi engano. Quando Lula assumiu o governo, em vez de definitivamente
renunciar a essa monstruosidade, abraçou-o e secundando os pareceres
eufóricos de sua ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, deu ênfase
especial à execução da obra, incorporando-a ao Programa de Aceleração
do Crescimento - PAC.
As implicações sociais e ambientais estavam
programadas, especialmente a partir daquele dia fatídico em que o
Governo entendeu que as condicionantes exigidas pelo Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente - IBAMA e pela Fundação Nacional do Índio -
FUNAI não precisavam ser atendidas antes da instalação do canteiro de
obras, mas poderiam ser cumpridas ao longo da execução do projeto. Com
essa decisão, não foi instalado apenas o canteiro de obras, mas também o
caos em Altamira. Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma veio
visitar Belo Monte para gravar um vídeo. Seu avião pousou no aeroporto
de Altamira. No entanto, ela não teve coragem de entrar na cidade para
ver “in loco” o descalabro que nos assola.
IHU On-Line - Em que estágio se encontra a construção de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - Volta e meia se noticia que a construção estaria atrasada por causa das várias manifestaçõescontrárias
ao projeto. Mas, tenho a impressão de que está bastante adiantada. Já
são derrubadas as casas nos bairros que serão atingidos, e as famílias,
transferidas para as novas moradias construídas em concreto. Sei, no
entanto, que nem de longe haverá casas suficientes para abrigar todas as
famílias.
IHU On-Line - O senhor tem visitado várias
comunidades da Prelazia do Xingu. Qual é o sentimento das pessoas em
relação à construção de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - A grande euforia que cinco anos atrás tomou conta da cidade de Altamira, a ponto de muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos Belo Monte”,
cedeu lugar a um surdo desânimo. Até agora, nada do que comerciantes,
empresários e os políticos de plantão esperaram e prognosticaram como a
salvação do oeste do Pará se realizou. A cidade está quase
intransitável. Homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O
povo está apreensivo e assustado.
Houve certo boom na construção
civil devido à procura de aluguéis. Alguns ganharam somas exorbitantes
cedendo quartos ou casas a preços exagerados. Mas essa onda passou
quando a Norte Energia instalou a vila residencial bem próxima ao canteiro de obras.
A vila possui infraestrutura completa, com escola, farmácia,
supermercado, restaurantes, padaria, academia de ginástica, clube,
biblioteca e áreas livres para recreação e lazer e ainda serviços de
clínica geral, ginecologia, cardiologia, oftalmologia, pediatria,
odontologia, pronto-atendimento, laboratório e salas de raios-X e
ultrassonografia. Essas comodidades de primeiro mundo estão em manifesto
contraste com as condições em que vivemos na cidade da Altamira.
Lula me
assegurou, num dos encontros que tive com ele, que o governo havia
aprendido a lição dos erros cometidos em outros empreendimentos e Belo Monteseria totalmente diferente. Mas, na realidade, mais uma vez se repete a já conhecida história da Usina Hidrelétrica Tucuruí,
também no Estado do Pará (a 350 km ao sul de Belém), construída a
partir de 1975 e inaugurada em novembro de 1984. Surgiu uma cidade-luxo
em torno da obra, e a cidade de Tucuruí foi condenada à categoria de cidade-lixo. Nosso grande medo em Altamira é de que, na inauguração de Belo Monte,
as prometidas melhorias em infraestrutura nem de longe estejam
concluídas e, depois da festa, se desmonta o palanque e a população
ficará entregue à própria sorte.
IHU On-Line - Que espécie
de conflitos a construção de Belo Monte tem gerado entre as comunidades
indígenas e entre indígenas e não indígenas? Como Belo Monte tem
afetado e até mesmo rompido com a cosmologia indígena?
