O separatismo assusta
A decisão da Crimeia de se separar da Ucrânia dá fôlego a movimentos de independência no Reino Unido, Itália, Espanha e Canadá e ameaça a estabilidade da geopolítica ocidental
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)
Faltavam poucos minutos para as 11 horas
de uma manhã quente de junho de 1914 em Sarajevo, a hoje capital da
Bósnia-Herzegovina, quando o jovem separatista Gavrilo Princip disparou
por duas vezes uma pistola semiautomática .380 de fabricação belga
contra o arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do império Austro-Húngaro,
e sua esposa, a duquesa Sofia. Ferdinand foi atingido na veia jugular
e, Sofia, no abdome. Ambos morreram poucos minutos após serem alvejados.
Princip fazia parte de um pequeno mas aguerrido grupo separatista que
lutava apenas pela independência da Sérvia e da Bósnia do Império
Austro-Húngaro, mas que, com seus tiros, fez com que a Europa e o mundo
mergulhassem em um período de instabilidade, crises e guerras, que, em
última instância, duraria mais de 30 anos e mataria quase 100 milhões de
pessoas nos dois maiores conflitos armados da história da humanidade.
CONFRONTO
Russos étnicos, ucranianos e tártaros brigam depois que uma bandeira da
Crimeia é hasteada em Simferopol, capital da península anexada pela Rússia
Agora, às vésperas do aniversário de 100 anos do início da 1ª Guerra
Mundial, um novo movimento em busca de autonomia faz a Europa e o mundo
recordarem como o separatismo pode ser um fator desestabilizador do
statu quo geopolítico e econômico. A decisão da Crimeia de se separar da
Ucrânia e se unir à Rússia obedece a dinâmicas e razões distintas dos
movimentos clássicos de separação – afinal de contas, os habitantes da
península não querem a independência –, mas suas consequências podem ser
tão desastrosas quanto qualquer movimento separatista tradicional. Até
agora, felizmente, a disputa pela Crimeia envolveu apenas ameaças,
blefes e demonstrações de força. A Rússia anexou a região que é
sede
histórica de sua marinha de guerra sem disparar um tiro e as forças
ocidentais, que apoiam a decisão do governo central de Kiev de promover
uma espécie de separatismo cultural e econômico da Rússia, permanecem
apenas na retórica. Isso não significa, no entanto, que as coisas não
possam sair do controle. Como mostra a história, muitas vezes basta
apenas um tiro de pistola para que toda a ordem vigente se desfaça.XADREZ
Enquanto luta contra o separatismo da Tchetchênia
e do Daguestão, Putin apoia a Crimeia
A decisão dos habitantes da Crimeia de escolher por conta própria os
destinos da região em que vivem não tem impacto apenas nos mapas da
Europa Oriental. O sucesso da empreitada dá mais fôlego para diversos
grupos ocidentais que pretendem redesenhar o mapa-múndi. Apenas na
Europa, três países enfrentam, nesse momento, pressão crescente de parte
de seus habitantes por independência. A Escócia decide nos próximos
meses se permanece ou não no Reino Unido; a Catalunha amplia a pressão
para se separar da Espanha; e até a romântica Veneza faz soar os
tambores do separatismo. Do outro lado do Atlântico, a província
canadense de Quebec tenta, mais uma vez, tornar-se o mais novo país
norte-americano. Mais do que nunca, o separatismo mostra não ser um
problema enfrentado apenas por países da África ou da Ásia, como China
ou Sudão, que se dividiu há pouco tempo.
“O interesse de longo prazo da União Europeia é manter a ordem do
pós-guerra, em que as fronteiras são robustas e questões territoriais
não são decididas pela força”, disse à ISTOÉ Jan Techau, diretor do
centro de pesquisas Carnegie Europe, de Bruxelas. “A Crimeia não votou
para ser mais livre, como os movimentos separatistas clássicos, mas para
ser menos livre sob o controle da Rússia. Mesmo assim, a
desestabilização provocada por sua decisão é um pesadelo para o mundo.”
