Não toque na minha puta
O PL, proposto por deputadas socialistas, deve ser discutido na 
Assembleia Nacional francesa em 27 de novembro. Ao justificar a 
importância de sua aprovação, as deputadas afirmaram que “a interdição da compra de um ato sexual é hoje a medida mais eficaz para reduzir a prostituição e dissuadir as redes de tráfico“.
Para os homens, “cada um tem o direito de vender livremente seus 
encantos – e mesmo de amar fazer isso. Nós nos recusamos que os 
deputados estabeleçam as normas de nossos desejos e de nossos prazeres”.
 Segundo o 
texto divulgado por eles, “não amamos nem a violência, nem a 
exploração, nem o tráfico de seres humanos. E nós esperamos que o poder 
público faça todos os esforços para lutar contra as redes e punir os 
cafetões. Nós amamos a liberdade, a literatura e a intimidade. E quando o
 Estado toca em nossas bundas, as três estão em perigo. Hoje é a 
prostituição, amanhã a pornografia: o que vão proibir depois de amanhã?”
O manifesto ainda traz uma provocação óbvia e direta às feministas: a
 escolha de 343 pessoas não é aleatória. Ela remete ao “Manifesto das 
343 putas” (ou vadias, cadelas, a depender da tradução), publicado em 
abril de 1971 pela descriminalização do aborto e assinado por Simone de 
Beauvoir, Christine Delphy, Agnès Varda e Marguerite Duras, entre 
outras.
“Qual filiação podem ter conosco, as ‘putas’ que reclamaram a 
liberdade proibida de dispor sobre nossos corpos, esses ‘bastardos’ que 
reclamam hoje a liberdade de dispor, mediante remuneração e sem 
penalidade, do corpo de certas mulheres? No primeiro caso, trata-se de 
acabar com uma opressão, no segundo, de reconduzi-la. E tudo em nome do 
mesmo conceito: a liberdade. Onde está a falha?”, questiona Anne Zelensky, presidenta da Liga pelos Direitos das Mulheres.
Existem aí duas questões em discussão: a primeira, óbvia, é 
criminalizar ou não a prostituição; a segunda é quem são os atores 
políticos envolvidos nesse manifesto. E uma está diretamente imbricada 
na outra.
Quando os homens dizem “não toque em MINHA puta”, que tipo de relação
 de poder está estabelecida? Da forma como eles colocam, a impressão que
 fica não é de defesa da liberdade, mas sim de um discurso de quem 
“possui” a outra pessoa e que se acha apto a decidir sobre seu 
futuro. Ou seja, de quem quer manter seu poder sobre essas mulheres, 
independentemente de como elas estão sobrevivendo nas ruas, quem são 
seus cafetões, se elas são estupradas com frequência, a quem recorrem 
quando sofrem alguma situação de violência etc.
Assim, ao falarem sobre a “sua” puta, 
eles não estão estabelecendo com elas uma relação mercantil. Não estamos
 discutindo as condições de um “cliente” adquirir um “serviço” de seu 
“fornecedor”. O sub-texto aí é não é de compra e venda de mercadoria. É 
de propriedade. Muitas teóricas feministas já demarcaram essa relação, 
com destaque especial para Colette Guillaumin: estamos diante de um 
sistema hierárquico de relação de poder, que prevê a apreensão da mulher
 como um todo, sejam prostitutas, sejam donas de casa.
Ademais, eles reclamam que as pessoas devem poder “vender seus 
encantos”, o que soa como uma visão romântica exacerbada do que seria a 
profissão de prostituta. Algo que beira o “mas elas gostam”, que sai da 
boca de tanta gente que discute o assunto de uma maneira 
assustadoramente simplificada.
As prostitutas, as mais interessadas no tema, também criticaram o 
manifesto, declarando-o machista. Elas são contra a lei, claro, porque 
isso prejudicará os negócios, mas não admitem serem tratadas como 
propriedade de ninguém: “nós não somos putas de ninguém, muito menos de 
vocês”, afirmou Morgane Merteuil, do Sindicato dos Trabalhadores do Sexo.
Para Merteuil, o manifesto das 343 mulheres a favor do aborto 
desafiava as leis e a ordem moral, com grandes riscos não só de serem 
estigmatizadas como também de sofrerem repressão penal, além, claro, de 
arriscarem suas vidas ao interromper gestações indesejadas de forma 
clandestina. “O que arriscam esses 343 clientes hoje? Nada”, diz.
Merteuil continua, com uma lucidez ímpar: “Desprezível sua recusa em 
reconhecer seus privilégios e seu discurso anti-feminista, que gostaria 
de nos fazer crer que vocês são as pobres vítimas do progresso 
feminista: vocês defendem a sua liberdade de nos foder, nós defendemos 
nosso direito de não morrer. A penalização dos clientes condena inúmeras
 mulheres ainda mais à clandestinidade e certamente não é um progresso 
feminista, e é por isso que nós, putas, nos opusemos à ela. Porque somos
 nós, putas, que somos estigmatizadas e insultadas no cotidiano porque 
vender os serviços sexuais não é considerada uma maneira ‘digna’ de 
sobreviver. Nós, putas, que sofremos cada dia os efeitos da repressão. 
Nós, putas, que arriscamos nossa vida como clandestinas nessa sociedade 
que só pensa em nos abolir. Então não invertam os papéis, e parem de 
posar de vítima quando sua possibilidade de ser cliente não é mais do 
que uma prova do poder econômico e simbólico que vocês dispõem nessa 
sociedade patriarcal e capitalista”.
 Fonte:http://mairakubik.cartacapital.com.br
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