Dos fins do Estado: De socialismo e social-democracia
Carta Capital – Políticapor Roberto Amaral
Todo Estado é um Estado-processo, um Estado-construção, um molde sem modelo.
A democratização da sociedade começa com a democratização do Estado, revertendo sua vocação antipovo e autoritária
A questão do caráter do Estado, mormente em países com as
características brasileiras, entre as quais destaco o movimento (aí
implícita a mobilidade econômico-social) em oposição ao congelamento,
não é de limitação aritmética (grande ou pequeno) mas, de conteúdo
finalístico, definido na resposta a uma simples pergunta: a serviço de
quem ele está posto?
O Estado é, sempre, servidor da classe dominante, assim identificada como detentora dos meios de produção.
Esta sentença encerra uma verdade, mas não encerra a verdade toda,
pois o Estado capitalista, democrático ou não, é permeado de classes e
contradições entre classes e mesmo no interior da classe que exerce o
poder de Estado, e nesses espaços podem atuar as mais diversas forças,
inclusive as que lhe são antagônicas. Ainda bem. Pois, se tomada a
sentença marxista (Manifesto comunista e
A ideologia alemã) no seu sentido tout court nada
mais teríamos por fazer, a revolução seria impossível, a política
estaria morta e, aí sim, a História não teria mais caminho a percorrer.
A realidade, porém, é o movimento, isto é, sem História própria, o
Estado é uma construção do processo social. Por isso mesmo, ainda sob a
égide do capitalismo, inexiste um modelo de Estado pronto e acabado;
todo Estado, ademais de preservar determinadas características que lhe
são próprias, dele e do capitalismo, é um Estado-processo, um
Estado-construção, um molde sem modelo.
Doutra forma não haveria explicação para as transformações
estruturais que vêm sofrendo os Estados principalmente nos últimos
séculos, e de particular após a Revolução de 1917, quando o ‘espectro do
comunismo’ no poder levou o capitalismo a promover inumeráveis
concessões ao pensamento social latu senso, e, muito
especialmente, às ideias e aos ideais socialdemocratas e socialistas,
por muitas décadas dominantes nas sociedades ocidentais.
O Estado, produto histórico e social, é organismo vivo no mais
rigoroso dos sentidos; sem negar sua origem, e os interesses que
representa, possui a capacidade, mais que camaleônica, de se adaptar,
seja ou não em um processo evolutivo, à nova realidade condicionada por
uma nova coalizão de forças dentro de um sistema que compreende uma
fonte dominante, material e economicamente. Esse contínuo processo de
adaptação, que implica concessões a classes e segmentos de classes
dominados, visa não só a preservá-lo, a garantir sua continuidade, mas a
assegurar essa preservação e essa continuidade em benefício do que, de
agora em diante chamaremos de classes dominantes. Embora as classes dominantes sejam
sempre preservadas, em seu império, esse processo interno, determinado
também por ações e pressões externas, enseja a contaminação do
organismo estatal por idéias e interesses contraditórios, e,
dialeticamente, na medida em que abre espaço a tal contágio, o Estado
de classes garante sua preservação, como se se alimentasse da energia do
outro.
A luta da socialdemocracia clássica (assim denominada para
distinguir-se da aberração tucana, uma socialdemocracia convertida ao
evangelho neoliberal que discursa a favor das privatizações e da
desregulamentação da economia, mesmo após a crise financeira dos EUA que
abalou o capitalismo mundial), a luta pelas reformas, pela melhoria da
qualidade de vida dos trabalhadores (emprego, condições dignas de
trabalho, previdência, descanso semanal remunerado, direito de greve,
livre sindicalização etc.) no próprio quadro do regime capitalista,
constitui, senão a única, a mais consentânea com as condições concretas
de luta.
A partir deste ponto, porém, socialistas e socialdemocratas se
separam. Se, para esses, a luta dentro das condições herdadas é sua
justificativa, pois seu objetivo é a ‘pacificação’ do conflito social,
uma assimilação da classe operaria pela ordem social dominante, para os
socialistas, que lutam pela imediata melhoria das condições de vida
dos trabalhadores, essa mesma luta (embora implique avanços), nessas
mesmas condições, é, apenas, meio, degrau a ser historicamente
ultrapassado (no sentido da superação), pois a finalidade da luta
socialista é a conquista do poder para a realização da revolução social,
de que a conquista do governo (com a qual se conforma a
socialdemocracia) é só uma etapa, primeiro passo. Dito nas palavras de
Rosa de Luxemburgo, reformas são o meio, a revolução social (leia-se
socialismo), o fim. Enquanto essa não é possível, luta-se por aquelas.
Assim, sem perder de vista a visão de longo prazo, o socialista
revolucionário, mirando o horizonte, se transforma em reformista.
