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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ivan, o temível - A revolução russa (parte II)

A revolução russa (parte II): as forças desconhecidas e o terror como método.

Manhã de sol, nada para fazer, cesta de frutas ao lado e o avô que entra apressado.

“Pronta para a viagem?”
“Sim”. Repassa as informações e as datas:
Em 862, o príncipe viking Rurik funda a cidade de Novgorod e inicia a dinastia que governaria a nação até o último dos Romanov. Em 882, Oleg, o príncipe, move a capital para Kiev, proíbe que se pague os 10% de impostos extorquidos pelas clãs turco-otomanas e khazares e funda a Kievan Rus. Em 945, o príncipe guerreiro Sviatoslav I expande a Kievan Rus através de campanhas militares impressionantes, provoca a queda dos impérios Khazar e Búlgaro e entra em confronto com o Império Bizantino. O imperador Constantino VII manda matá-lo. Sviatoslav I, cujo nome teria raízes linguísticas que poderiam significar “sagrado” e ”glória” em nórdico antigo, morre assassinado em 972 e é sucedido por um de seus filhos, Vladimir.
reprocessada a partir de pintura do State Historical Museum, Moscou, Rússia. Autor desconhecido, princípio do século XVIII.  (Foto: Marcia Ramalho)
Vladimir, filho natural de Sviatoslav com uma camareira, mata o próprio irmão, que era o legítimo herdeiro, e toma posse em 980. Tenta reformar os costumes eslavos e provoca profunda indignação entre os súditos. Em 989, decidido a impor uma religião à Kievan Rus, ouve relatos de seus enviados ao Oriente e Ocidente sobre as principais religiões e escolhe o Cristianismo Ortodoxo porque é dito que as igrejas de Bizâncio são as mais belas. 
Abandona o paganismo e as 800 concubinas e deixa-se batizar. Ao seu lado, o Império Khazar pagão fizera o mesmo mas escolhe o Judaísmo. Vladimir morre em 1015 e um ano depois as forças russas, combinadas com as bizantinas, capturam Georgius Tzul, o imperador da Khazaria. O reino dos brutais guerreiros nômades, que já fora o mais extenso do mundo, é extinto. A elite khazar abandona a região que os rios Volga e Don cortam em forma de cruz até o Cáucaso. Espalha-se pelo mundo. Leva com ela a religião que adotara, um judaísmo que incluía sacrifícios rituais como os de origem pagã.
A partir de 1222, todo o território da Kievan Rus sofre o inesperado ataque de forças desconhecidas vindas do Leste.
“Ninguém sabia sua origem ou de onde vinham ou que religão
praticavam ou o nome de sua tribo. Subitamente estavam diante de nós e dificilmente podíamos nos defender. Exércitos numerosos desciam como gafanhotos e atacavam nossos campos. Estes bárbaros eram tão qualificados como guerreiros e tão implacáveis e desumanos que a nossa resistência era inútil”, diz um cronista da época.
É a Horda Dourada. Mais de 150 mil arqueiros a cavalo, liderados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. Invadem para saquear, destruir, matar, sequestrar e escravizar. A Rússia sofre um atraso de 200 anos em relação à Europa em razão da subjugação imposta pelos tártaros. A Horda Dourada fragmenta-se em 1502 e forma vários khanatos mongóis na Rússia. A sociedade recebe a profunda e sombria influência destes bárbaros e deixa-se manter em completa servidão. Ignorante e sem nenhuma curiosidade intelectual.
A população torna-se apática. Acostuma-se ao sistema totalitário. A aristocracia russa de caráter hereditário começa a ser substituída por famílias de origem mongol. Punições cruéis, a utilização de tortura e brutais execuções para os acusados de crimes e traição tornam-se a norma.
Trezentos anos depois, Ivan, o Terrível, perde o pai ainda criança, a mãe é envenenada. O pai e o avô haviam sido grande governantes mas os corruptos boiardos (nobres russos) que o cercam esmeram-se em destruir as reformas. Ele cresce solitário e humilhado, cercado por violência e abusos dentro do palácio e obrigado a assistir sessões de tortura e assassinatos.
Coroa a si mesmo aos 16 anos como o primeiro Tzar (César) de Todas as Rússias e com 22 anos derrota os tártaros da Criméia e esmaga os mongóis do Khanato de Kazan e Astrakhan, seus inimigos mortais. Adota a águia bicéfala dos bizantinos e a coroa dos romanos como símbolo de poder. Conquista o Khanato da Sibéria em 1552 e reina sobre 4 milhões de quilômetros quadrados de um estado multi-étnico e multi-religioso.
Revisa o código de leis, introduz o auto-governo nas regiões rurais, constrói estradas, revitaliza a economia, moderniza a gestão e a sociedade russa. Traz de volta a paz e a prosperidade. Seus embaixadores recrutam professores, filósofos e pesquisadores na Europa. Instala a primeira tipografia no país. Escolhe a bela e educada Anastasia Romanov para casar-se.