Dom Erwin Kräutler - Desde que decidiu construir Belo Monte, o governo se equivocou quanto aos impactos que os povos indígenas da Grande Volta do Xingu iriam
sofrer. Propagou-se por todo o Brasil a informação de que nenhuma
aldeia indígena seria inundada. E é verdade. De fato, a água do
reservatório não vai submergir nenhuma aldeia. O contrário acontecerá: o
rio que banha as aldeias vai sumir ou se tornará um córrego atrofiado
com uma sequência de lagoas bem rasas. O peixe desaparecerá e sem água
suficiente não haverá condições de sobrevivência nestes lugares. Os
indígenas forçosamente serão desterrados para outros locais. Muitos já
se transferiram para a cidade e perdem sua cultura, seus costumes e sua
maneira própria de organizar-se em comunidade. Lamentavelmente, grande
número sucumbe aos vícios dos brancos.
IHU On-Line - O
senhor leu a carta do Grupo de Emaús à presidente Dilma? Como vê as
manifestações do grupo de teólogos acerca dos impactos dos megaprojetos,
sem fazer referência direta às hidrelétricas?
Dom Erwin Kräutler - A carta entregue pelo Grupo Emaús à Presidente Dilma em
audiência que ela concedeu a uma delegação dessa entidade no dia 26 de
novembro de 2014 tem o título “O Brasil que queremos”. Vejo na escolha
do título certa analogia com o documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável– Rio + 20 (20
a 22 de junho de 2012) “O futuro que queremos”. É um documento chocho e
insosso, sem consequências palpáveis. Assim também a carta dos teólogos
não faz nenhuma reivindicação pontualizada, nenhuma exigência concreta,
nenhuma denúncia circunstanciada, fornecendo nomes e endereços. E
destarte, logicamente também não fala das consequências perniciosas de Belo Monte e de muitos outros projetos do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC.
Não empresta sua voz — como se esperaria de teólogos — às famílias
arrancadas de seus lares e suas terras e de tantos outros que foram
atingidos por barragens ao longo das décadas passadas. Não reclama nada.
Só pede uma “reavaliação”.
Da mesma maneira, só fala genericamente da defesa dos direitos indígenas e quilombolas. Não emprega uma única vez a palavra “demarcação”. Dilma impôs
no ano de 2013 a paralisação dos procedimentos demarcatórios de terras
indígenas. Assim, demonstrando claramente que as atenções de seu governo
estão voltadas aos setores da economia e da política ligados ao
latifúndio, ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e empresas de energia hidráulica,
que visam exclusivamente à exploração da natureza em terras
tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. O descumprimento dos
parâmetros constitucionais da Carta Magna de 1988 que
previu a demarcação de todas as áreas indígenas num prazo de cinco anos é
o lúgubre pano de fundo de todos os conflitos sangrentos que causaram
centenas de mortes de indígenas em todos os quadrantes do país. Por que
os teólogos não aproveitaram a audiência para unir-se aos povos
indígenas no grito uníssono de “Demarcação já!”?
Ao
assumir o segundo mandato, a presidente da República chegou a propor um
diálogo com a sociedade. A pergunta que me faço é se ela realmente está
disposta a ouvir, a discutir, a receber críticas, a conversar, por
exemplo, com os povos indígenas ou os atingidos por barragens. Em
relação a Belo Monte, o seu predecessor na Presidência me falou, em 22 de julho de 2009, que o diálogo tem que continuar. Mas foi Lula mesmo que o abortou. Para Dilma, Belo Montenunca
foi assunto de pauta com movimentos populares ou a população
diretamente impactada. Dilma se negou a qualquer diálogo sobre este
tema. Pelo contrário, mandou recado a quem fizesse oposição à menina de
seus olhos:Belo Monte é irreversível!
E como vimos há poucos dias, Dilma não se deixou impressionar nem um pouco pelas manifestações contrárias à nomeação de Kátia Abreu, implementadas por amplos setores da sociedade brasileira. Na entrevista que Kátia Abreudeu à Folha de São Paulo no
dia 5 de janeiro, dia de sua posse como ministra da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, ficou bem claro qual é a posição do governo em
relação aos povos indígenas. O governo continua a
defender o latifúndio e os privilégios que tem concedido ao agronegócio
contra os povos indígenas. Povos que, na opinião grotesca da ministra,
“saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção”. Não é um
fato altamente indicativo que a presidente Dilma, nos dois discursos do dia de sua posse, não fez uma única referência sequer aospovos indígenas?!
