Amazônia
Contato dos Xatanawa põe fim a resistência centenária
O descaso e a incompetência do Brasil e do PERU colocaram populações em "isolamento voluntário". Os sete indígenas que apareceram no Acre são sobreviventes
por Felipe Milanez e Glenn Shepard
Por Felipe Milanez e Glenn Shepard
Eles são jovens. Todos saudáveis. Corpos
esbeltos, cabelos bem cortados, algumas leves pinturas no rosto.
Carregam arcos e flechas bem feitas, bem apontadas, com as penas
impecavelmente cortadas. Portam um cinto de casca de envira, que
utilizam para segurar um machado, e amarram o pênis nesse mesmo cinto.
Imitam animais da floresta com perfeição e cantam belas melodias
características das sociedades falantes da língua Pano,
como as músicas dos Kaxinawa e dos Yawanawa que se pode escutar em CDs.
Por trás dessa bela aparição de jovens indígenas que tomaram coragem e
decidiram passar a interagir com a violenta sociedade que os cerca,
estão terríveis histórias de massacres – um provavelmente recente, e
suspeita-se perpetrado por um narcotraficante. A história do “contato”
dos Xatanawa é uma extraordinária história de resistência.
Vídeos e fotografias sobre a chegada de um
povo tido como em “isolamento voluntário” em uma aldeia do povo
Ashaninka, no Acre, têm provocado comoção nas redes sociais,
questionamentos, comentários racistas, e ganharam atenção da imprensa
nacional e internacional. Dois vídeos divulgados com exclusividade no
blog do jornalista Altino Machado romperam com o silêncio da Funai, muda
sobre os riscos do contato e apenas expressando-se em notas à imprensa
cheias de mistérios. A notícia saiu desde o Jornal Nacional ao britânico Guardian. Tem merecido manchetes de portais sensacionalistas e até de revistas científicas como a Science.
Quase sempre, a história dos massacres e da resistência dessa população
é
deixada em um segundo plano para dar espaço ao sensacionalismo,
exotismo e colonialismo da relação com essa nação indígena.
Ideias tais como “emergiram da floresta”
ou “saíram do isolamento”, “um grupo de índios isolados da civilização”
que estão “vindo até nós” contribuem muito mais para esconder o real
significado desse processo de aproximação e interação em curso. Nas
caixas de comentários há sempre a surpresa pelo machado, terçado, a
espingarda, ou a “carteira do Corinthians” portada pelos indígenas.
“Será que a Funai vai, também, demarcar o Itaquerão?”
Essa perspectiva etnocêntrica contribui
para se deixar de lado a responsabilidade dos Estados brasileiro e
peruano em protegerem e dar garantias para que essa população possa
continuar vivendo livre – e se quiser, mesmo contra o Estado.
Fronteiras de sangue
As câmeras que mostram os jovens indígenas poderiam também apontar para o outro lado dessa fronteira: o tráfico de cocaína do Peru,
maior produtor mundial, e suspeito de ter cometido um massacre contra
essa população; para a indústria madeireira peruana, ilegal e
predatória, que abastece os Estados Unidos de mogno, também suspeita de
violência e massacres por ali; para a indústria madeireira brasileira
que falsifica documentos, mesmo no Acre, e está explorando o entorno das
terras indígenas, e é uma das campeãs de conflitos e mortes; para a
exploração de petróleo e ouro, avançada no Peru e em processo de
prospecção no lado brasileiro, que contamina vastas áreas de floresta;
para as obras de infraestrutura na América Latina, pelo IIRSA, e também o
PAC, que impactam e destroem ambientes e vidas humanas que não são
levadas em contas nas planilhas.
Foi somente após o contato desse grupo que
fala língua da família Pano, e que a princípio se autodenominam
Xatanawa, segundo identificou um dos intérpretes, é que o governo
brasileiro decidiu liberar recursos para a construção e manutenção de
quatro bases de fiscalização da Frente de Proteção Etnoambiental Envira.
Foi feita a promessa de 5 milhões de reais e mais recursos de
emergência para que não ocorram mortes decorrentes do contato. Essa
população passa a viver uma situação de vulnerabilidade epidemiológica
em razão de baixa imunidade a diversas doenças. Tempos atrás, metade
iria morrer nos próximos meses. Será que agora é possível fazer
diferente? Algumas experiências como o contato com os Korubo, em 1996,
no Vale do Javari, e com os Arara da Cachoeira Seca do Iriri, em 1987,
mostram que é possível, se houver uma equipe organizada, evitar
epidemias e mortes.
