Indústria química e ditadura
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Thomaz Ferreira Jensen
É público e notório que as
Forças Armadas agiram com o apoio e a serviço dos interesses da grande
burguesia – os donos das principais indústrias, dos bancos, da grande
mídia empresarial e das grandes propriedades rurais – e do imperialismo –
governo dos Estados Unidos e empresas daquele País com interesses no
mercado brasileiro.
A ABIQUIM congregou, desde o início, as
indústrias químicas nacionais e estrangeiras, que aqui já estavam
instaladas desde os anos 1920. Permitiu, assim, articular os interesses
destas corporações e apresentá-los aos governos da ditadura para obter
financiamento e vantagens desde os primeiros meses do regime
autoritário.
É já fartamente comprovado o engajamento das
principais indústrias químicas, plásticas e farmacêuticas no apoio ao
golpe de abril de 1964 e à ditadura que se seguiu. O excelente
documentário “Cidadão Boilesen”, lançado em 2009 e dirigido pelo
cineasta Chaim Litewski, mostra a estruturação e o financiamento por
empresários e banqueiros paulistas da OBAN (Operação Bandeirantes),
centro de investigações e torturas montado pelo Exército brasileiro em
1969 para combater organizações de esquerda que confrontavam o regime
ditatorial e que geraria, pouco tempo depois, o DOI-CODI (Destacamento
de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna). A
OBAN significou o poder repressivo comandado e financiado diretamente
pelos donos do capital, sem mediações, e executado pelos agentes
fardados do Estado, com inteligência da CIA, a central de espionagem do
governo dos Estados Unidos.
O caso de Henning Boilesen, retratado
no documentário, é exemplar. Dinamarquês naturalizado brasileiro,
trabalhou durante 19 anos no grupo químico Ultra, tendo sido presidente
da Ultragaz. Aproximou-se de grupos militares e paramilitares e, sádico,
costumava acompanhar sessões de tortura na OBAN.
Segundo Elio
Gaspari, em
seu livro “A ditadura escancarada”, a primeira reunião
organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por
Delfim Netto, então ministro da Fazenda, e contou com a participação de
15 empresários e banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco
Mercantil de São Paulo, que era também presidente do clube Paulistano.
Lá, às quintas-feiras, costumava promover almoços com empresários e não
raro convidava Delfim Netto para apresentar análises de conjuntura
econômica. Ao final da palestra, eram recolhidas as colaborações para a
OBAN.
Pery Igel, dono do Grupo Ultra e patrão de Boilesen, foi
certamente um dos mais destacados financiadores da OBAN, ao lado de
Paulo Ayres Filho, dono da Pinheiros Produtos Farmacêuticos e de
executivos das montadoras de automóveis estadunidenses Ford e General
Motors. Boilesen é figura paradigmática, triste representação de outras
tantas dezenas de empresários que apoiaram e financiaram a ditadura, e
que até hoje permanecem anônimos.
Boilesen foi assassinado em 15
de abril de 1971, em São Paulo, numa ação conjunta envolvendo militantes
da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário
Tiradentes). Delfim Netto compareceu ao enterro e levou consigo Roberto
Campos, amigo de ambos.
Delfim participou com destaque de todos
os governos ditatoriais e foi signatário do AI-5 – ato do governo
militar decretado em dezembro de 1968 que fechou o Congresso Nacional e
permitiu ao regime ditatorial acirrar a repressão. Delfim foi o operador
do modelo econômico da ditadura, num contexto em que as corporações
industriais dos Estados Unidos buscavam expandir seu domínio sobre a
América Latina para barrar o avanço da influência política dos países
socialistas, liderados pela União Soviética.
O modelo econômico
da ditadura potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do
período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração
de renda. O Estado tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado
pelas transnacionais e aparato repressivo para sufocar os conflitos
sociais e políticos daí decorrentes.