IHU
On-Line - Como o senhor avalia a reeleição da presidente Dilma e as
declarações logo após as eleições, de que a hidrelétrica é uma das
prioridades do governo?
Dom Erwin Kräutler - Eu
não esperava outra coisa. Se durante o primeiro mandato e ao longo da
campanha o discurso foi esse, como ela iria mudar depois de conferir os
votos e se dar conta de sua reeleição? O rolo compressor continuará a
passar por cima de todos nós aqui no Xingu e em breve por cima dos povos do Tapajós e de outros rios da Amazônia. As reivindicações da população não contam. Nem o Plano Básico Ambiental é cumprido. É alterado, sempre que assim convier ao governo.
IHU
On-Line - Como compreender que pessoas ligadas às CEBs e à Igreja, hoje
presentes no governo, defendem a construção de hidrelétricas, sem
considerar os impactos às comunidades indígenas, às comunidades
tradicionais e à própria população de Altamira, por exemplo?
Dom Erwin Kräutler - Respondo com um comentário de um padre gaúcho a respeito da carta de repúdio do Conselho Indigenista Missionário - Cimi à entrevista de Kátia Abreu.
Partilho do mesmo sentimento do padre: “Sou padre diocesano há 50 anos
(...). Desde meus últimos anos de Teologia e até hoje sempre me
comprometi na defesa dos direitos dos mais pobres, entre os quais
indígenas e sem terra. Conseguimos avançar pouco e agora o freio é
escancarado com a prepotente Kátia Abreu.
Engajei-me na construção do PT imaginando que o poder em mãos de
lideranças, boa parte formada na visão da Teologia e Pastoral populares,
constituiriam um ‘outro Brasil possível’, mas caíram no ralo comum. Nos
traíram!”.
IHU On-Line - O senhor conhece Thais Santi, a
nova procuradora do MP de Altamira? Quais são os desafios dela diante
das dificuldades em torno de Belo Monte, considerando que já passaram
outros procuradores por Altamira — a exemplo de Felício Pontes Jr. —,
mas que pouco conseguiu avançar por conta da estrutura judiciária?
Dom Erwin Kräutler - Conheço, sim, a Thais Santi. Como também o Felício Pontes. A minha amizade com Felício já é de muitos anos. Sempre estive ligado a ele na defesa dos direitos dos povos do Xingu. E ainda de modo especial após o assassinato da Irmã Dorothy, que no próximo dia 12 de fevereiro completará dez anos.
A Thaís está em Altamira desde 2012. Muito a estimo e admiro a sua coragem. É uma verdadeira dádiva paraAltamira.
Posso dizê-lo em relação a seu profissionalismo e sua competência, à
sua determinação na busca de solução para as mais diferentes questões
que é solicitada a dirimir. Além disso, é de uma personalidade
cativante. Sabe ouvir o povo simples. Faço votos de que não saia tão
cedo de Altamira. É impressionante e esclarecedora a entrevista que Thaís deu a Eliane Brum: A anatomia de um etnocídio.
Tive, aliás, a felicidade de conhecer várias jovens procuradoras que passaram por Altamira e lamentavelmente ficaram apenas pouco tempo. Lembro-me também com gratidão do procurador Marco Antônio, que voltou para o seu estado de origem, o Mato Grosso do Sul.
Em conversas descontraídas descobri que todos sonharam com um Brasil
diferente, um Brasil bem “legal” (no mais estrito sentido da palavra!) e
queriam dar a sua contribuição, lutando pelos direitos e a dignidade
dos povos do Xingu, indígenas, migrantes, ribeirinhos e
habitantes das cidades e vilas ao longo deste rio majestoso e
maravilhoso, condenado a morrer. Esbarraram quase sempre em estruturas
judiciárias adversas que obedecem a outros interesses.
IHU On-Line – Nesse começo de 2015, que mensagem é possível transmitir àqueles que vivem as consequências de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - Na passagem de ano escrevi uma meditação que quero deixar aqui como palavra final de nossa entrevista:
31 de dezembro, 24:00 horas:
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
A noite se torna dia,
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
Nosso caminho nos leva
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até lá, Cada momento é um presente,
Mas também um convite para amar.
Mas também um convite para amar.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/31027
Nenhum comentário:
Postar um comentário