Acontece que, para se construir equipe e
estrutura, é necessária a chamada “vontade política”: o governo cumprir a
lei e destinar recursos. As quatro bases de fiscalização que foram
agora prometidas já eram uma demanda antiga do sertanista José Carlos
Meirelles e passaram a ser também de seus jovens sucessores na Frente de
Proteção Etnoambiental Envira, da Coordenação Geral de Índios Isolados,
no Acre, como o dedicado indigenista Guilherme Daltro Siviero.
Há anos, Meirelles e outros indigenistas,
como Terri de Aquino, alertam sobre a possibilidade de um eventual
contato nessa área com um povo em isolamento voluntário. E alertam para a
chance de um provável desastre humanitário. Isso nunca serviu, no
entanto, para acordar os burocratas da chefia da Funai, do Ministério da
Justiça e do Ministério do Planejamento. Mais fácil deixar sangrar em
campo os dedicados funcionários, e depois culpá-los por “despreparo”,
como alega reportagem recente publicada no jornal britânico Guardian. Como o próprio Meirelles desabafou em entrevista concedida à Revista Terra na semana passada: “Ou faz, dando estrutura, ou o estado brasileiro diz: tudo bem, mais um genocídio no meu currículo.”
Em 2007, já com suspeita de que um contato eventual poderia ocorrer com a vinda dos indígenas, Meirelles alertou em entrevista para Felipe Milanez
sobre os riscos que ele temia: “Não temos condições de prover saúde e
dar assistência, seria um massacre.” O risco agora é de um massacre
epidêmico após essa população ter relatado que sofreu um massacre por um
grupo fortemente armado.
Esses jovens Xatanawa que habitam as
cabeceiras do Envira são, portanto, conhecidos há tempos pelo Estado
brasileiro. Meirelles montou a primeira base de fiscalização na
confluência do rio Envira com o igarapé Xinane em 1988. Ele já havia
mapeado a região e encontrou esse ponto com equidistância do território
de diferentes povos nessa situação de isolamento, em uma posição
intermediária com as comunidades Ashaninka e também bem localizada para
controlar a subida do rio: a partir dali, subindo as águas do Envira,
estaria vigiado o acesso pela água.
A proteção do lado brasileiro da fronteira
passou a ser eficiente. E, pelo lado peruano, passou a piorar após os
anos 2000, quando Meirelles começou a perceber os resíduos da exploração
madeireira no lado de lá, como tambores de combustíveis, sacos
plásticos e pranchas de mogno descendo o rio. Se vinham todas essas
tralhas de acampamentos ilegais, por que não poderia descer o rio
também, por exemplo, uma carteira do Corinthians ou um machado boiando
cravado numa tora, objetos encontrados com os Xatanawa?
Ameaças e riscos desde o início da década
O sertanista Meirelles e seus colegas na
Coordenação de Índios Isolados e Recente Contato passaram a denunciar a
situação de ameaça ao indígenas em isolamento na fronteira do Brasil com
o Peru, região do Paralelo 10, no início da década. Em 2004, Meirelles
foi atacado por um grupo Mashco Piro, levou uma flechada no rosto e
quase morreu. Já desconfiava ele que a agressividade dos Mashco poderia
estar relacionada com violência contra eles na região. Em 2005, um grupo
de indígenas passou em aldeias e nas casas de ribeirinhos para se
apropriar de alimentos e ferramentas. Meirelles tentou recursos do
governo para repor esses equipamentos e tentar lançar, em sobrevoos,
ferramentas às aldeias dos isolados.
As madeiras de sangue, como chamamos a
exploração ilegal e predatória de madeiras nativas, cada vez mais
penetraram os territórios dessas populações indígenas autônomas. Em 2006
e 2007 foram feitas denúncias internacionais da invasão de madeireiros
peruanos no território brasileiro, que atingiam tanto comunidades
Ashaninka quanto o território dos isolados. Nessa crise, durante uma
reunião interministerial, um diplomata brasileiro falou sobre a
necessidade de denunciar o Peru na Organização Mundial do Comércio.
