Os EUA redescobrem o gueto
Protestos por morte de jovem negro em subúrbio mostram que, cinco anos depois de o primeiro negro chegar à Casa Branca, pouca coisa mudou no abismo racial do País
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)
A indignação
pela morte de Michael Brown, um negro de 18 anos assassinado pela
polícia de Ferguson, subúrbio de 21 mil habitantes no Missouri, Estados
Unidos, provocou nos últimos dias uma onda de protestos que se tornaram
mais violentos à medida que detalhes do crime eram revelados. Brown
recebeu seis tiros, dois deles na cabeça, quando estava ajoelhado e com
as mãos levantadas em sinal de rendição. Reprimidas com bombas de gás
lacrimogêneo e balas de borracha, as manifestações atraíram a presença
da Guarda Nacional e do secretário de Justiça, Eric Holder, enviado como
representante do presidente Barack Obama. Acima de tudo, elas expuseram
a profunda desconfiança das comunidades negras em relação à polícia e
mostraram que, mesmo cinco anos depois de o primeiro negro chegar à Casa
Branca, pouca coisa mudou no histórico abismo racial do país.
REPRESSÃO
As manifestações em Ferguson cresceram à medida que detalhes do crime
eram revelados e a polícia respondia com balas de borracha e bombas de gás
Em Ferguson, como em outras inúmeras
cidades americanas, o racismo não só sobrevive como se manifesta em
todas as esferas sociais. Embora os negros representem dois terços da
população local, eles estão sub-representados na polícia e na política
(apenas três dos 56 agentes são negros e o prefeito e cinco de seus seis
vereadores são brancos). Ali, a renda familiar anual é de US$ 36 mil e o
desemprego saltou de 5% em 2000 para 13% em 2012 (as médias nacionais
são de US$ 53 mil e 6,2%, respectivamente). “Ferguson é
parte de um
processo muito maior que demanda mais inclusão para os negros e também
para os latinos, que exigem não ser tratados como cidadãos de segunda
classe”, disse à ISTOÉ Howard Winant, diretor do Centro para Novos
Estudos Raciais da Universidade da Califórnia e autor do livro “Racial
Formation in the United States” (“Formação Racial nos Estados Unidos”).
De acordo com o sociólogo, os protestos da semana passada atingiram um
novo nível de resistência. “Os manifestantes são politicamente muito
conscientes”, afirma. “De alguma forma, é um desafio direto ao Estado
racista.”VÍTIMA
Michael Brown, 18 anos (acima), foi visto roubando cigarros numa loja
de conveniência poucos minutos antes de sua morte em 9 de agosto.
Mas o policial Darren Wilson não sabia que o jovem era
suspeito do roubo quando o abordou e atirou seis vezes
As manifestações não parecem ter freado o
ímpeto da polícia. Na terça-feira 19, dez dias depois do assassinato de
Michael Brown, um homem negro acusado de roubar refrigerantes de uma
loja em Saint Louis, na mesma região metropolitana de Ferguson, foi
morto por dois policiais. Kajieme Powell, 25 anos, desafiou os agentes
com gritos de “atire em mim”. O jovem acabaria levando 12 tiros, e ainda
há dúvida se ele estava armado ou não. No caso de Michael Brown, a
polícia divulgou um vídeo que o mostrava roubando cigarros numa loja de
conveniência pouco antes de morrer. Para os manifestantes, as imagens
foram uma tentativa de culpar a vítima pela abordagem violenta. O chefe
da polícia, no entanto, disse que Darren Wilson, o policial que matou
Brown, não sabia que o jovem era um suspeito quando o encontrou. Wilson
está em licença remunerada, mas deve se apresentar a um júri de 12
pessoas – três delas negras.
A tensão racial explode nos Estados Unidos
de tempos em tempos. Há um ano, quando o vigia comunitário George
Zimmerman foi absolvido pelo homicídio de Trayvon Martin, então com 17
anos, negro e desarmado como Michael Brown, a onda de protestos se
espalhou por cidades como São Francisco, Washington, Los Angeles e Nova
York. O júri que inocentou Zimmerman era composto por seis mulheres
brancas. Com base nas estatísticas oficiais, é possível dizer que, se o
crime tivesse sido cometido por um negro contra um branco, o veredicto
seria diferente. Segundo um estudo publicado em 2012, os homens negros
estão mais propensos que os brancos a serem condenados pelos mesmos
crimes e, em geral, suas sentenças são 60% mais longas.
OMISSO?
Desde que chegou à Casa Branca, em 2009, o presidente Barack Obama
tem evitado politizar questões raciais. No caso de Ferguson, não foi diferente
O secretário Eric Holder, também negro,
contou uma experiência pessoal que escancara o racismo entranhado na
sociedade americana. Em Nova Jersey, quando não era uma autoridade no
país, seu carro foi parado e revistado sem nenhum motivo aparente. Ele
disse que se sentiu “humilhado” pela ação policial. “Holder vem de uma
família do Alabama e entende o real significado de discriminação e a
frustração daquela comunidade”, afirma o consultor político Raynard
Jackson. O Estado do Alabama é icônico na luta pelos direitos civis nos
EUA desde que, nos anos 50, uma mulher se recusou a ceder seu assento
num ônibus para um branco. Para Jackson, Obama não tem a mesma
experiência, porque foi criado no Havaí, onde as distinções entre
brancos e negros são uma questão menor.
Pressionado por questões internacionais e
em baixa entre os americanos, Obama manteve distância das tensões em
Ferguson e seguiu com suas férias de verão em Martha’s Vineyard. Desde
que assumiu a Presidência, foram poucas as ocasiões em que ele falou
abertamente sobre questões raciais. O tom emotivo com que tratou Trayvon
Martin, ao dizer que ele poderia ser seu filho, foi uma exceção.
“Barack Obama não foi a resposta para nossas demandas sociais, mas temos
que entender que ele não é o presidente da comunidade negra, mas do
país todo”, diz Ebonie Johnson Cooper, ativista negra. “Para ver
mudanças, os cidadãos devem começar se engajando politicamente nos
comitês locais.” Professora de ciência política da Universidade de
Fordham, de Nova York, Christina Greer afirma que, “por mais poderosa
que seja, uma pessoa sozinha não muda a mentalidade de outros milhões”.
Nos EUA, a taxa de desemprego é, em
qualquer nível de educação, cerca de duas vezes maior para os negros do
que para os brancos – e isso praticamente não mudou nas últimas quatro
décadas – e a de pobreza é mais que o dobro, embora essa proporção
esteja caindo. As chances de um jovem negro entre 25 e 34 anos ser
assassinado são nove vezes maiores que as de um branco da mesma faixa
etária. Na quinta-feira 21, com o arrefecimento dos protestos em
Ferguson, o governador de Missouri pediu que a Guarda Nacional começasse
a se retirar da cidade. As feridas, porém, continuam lá.
Foto: Lucas Jackson/REUTERS
Fonte:http://www.istoe.com.br/reportagens/378963_OS+EUA+REDESCOBREM+O+GUETO?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage
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