Cumpre-lhe a reforma do Estado burguês, pondo-o a serviço de um número
crescentemente maior de assalariados, o povo-massa das democracias
ocidentais. Essa é a real politik.
Uma especificidade, portanto, é o Estado nos regimes capitalistas
democráticos, os quais têm de atender a reivindicações populares
variadas, nada obstante permanecerem servidores das exigências do
capital, ou seja, em conflito com os interesses do trabalho. A classe
dominante é obrigada a aceitar a convivência com o poder
‘contrabalanceador’ da classe operária latu senso, e de outras
organizações civis, intelectuais, pequenos empresários, pequenos
proprietários etc. Nessas sociedades, a dominação de classe não se dá
exclusivamente pela coerção, mas também pelo consentimento, processo de
que tanto participam o Estado quanto outras instituições da sociedade,
donde a afirmação de Gramsci, inovando o marxismo, de que o Estado é força mais consentimento,
mas esse consentimento, ousamos acrescentar, também é ou pode ser
instrumento de dominação e de continuidade do poder burguês. Nesse
Estado, o domínio de classe não se efetiva tão-só como resultado da
organização específica da força, mas pela sua capacidade de avançar
sobre seus estreitos interesses corporativos, “exercendo uma liderança
moral e intelectual e fazendo concessões dentro de certos limites, a uma
variedade de aliados unificados num bloco social de forças” que o
autor de Quaderni del carcere chama de ‘bloco histórico’.
Nas formações capitalistas democráticas (‘ocidentais’, em oposição às
formações ‘orientais’, nas quais há o predomínio do ‘Estado-coerção’),
seguimos Gramsci, a luta dos socialistas deverá travar-se,
prioritariamente, na sociedade civil, numa ‘guerra de movimento’, cujas
batalhas visam ‘à conquista de posições e de espaços (‘guerra de
posições’), da direção político-ideológica e do consenso dos setores
majoritários da população, como condição para o acesso ao poder e para
sua posterior conservação’ (Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político).
Mas o que é a conquista de posições para a ocupação de espaços, pelos
socialistas, na estrutura estatal? Tudo, menos a sinecura, a
auto-adesão ao statu-quo, ao congelamento, a renúncia ao movimento.
De par com a adesão dos socialistas à luta política tradicional, nela
dando preeminência às reformas que possam cimentar a construção do novo
Estado, donde um processo que implica a conquista progressiva de
posições para atuar nas contradições, escreve-se o compromisso com a
democracia em seu sentido clássico, adesão e processo que abrem caminho a
uma nova hegemonia.
No quadro brasileiro de hoje, a tarefa dos socialistas é consolidar
e aprofundar, fazer avançar, as conquistas – tanto políticas quanto
econômicas e sociais — herdadas das lutas de muitas décadas. Ao centro
dos nossos interesses retornam as questões nacional e democrática,
transformando o povo-objeto em povo-ícone, o povo-real, o povo-legítimo,
titular da soberania, presentemente usurpada pelas elites dominantes,
pelo poder econômico, por instituições e organismos e empresas
multinacionais desapartadas da soberania, pelos meios de comunicação,
anti-massa, antipovo, anti-nação.
A questão democrática, prioridade do movimento socialista, todavia,
conjuga-se com a emergência das grandes massas, dependente do
desenvolvimento econômico do país, único instrumento possibilitador da
produção e distribuição de riqueza e renda, canal que leva ao exercício
da cidadania plena e à soberania nacional, sem as quais jamais seremos
uma civilização, como pretendemos, e um Estado autônomo, como
precisamos.
A democratização da sociedade começa com a democratização do Estado,
revertendo sua vocação antipovo e autoritária, isto é, rompendo com a
persistente dicotomia entre Casa Grande e Senzala, senhor e servidor,
sujeito e objeto, possuidor e possuído. Democratizar o Estado é também
pô-lo para funcionar. Nossas elites pervertidas clamam pelo ‘Estado
mínimo’ porque sua inação só prejudica aos pobres aqueles que
efetivamente precisam de transporte público de massa eficiente e
gratuito (que as elites não reclamam por disporem do transporte
individual), da escola pública universal e de qualidade (de que não
carece a classe média, servida pela escola privada), que requer
professores bem preparados e bem pagos, do serviço universal e eficiente
de saúde no seu sentido mais amplo, o que requer mais médicos e médicos
bem preparados e bem pagos, do saneamento básico que não chega nem à
periferia nem aos bairros populares, de segurança pública e de polícia
cidadã. Um Estado desburocratizado, um serviço público democrático,
significam a transição do Estado-snowden, ou orwellliano, para o Estado
democrático-participativo, indutor do desenvolvimento. Um Estado
transitando permanentemente da democracia representativa para a
democracia participativa. Esse é o Estado que almejamos, o Estado
possível mesmo nas circunstâncias atuais.
Fonte: Carta Capital Online.
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