Meirelles costumava dizer a amigos: “cada
caixão de mogno nos Estados Unidos deveria vir com uma placa: aqui jaz
um índio isolado que foi morto para essa madeira vir até aqui enterrar
um americano”.
Na segunda metade da década, com a
eminência do contato, e durante processos de reestruturações da
Coordenação Geral de Índios Isolados (que passou também a trabalhar com
os povos de Recente Contato – CGIIRC) em 2006, que passou a se falar,
internamente no ambiente sertanista, da necessidade urgente de se
constituir equipes preparadas para o contato. Em reunião interna da
coordenação, em 2010, essas equipes foram longamente discutidas: elas
deveriam sempre contar com a presença de um tradutor e agentes
especializados de saúde.
Assim, há pelo menos uma década a
possibilidade de um contato é tida como grande na Funai. Mesmo assim, a
sucessão de chefes na pasta, desde Sydney Possuelo, Marcelo dos Santos,
Elias Bigio, e hoje, Carlos Travassos, nunca conseguiram aumentar o
orçamento e romper os entraves burocráticos interministeriais para o
treinamento de equipes.
Desenvolvimentismo e os impactos que não aparecem nas planilhas
O advento do PAC, em 2007, trouxe novas
pressões, que foram ampliadas com o PAC 2 em 2010. As Frentes de
Proteção Etnoambiental foram duplicadas. Passaram de seis para as atuais
12 e a proteger 30 milhões de hectares. Em 2010, foi feita uma proposta
para ampliação do orçamento da CGIIRC para 5 milhões de reais. Não
houve resposta do governo. Em 2014 o orçamento foi de 2,3 milhões de
reais, e grande parte foi gasto para as operações de desintrusão da
Terra Indígena Awá, no Maranhão, onde o povo indígena Awá também vive
risco de genocídio. Na hora de realizar as operações no Xinane para
salvar os Xatanawa, faltou recurso.
Não é apenas dinheiro que o governo nega
para os sertanistas. Faltam recursos, gente e estrutura. E não é apenas
com relação às populações em isolamento. Esse é apenas um reflexo
exposto da caótica política indigenista do atual governo, violenta de
diversas formas contra os povos indígenas. Uma breve leitura no
diagnóstico do relatório do Conselho Indigenista Missionário serve para
expor o tamanho da tragédia em curso. A política de saúde indígena é uma
tragédia geral, e a Funasa – atual Sesai –, desde que foi desmembrada
da Funai no início dos anos 1990, nunca formou uma equipe especial para
os contatos nem para o contato com os Karubo, no Vale do Javari, em
1996, nem com os Piripkura, em 2007: em ambas as situações os
sertanistas da Funai tiveram de se virar como puderam convidando
enfermeiros conhecidos e amigos.
Dar condições de trabalho e assumir a
proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário determinada pelo
Estatuto da Funai (Decreto 7778) (“proteger os povos indígenas isolados,
assegurando o exercício de sua liberdade, cultura e atividades
tradicionais”) é uma regra muito pouco seguida no último século, desde
que Rondon fundou o Serviço de Proteção ao Índio. Infelizmente, os
vídeos recentemente divulgados mostram funcionários da Funai dedicados,
mas sem os planos discutidos pela própria Funai de dispor de equipe de
saúde especializada e treinada, junto de equipe de interpretes e
sertanistas. Um dos indigenistas usava um corte de cabelo que assustou
os índios, sem intérpretes, falam em portunhol, diziam “não” quando isso
não significa nada (em Kayapó a palavra “nã” quer dizer “sim”, por
exemplo). As equipes foram deslocadas às pressas, com aperto financeiro e
estresse. A base Xinane, que poderia prover alimentos como banana,
mandioca e frutas, estava abandonada.
A questão é que a história desse contato
deve se repetir nos próximos anos em diferentes partes da Amazônia, como
com um grupo Korubo isolado, no Vale do Javari, no Amazonas, ou com um
grupo Yanomami, em Roraima, ameaçado por garimpos ilegais. Não são
situações em que o Estado provoca o contato, como durante o
desenvolvimentismo da ditadura, por exemplo, o caso dos Panará,
atingidos pela BR 163, ou os Arara, na rota da Transamazônica. Mas é
difícil acreditar que, hoje, o Estado brasileiro esteja preparado para
dar proteção a essas comunidades que estão sendo vencidas pelas
violentas frentes de expansão.