Steven Blockmans, pesquisador do Center for European Policy Studies,
também de Bruxelas, acredita que os líderes europeus, incluindo
Vladimir Putin, devem temer o fôlego renovado dos movimentos
separatistas. “Putin calculou mal o impacto do precedente que a
independência da Crimeia criou para a federação russa”, disse à ISTOÉ.
Dentro de seu território, no Cáucaso do Norte, movimentos insurgentes na
Tchetchênia e no Daguestão reivindicam sua própria independência. “Não
existe país no mundo que aceite perder terra”, afirma Leonardo Paz,
diretor do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. “O separatismo
envolve o medo de perder poder, recursos naturais, impostos e
população.”
RETÓRICA
Apesar das ameaças, Estados Unidos e União Europeia
apenas decretaram brandas sanções à Rússia
Antes da Crimeia, a última separação que ocorreu no continente
europeu foi traumática. Com quase dois milhões de habitantes, a grande
maioria de origem étnica albanesa, o Kosovo recebeu apoio da Otan, braço
militar das potências ocidentais, numa guerra para se separar da
Sérvia, que provocou mais de 10 mil mortes. Em 2008, o Kosovo declarou
unilateralmente sua independência, mas países como Rússia e China não
reconheceram seu novo status. A justificativa usada pelo Ocidente para
se sobrepor à soberania nacional, neste caso, era a de um cenário de
opressão aos albaneses, com graves violações aos direitos humanos e
faxina étnica. Em 2010, a Corte Internacional de Justiça, vinculada à
ONU, declarou que a separação teve respaldo legal. A prevalência da
integridade territorial sobre o princípio da autodeterminação dos povos é
seguida pelo Itamaraty e, por isso, as declarações do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil em relação à intervenção da Rússia na
Crimeia têm sido cautelosas.
MOTIVAÇÃO
Grupo separatista sérvio deu início à 1ª Guerra Mundial
Embora os argumentos econômicos tenham importância central no debate,
no cerne do separatismo estão as raízes culturais, étnicas e históricas
e um sentimento de identidade. Em Veneza, capital do Vêneto, região ao
norte da Itália, há uma série de iniciativas criadas para a conquista de
sua independência e a volta da Sereníssima República de Veneza.
Soberana até o século 18, quando foi tomada pelo expansionismo do
imperador francês Napoleão Bonaparte, a República de Veneza era
governada por um doge, auxiliado por um conselho de notáveis, e foi
rival de Gênova no mar e do Ducado de Milão em terra. Capital do estilo
barroco na música, de onde se sobressaíram as figuras dos compositores
Antonio Lucio Vivaldi, Alessandro e Benedetto Marcello, Veneza inspira
saudade de uma época de efervescência cultural. Na semana passada, do
domingo 16 à sexta-feira 21, milhares de pessoas participaram de um
plebiscito online que perguntava aos venezianos se eles queriam que o
Vêneto se tornasse uma república federal independente e soberana. Outros
grupos trabalham paralelamente recolhendo assinaturas para serem
enviadas à União Europeia e desenvolvendo projetos políticos que
reconheçam aos venezianos o direito de autodeterminação.
FORÇA
Sem entrar em combate, tropas russas tomaram as bases navais da Ucrânia na Crimeia
“A região do Vêneto é usada pelo governo central como uma colônia a
ser explorada”, disse à ISTOÉ Alessio Morosin, cofundador e líder do
movimento Indipendenza Veneta. Para os separatistas, a carga de impostos
paga pelos venezianos é desleal. Eles argumentam que o governo de Roma
recolhe todos os anos da região, com quase 5 milhões de habitantes, 70
bilhões de euros em tributos e, em troca, ela recebe serviços públicos
no valor de 50 bilhões de euros. “Nós damos 20 bilhões de euros de graça
para um Estado central falido, que criou uma dívida pública de 2,1
trilhões de euros”, afirma Morosin, que está envolvido na luta pela
independência há 20 anos. “Nossos negócios fecham, nossos empresários
cometem suicídios no desespero, os jovens fogem para o Exterior. A
situação é insustentável.” O Indipendenza Veneta convocou para o domingo
23, em Pádua, uma manifestação em apoio ao projeto de lei 342, que
determina que a independência deve ser decidida pelos próprios
venezianos, sem consulta a outras regiões da Itália.