Em 1553 morre Dimitri, seu primogênito e herdeiro. Um terrível incêndio destrói a cidade de Moscou e os inimigos do czar apontam membros da família imperial como os culpados. Em 1560 morre Anastasia, sua adorada mulher, e ele suspeita que foi envenenada. Ele próprio sofre uma doença quase fatal e vê indícios de que os nobres conspiram para destroná-lo.
O desgosto é profundo. Há uma súbita e inexplicável mudança de personalidade e de políticas de governo. Em 1564 deixa Moscou secretamente, avisa que irá abdicar. A multidão implora que volte.
Ele volta mas está diferente. Agora protegido por uma guarda pessoal sinistra, formada por 6.000 criminosos vestidos de preto que espalham o terror montados em cavalos negros, ele outorga-se poder absoluto, centraliza o governo e manda executar todos aqueles que o desagradam. Esta polícia, a “oprichniki”, realiza repressão em massa, torturas, execuções públicas e confisca terras aos aristocratas.
Torna-se um estado dentro do estado. O terror dura 7 anos e o objetivo é destruir qualquer possibilidade de desafiar o poder central. A nobreza hereditária é extinta ou exilada. Ivan ordena a construção da Catedral de São Basílio e, para que não se faça outra igual, manda cegar os arquitetos. Em 1570 lidera pessoalmente o violento e cruel massacre da rica cidade de Novgorod. Ele dura 5 semanas e 60,000 morrem.
Mulheres e crianças são lançadas sob placas de gelo do rio Volkhov. Aquelas que conseguem vir à tona, são mortas por lanças e machados. Em Novgorod vivia um primo da mesma dinastia Rurik. Ivan manda  executar toda a família.  Em 1581 mata o próprio filho, um herdeiro altamente qualificado. Três anos depois, morre envenenado por altas doses de mercúrio enquanto joga xadrez. É o fim de 37 anos de poder absoluto.
Como muitas terras haviam sido desapropriadas pela “oprichniki” ou abandonadas pela população em fuga, o desabastecimento instala-se. Entre 1601-1603, dois milhões de pessoas morrem de fome. A Rússia perde um terço da sua população. A dinastia Rurik está extinta e a casa Romanov emerge. É o início de uma nova era de turbulências.
Cem anos depois, Pedro, o  Grande, lidera uma dramática revolução administrativa e cultural e transforma o estado medieval russo na maior liderança política e científica da Europa. Surgem os primeiros reacionários. Rebeliões explodem contra as inovações e são debeladas com mão de ferro. Inaugura a primeira base naval russa em 1698, na histórica baía de Taganro. Interessa-se por estratégia militar e cria a Marinha Imperial Russa para resistir ao Império Otomano.
Combate a burocracia. Em 1699, muda a data de celebração do Ano Novo de 1 de Setembro para 1 de Janeiro e troca o velho calendário russo pelo gregoriano: o ano de 7207 transforma-se em 1700. Para proteger as terras recém conquistadas no delta do rio Neva, constrói a fortaleza de “Peter and Paul”. Estamos em 1703. É o nascimento da cidade de São Petersburgo, um triunfo de engenharia sobre o que era antes apenas lama e areia movediça. Milhares de servos carregam as necessárias toneladas de terra. Muitos morrem.
O Tzar ordena que os ricos mercadores e intelectuais moscovitas mudem para São Peterburgo, agora cortada por dezenas de canais. Surge a “Veneza do Norte”. Transforma-se em capital. Em 1714, obriga todas as crianças da nobreza a serem educadas desde cedo, especialmente na área de ciências. Todos os oficiais menos graduados devem aprender matemática e geometria.
Funda a Academia Russa de Ciências, peça fundamental na revolução cultural e científica que transformaria a Rússia medieval na maior potência européia.  Em 1722 cria a “Table of Ranks” e extingue os privilégios de nascimento da aristocracia russa. Institui a meritocracia, que prossegue até 1917, quando o Palácio de Inverno é tomado e toda a família imperial, assassinada pelos bolcheviques.
“Então não era só pelo lucro que eles matavam”, diz a menina. E olha para os lados. O avô não está mais na sala, quem responde é uma das máquinas:
“Era o terror como método. O terror das “oprichniki” de Ivan IV e o “terror vermelho” de Stalin tinham a mesma natureza.  E Stalin também morreu envenenado”.
A máquina prossegue, em volume mais baixo: “Segundo o historiador russo Ruslan Skrynnikov, “quando se está sob a ameaça de terror em massa e o medo de denúncias, a violência adquire uma influência esmagadora sobre as estruturas políticas de poder. A máquina infernal do terror escapa ao controle de seus criadores e as vítimas finais passam a ser todas aquelas que apoiaram e participaram do seu nascimento”.
A menina não ouve. Está longe. Admira pássaros de prata no magnífico céu azul.

Ivan, o temível. Por Marcia Ramalho

 
 
Fonte: http://epoca.globo.com

 

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