Dentro da CGIIRC há planos de constituição
de equipes treinadas e preparadas. Mas é preciso multiplicar por dez o
orçamento, segundo estimativa dos sertanistas, facilitar a contratação
de mateiros e pessoas treinadas em campo e descontingenciar os gastos
para que possam ser aplicados nas situações de urgência e de forma
condizente com a necessidade de custos dessas regiões remotas.
O histórico: quem são os Xatanawa, ou Chitonahua, os “isolados do Envira”?
Os sete sobreviventes enfrentaram o medo
do contato e visitaram a comunidade Simpatia do povo Ashaninka para
pedir comida e materiais. Como não falavam a mesma língua, o encontro
foi tenso. Apenas após a chegada de dois intérpretes Jaminawa (ou
Yaminahua na grafia peruana) que a comunicação foi estabelecida. A
língua que falam é um dialeto do Jaminawa, o que permite fluência na
comunicação. Suspeitava-se a partir das fotografias e vestígios
materiais da presença, com base em sua localização e adornos corporais,
que estes indígenas pertenciam a um grupo falante da língua Pano
isolado. Os intérpretes confirmaram essa filiação linguística e
sugeriram que eles estão relacionados com o Chitonahua do Peru (escrito
‘Xitonawa’ na ortografia brasileira), porém eles se chamam “Xatanawa”,
que significa: “Povo Arara”.
Alguns anos atrás, um pequeno grupo de
cerca de 15 Chitonahua, fugindo de conflitos semelhantes com
madeireiros, em 1996, refugiou-se ao longo do alto rio Minuya, no Peru.
Estavam sendo atacados por madeireiros de mogno: a mencionada indústria
madeireira de sangue. Dois jovens do grupo tinham ferimentos provocados
por tiros de espingarda. Quase a metade do grupo havia morrido por
doenças misteriosas que eles atribuíam a feitiçaria, mas que no entanto
incluía gripe, malária e outras doenças contagiosas.
Os Chitonahua por sua vez são muito
próximos dos Yora ou Nahua do alto rio Manu e do rio Mishagua, do Peru.
Trata-se de um grupo guerreiro e resistente, que ganhou as manchetes
internacionais, em 1983, quando atacaram um grupo de fuzileiros navais
peruanos que acompanhava o então presidente do país Fernando Belaúnde. A
comitiva dirigia-se para as cabeceiras do rio Manu para inaugurar a
parte peruana da rodovia Transamazônica. Há uma fotografia famosa que
mostra o presidente Belaúnde ao lado de um soldado com uma flecha Nahua
no seu pescoço.
Essa resistência Nahua foi, em grande
parte, responsável por impedir o que teria sido um projeto de estrada
ecologicamente desastroso no coração da primeira e mais famosa área
protegida do Peru, o Parque Nacional de Manu. No entanto, com intensa
prospecção petroleira no seu território pela Shell Oil, e a recente
invasão de madeireiros, os Nahua foram finalmente contatados em 1985. Em
dez anos, a população foi reduzida quase pela metade, principalmente
devido a doenças introduzidas.
Como os Chitonahua e, antes, os Nahua, o
grupo que recentemente apareceu ao longo do rio Envira também contraiu
doenças respiratórias e foi necessário tratamento médico de emergência.
Narcotraficante português é o principal suspeito de massacre
Os sete indígenas Xatanawa que vieram até a
aldeia Ashaninka no Acre são verdadeiros sobreviventes. Eles detalharam
aos intérpretes o crime de genocídio que teria sido cometido contra
eles. A suspeita, pelas descrições físicas feita pelos indígenas, é que o
massacre teria sido liderado por um narcotraficante português chamado
Joaquim Antônio Custódio Fadista, com cerca de 60 e poucos anos.
Fadista organizou a invasão da base Xinane
da Funai, em 2011, liderando um grupo fortemente armado. Desde então, a
base Xinane foi desativada. Além do risco aos servidores, houve também
limites orçamentários e de direitos trabalhistas. Acontece que Fadista
foi duas vezes preso dentro do território indígena, em março e em agosto
de 2011. Na primeira, pela PF, foi extraditado e retornou à região.