Por mais legítimo que possa parecer o direito de uma maioria decidir
seu alinhamento político, de acordo com seu senso de identidade, como
aconteceu na Crimeia, a prerrogativa de autodeterminação é limitada no
direito internacional. Há um consenso de que isso só pode ocorrer dentro
de um processo democrático, transparente e aceito pelo governo central,
como acontece no Reino Unido. Marcado há dois anos, depois de uma longa
negociação entre o parlamento escocês e o britânico, um referendo de
uma única questão deve decidir sobre a separação da Escócia em setembro.
Uma pesquisa da consultoria Ipsos Mori de março mostrou que 57% dos
escoceses votarão pelo não, influenciados pelas consequências econômicas
do rompimento com Londres. O debate público fez até as celebridades
darem seus palpites. Histórico ativista pró-independência, o ator Sean
Connery, nascido em Edimburgo, declarou: “Essa oportunidade é muito boa
para ser perdida.” O cantor David Bowie pediu, em contrapartida, ao
receber um prêmio em fevereiro: “Escócia, fique conosco”. Oficialmente, o
governo britânico diz que a “Escócia é mais forte dentro do Reino Unido
e que o Reino Unido é mais forte com a Escócia.” Mas o
primeiro-ministro, David Cameron, tem adotado um discurso mais
agressivo. O premiê conservador já alertou que, uma vez independente, a
Escócia não poderá mais usar a libra esterlina e vai esbarrar em
dificuldades para entrar na União Europeia.
A Espanha tem especial interesse em atrapalhar a adesão de novos
Estados independentes ao bloco europeu. De norte a sul, diversos
movimentos separatistas convivem em seu território. Não por acaso, o
primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, tem bloqueado todas as
tentativas da região autônoma da Catalunha de promover seu próprio
referendo, apesar de metade da população concordar com a soberania de
Barcelona. Com o agravamento da crise econômica na Espanha, onde o nível
de desemprego, em 26%, é o dobro da média da zona do euro, o apoio à
independência só cresceu. A Catalunha é altamente industrializada e
calcula que 43 centavos de cada euro pago em impostos ao governo central
não são revertidos para a região. Em novembro, os catalães votarão num
referendo mesmo sem o consentimento de Madri, que denuncia a ação como
inconstitucional. Isso não impede o avanço de medidas para a fundação de
um novo Estado. No fim de fevereiro, por exemplo, o governo catalão
criou uma nova agência de coleta de tributos e a classificou como um
“embrião” para uma futura autonomia fiscal.
Instabilidade
Fora da Europa, o separatismo também entrou para a agenda. No Canadá,
o Parti Québécois, liderado por Pauline Marois, coloca como seu
principal objetivo fazer da província de Quebec um país. Com mais de 8
milhões de habitantes, que majoritariamente usam o francês como primeiro
idioma, Quebec é a segunda província mais populosa do país. De acordo
com os separatistas, quando livre, o Quebec garantirá a continuidade dos
serviços oferecidos pelo governo federal, mas poderá reinvestir seus
impostos de acordo com suas escolhas e valores, modernizar seu sistema
político, incentivar a produção de energia hidrelétrica e se libertar da
importação do petróleo. O partido propõe manter o dólar canadense como
moeda oficial e influenciar a política monetária com um assento no
conselho do banco central, mas é incerto se Ottawa permitiria isso. A
participação de Quebec no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio
(Nafta), bloco econômico de Canadá, México e Estados Unidos, seria
discutida. Já houve dois referendos sobre a independência, em 1980 e
1995, que rejeitaram a proposta dos separatistas, mas o último teve uma
diferença de pouco mais de um ponto percentual, o que alimenta a
esperança de um resultado favorável agora.
Ainda é cedo para saber se a nova onda de separatismo que aflora no
Ocidente vai, de fato, redefinir as fronteiras em áreas que pareciam
fadadas a uma estabilidade perene, como na Europa Ocidental do
pós-guerra. Mas uma coisa parece certa. O eterno desejo de independência
dos povos continuará sendo um componente importante de instabilidade no
mundo.
Fonte: http://www.istoe.com.br/reportagens/353593_O+SEPARATISMO+ASSUSTA?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage
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