Heranças deste modelo
sentidas até hoje são a generalizada corrupção, o arrocho salarial – que
o Movimento Sindical procura enfrentar através da política de
valorização do Salário Mínimo e das conquistas salariais nas negociações
coletivas – e a intensa rotatividade de trabalhadores gerada pelo fim
da lei de estabilidade no emprego, em 1966, e que atinge hoje níveis
alarmantes em todos os setores econômicos, incluindo a indústria
plástica e de cosméticos, dentro do segmento químico.
A ditadura
legou uma indústria química estruturalmente dependente de capitais e de
insumos estrangeiros. Apenas em 2013, o déficit comercial da indústria
química para fins industriais, representada pela ABIQUIM, alcançou 32
bilhões de Dólares. E, no mesmo ano, a indústria química, plástica e
farmacêutica, remeteu ao exterior 3,6 bilhões de Dólares a título de
lucros, dividendos e pagamento de empréstimos às suas matrizes,
localizadas, majoritariamente, nos Estados Unidos e na Europa.
Além
disso, a política agrícola da ditadura, pela subordinação da economia
nacional aos interesses do capital estrangeiro, impôs ao Brasil a
“revolução verde” no campo, o que deu as bases para o agronegócio
comandado pelos grandes produtores de commodities, como soja e
milho, pelas transnacionais químicas fabricantes de agrotóxicos e
sementes transgênicas, e pelas corporações que comercializam as
exportações. A ditadura nos legou uma agricultura dependente de
quantidades cada vez maiores de agrotóxicos-venenos que afetam a saúde
do solo, dos trabalhadores rurais e dos consumidores.
De forma
trágica, a ditadura legou centenas de trabalhadores e sindicalistas
torturados, mortos e desaparecidos. 50 anos depois do golpe, permanecem
impunes os assassinos de Olavo Hanssen e Virgílio Gomes da Silva,
mártires da categoria química, símbolos que sintetizam a devastação
provocada pela repressão no meio sindical brasileiro.
Olavo era
trabalhador da Quimbrasil e sócio do Sindicato dos Químicos do ABC,
quando foi capturado pela repressão em 1 de maio de 1970. Levado à OBAN,
foi morto sob tortura, aos 30 anos de idade. Virgílio, nascido no
sertão do Rio Grande do Norte, veio para São Paulo como retirante,
cumprindo a sina de tantas trabalhadoras e trabalhadores químicos.
Militante do Sindicato dos Químicos de São Paulo desde meados da década
de 1950, atuando na região de São Miguel Paulista, zona leste da
capital, organizou os trabalhadores e liderou greves, sobretudo na
Companhia Nitro Química Brasileira. Foi preso por alguns dias em 1964,
quando o Sindicato sofreu intervenção e, a partir de 1967, passou a
integrar a ALN, liderada por Carlos Marighella. Participou de diversas
ações armadas, culminando com o seqüestro do embaixador dos Estados
Unidos, em setembro de 1969, do qual Virgílio foi o comandante militar.
Duas semanas depois, foi capturado pela repressão e levado à OBAN, tendo
sido torturado e assassinado em 29 de setembro, aos 36 anos de idade.
Mais um brasileiro, jovem, da classe trabalhadora, militante sindical,
assassinado pela ditadura. Seu corpo jamais foi encontrado.
A
Comissão Nacional da Verdade, instalada em março de 2012, já manifestou
que pretende investigar os rastros do financiamento da ditadura por
banqueiros e industriais, especialmente da OBAN. Se assim de fato o
fizer, legará um serviço inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje
enfrentam os mesmos grupos econômicos forjados e impulsionados pelo
Estado repressor da ditadura.
Em nome da memória e da verdade, a
indústria química deveria manifestar-se sobre este período, aproveitando
o cinqüentenário da ABIQUIM. Ou ser instada a fazê-lo pela Comissão,
que entregará ao final deste ano relatório de seus trabalhos para a
Presidenta Dilma Rousseff.
O silêncio e a omissão, hoje,
perpetuam a impunidade e mantêm sobre todas as indústrias químicas a
suspeita de cumplicidade com práticas já comprovadas que pesam sobre
empresas específicas.
Thomaz Ferreira Jensen, economista, é membro do conselho consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
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