Depois, pela polícia civil, foi liberado em seguida. Foi condenado por
tráfico pela Justiça do Maranhão e do Ceará, e também em Luxemburgo, e é
procurado pela polícia peruana. Impune no tráfico e, a princípio, até
então, impune na prática de genocídio que deve ser investigada.
Na época, o sertanista José Carlos
Meirelles enviou um e-mail para os “companheiros de luta e família” no
qual dizia: “Como todos sabem a nossa base do Xinane foi invadida por um
grupo paramilitar peruano, onde foi preso por uma operação da Polícia
Federal, um único integrante. O famoso Joaquim Fadista, que já tinha
sido pego aqui por nosso pessoal, foi extraditado e voltou. Com um grupo
de pessoas cuja quantidade não sabemos.”
Carlos Travassos, coordenador de Índios
Isolados na Funai, já suspeitava, na época, da prática de violência por
Fadista. Ele havia relatado, em 2011, para este blog:
“Esses caras fizeram correria (como se chamavam as matanças de
indígenas na época dos seringais) de índios isolados. Decidimos voltar
para cá por conta de acreditarmos que esses caras possam estar
realizando um massacre contra eles”.
Despois de capturado, foi encontrado em
posse de Fadista pontas de flechas dos índios isolados e levantou-se
ainda mais a suspeita do genocídio. Não houve investigação policial da
denúncia dos sertanistas da Funai, nem no Brasil, nem no Peru. A
descrição dos Xatanawa do massacre, segundo servidores da Funai, bate
com a descrição física de Fadista, com a quantidade de pessoas e
possíveis armamentos. O tráfico de cocaína vem a somar-se à indústria
madeireira ilegal e a extração ilegal de ouro como as maiores ameaças
físicas e diretas aos povos em isolamento voluntário na região.
Nações livres e autônomas: o isolamento como estratégia
Nas conversas entre os Xatanawa e os
intérpretes também foram informados detalhes da existência de pelo menos
oito populações indígenas isoladas que residem nesta remota região de
fronteira entre Brasil e Peru, praticamente ao longo da linha do 10º
paralelo sul.
Esses e outros grupos em situação
semelhante hoje têm, de fato, conscientemente adotado o isolamento como
uma estratégia para sobreviver em face da violência e da doença que
foram levadas para essas regiões remotas durante o ciclo da borracha,
entre 1895 e 1915. Na verdade, as primeiras referências ao Chitonahua
remetem a 1895. Antes das correrias dos seringais, violentos massacres,
esses grupos não eram “sem contato”. Estas sociedades participavam de
intensas redes regionais, culturais e comerciais, amplos mecanismos de
comércio interétnico, de trocas e de casamentos. Por esta razão, o termo
“isolamento voluntário” foi cunhado pelo antropólogo Glenn Shepard em
um relatório de 1996 sobre o estado de grupos isolados no Peru.
Shepard cunhou o termo “grupo indígena em
isolamento voluntário” em virtude de avistamentos de índios nômades,
nus, “sem contato”, no Rio de las Piedras e regiões próximas, na bacia
do Madre de Dios no Peru onde a Mobil estava realizando prospecção para
gás e petróleo. A ideia do termo era justamente para tentar superar as
noções românticas e falsas geradas por termos como “índio não-contatado”
de grupos na “Idade de Pedra” que tinham vivido numa espécie de Jardim
de Éden até o presente.
A realidade é que os grupos autônomos
remanescentes na Amazônia hoje são descendentes de grupos que, em
resposta aos massacres, exploração e epidemias sofridos especialmente
durante a Época da Borracha em adiante, escolheram o isolamento radical
de todos os outros povos ao seu redor como último recurso para a
sobrevivência. Nenhum grupo humano, em condições normais, vive isolado
dos outros grupos ao seu redor: na Amazônia são testemunhadas na
arqueologia e na etno-historia grandes redes de troca que alcançavam
desde as regiões mais remotas da Amazônia até os capitais de grandes
civilizações andinas e até a costa do Peru.
O isolamento é, portanto, um fenômeno
recente na etno-história desses povos. E também altamente "moderno": o
“isolamento voluntário” desses grupos é uma resposta à inovação
tecnológica essencial da modernidade, o automóvel, e à demanda que isso
criou nos mercados internacionais para borracha nativa da Amazônia no
início do século XX. A industrialização provocou violência e o
isolamento foi uma resposta a isso. Em certo sentido, esses povos que
são tidos na imprensa sensacionalista como sendo da “Idade da Pedra” são
tão modernos quanto qualquer outra pessoa em qualquer cidade, pois
vivem o impacto dessa modernização. A verdade é que essa modernização
distante trouxe para estas regiões terror, violência, mortes, massacres,
escravidão.
"Isolar-se" transformando o modo de vida
para o nomadismo, buscando refúgio em regiões distantes nas cabeceiras
dos rios – onde não havia seringa – e evitar aproximação com a sociedade
do entorno é, no fundo, uma estratégia política.
Contato e diplomacia: é preciso respeitar os Xatanawa
Em 1910, o Marechal Cândido Rondon escreveu que “Os
índios não devem ser tratados como propriedade do Estado dentro de
cujos limites ficam seus territórios, mas como Nações Autônomas, com as
quais queremos estabelecer relações de amizade”
As expressões correntes para designar
essas relações diplomáticas e categorizar essas populações, sejam as
correntes da imprensa, ou do governo, ou as da academia, são todas
problemáticas e carregadas de preconceito. Primeiro, a própria ideia de
classificar essas populações diversas em si é um limite e implica numa
tentativa de dominação. Segundo, chamar de “isolados”, ou mesmo
“autônomos”, significa dizer que há aqueles que não estão isolados, ou
seja, nós, uma perspectiva etnocêntrica e preconceituosa, e a ideia de
autonomia exclui toda a pressão externa e o interesse de algumas dessas
por tecnologias, como machados, facões, armas de fogo.
Afinal, essas populações, como os
Xatanawa, vivem mais ou menos onde sempre viveram, podendo ter adaptado
seu território para se proteger das diferentes pressões que surgiram nos
últimos séculos. O fato é que há 77 evidências de existir populações
nessa situação de “isolamento voluntário”, uma situação em que passam a
ser vulnerabilizadas a epidemias a partir do aumento das interações.
Ao longo do século passado, surgiu a
função dos sertanistas como defensores humanitários dos povos indígenas.
Foi o marechal Cândido Rondon quem deu essa conotação para a palavra –
que até então designava os matadores de índios, como os bandeirantes. E a
profissão se tornou uma especialidade do indigenismo para o contato com
povos “arredios”, “bravos”, “isolados”, a partir do trabalho dos irmãos
Villas Bôas na Fundação Brasil Central – que depois em 1967 passou a
fazer parte da Funai, junto do Serviço de Proteção ao Índio.
Em toda a história dos contatos, seja
durante a ditadura, seja antes, os sertanistas, como os Villas Bôas ou
Chico Meireles, trabalhavam em condições sofríveis, com urgência para
evitar o pior. A diplomacia sertanista consistia em se posicionar à
frente das “frentes de expansão” para proteger os índios das guerras
travadas pelos seringalistas, fazendeiros, pecuaristas, garimpeiros, ou
do próprio governo, como no caso da construção de obras de
infraestruturas, tais como a Transamazônica. Em 1987, por iniciativa dos
sertanistas, liderados por Sydney Possuelo, foi criado o Departamento
de Índios Isolados, e os processos de contatos passaram a ser evitados. A
escolha passaria a ser dos povos indígenas. E o Estado brasileiro, por
meio dos sertanistas, deveria realizar a proteção dos territórios para
que essas populações que vivem de forma autônoma do Estado possam
continuar a viver do jeito que desejam.
Essa política, hoje, vive um esgotamento,
ao mesmo tempo que é mais garantida pela Constituição Federal e pela
Convenção 169 da OIT. O esgotamento é que os planos desenvolvimentistas
do governo não são alterados se eles impactam um território habitado por
uma população nessa situação. Cria-se uma terra indígena, destinam-se
recursos, mas se a Coordenação geral de Índios Isolados disser que não é
possível realizar o empreendimento, é difícil imaginar, hoje, que ele
não saia do papel por isso. E há 33 empreendimentos do PAC que impactam
diretamente o território de povos indígenas considerados “isolados”,
desde as usinas de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires, São
Luiz do Tapajós, até estradas e hidrovias. Se o empreendimento for
produzir risco de destruição do território e um consequente genocídio,
ele não deve ocorrer. Acontece que, como declarou o sertanista José
Carlos Meirelles, parece que o Brasil não tem vergonha de acrescentar
genocídios ao seu currículo.
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