A revolução russa (parte II): as forças desconhecidas e o terror como método.
Manhã de sol, nada para fazer, cesta de frutas ao lado e o avô que entra apressado.
“Pronta para a viagem?”“Sim”. Repassa as informações e as datas:
Em 862, o príncipe viking Rurik funda a cidade de Novgorod e inicia a dinastia que governaria a nação até o último dos Romanov. Em 882, Oleg, o príncipe, move a capital para Kiev, proíbe que se pague os 10% de impostos extorquidos pelas clãs turco-otomanas e khazares e funda a Kievan Rus. Em 945, o príncipe guerreiro Sviatoslav I expande a Kievan Rus através de campanhas militares impressionantes, provoca a queda dos impérios Khazar e Búlgaro e entra em confronto com o Império Bizantino. O imperador Constantino VII manda matá-lo. Sviatoslav I, cujo nome teria raízes linguísticas que poderiam significar “sagrado” e ”glória” em nórdico antigo, morre assassinado em 972 e é sucedido por um de seus filhos, Vladimir.
Vladimir, filho natural de Sviatoslav com uma camareira, mata o próprio
irmão, que era o legítimo herdeiro, e toma posse em 980. Tenta reformar
os costumes eslavos e provoca profunda indignação entre os súditos. Em
989, decidido a impor uma religião à Kievan Rus, ouve relatos de seus
enviados ao Oriente e Ocidente sobre as principais religiões e escolhe o
Cristianismo Ortodoxo porque é dito que as igrejas de Bizâncio são as
mais belas.
Abandona o paganismo e as 800 concubinas e deixa-se batizar. Ao seu
lado, o Império Khazar pagão fizera o mesmo mas escolhe o Judaísmo.
Vladimir morre em 1015 e um ano depois as forças russas, combinadas com
as bizantinas, capturam Georgius Tzul, o imperador da Khazaria. O reino
dos brutais guerreiros nômades, que já fora o mais extenso do mundo, é
extinto. A elite khazar abandona a região que os rios Volga e Don cortam
em forma de cruz até o Cáucaso. Espalha-se pelo mundo. Leva com ela a
religião que adotara, um judaísmo que incluía sacrifícios rituais como
os de origem pagã.
A partir de 1222, todo o território da Kievan Rus sofre o inesperado ataque de forças desconhecidas vindas do Leste.
“Ninguém sabia sua origem ou de onde vinham ou que religão
praticavam
ou o nome de sua tribo. Subitamente estavam diante de nós e dificilmente
podíamos nos defender. Exércitos numerosos desciam como gafanhotos e
atacavam nossos campos. Estes bárbaros eram tão qualificados como
guerreiros e tão implacáveis e desumanos que a nossa resistência era
inútil”, diz um cronista da época.
É a Horda Dourada. Mais de 150 mil arqueiros a cavalo, liderados por
Batu Khan, neto de Gengis Khan. Invadem para saquear, destruir, matar,
sequestrar e escravizar. A Rússia sofre um atraso de 200 anos em relação
à Europa em razão da subjugação imposta pelos tártaros. A Horda Dourada
fragmenta-se em 1502 e forma vários khanatos mongóis na Rússia. A
sociedade recebe a profunda e sombria influência destes bárbaros e
deixa-se manter em completa servidão. Ignorante e sem nenhuma
curiosidade intelectual.
A população torna-se apática. Acostuma-se ao sistema totalitário. A
aristocracia russa de caráter hereditário começa a ser substituída por
famílias de origem mongol. Punições cruéis, a utilização de tortura e
brutais execuções para os acusados de crimes e traição tornam-se a
norma.
Trezentos anos depois, Ivan, o Terrível, perde o pai ainda criança, a
mãe é envenenada. O pai e o avô haviam sido grande governantes mas os
corruptos boiardos (nobres russos) que o cercam esmeram-se em destruir
as reformas. Ele cresce solitário e humilhado, cercado por violência e
abusos dentro do palácio e obrigado a assistir sessões de tortura e
assassinatos.
Coroa a si mesmo aos 16 anos como o primeiro Tzar (César) de Todas as
Rússias e com 22 anos derrota os tártaros da Criméia e esmaga os mongóis
do Khanato de Kazan e Astrakhan, seus inimigos mortais. Adota a águia
bicéfala dos bizantinos e a coroa dos romanos como símbolo de poder.
Conquista o Khanato da Sibéria em 1552 e reina sobre 4 milhões de
quilômetros quadrados de um estado multi-étnico e multi-religioso.
Revisa o código de leis, introduz o auto-governo nas regiões rurais,
constrói estradas, revitaliza a economia, moderniza a gestão e a
sociedade russa. Traz de volta a paz e a prosperidade. Seus embaixadores
recrutam professores, filósofos e pesquisadores na Europa. Instala a
primeira tipografia no país. Escolhe a bela e educada Anastasia Romanov
para casar-se.
Em 1553 morre Dimitri, seu primogênito e herdeiro. Um terrível incêndio
destrói a cidade de Moscou e os inimigos do czar apontam membros da
família imperial como os culpados. Em 1560 morre Anastasia, sua adorada
mulher, e ele suspeita que foi envenenada. Ele próprio sofre uma doença
quase fatal e vê indícios de que os nobres conspiram para destroná-lo.
O desgosto é profundo. Há uma súbita e inexplicável mudança de
personalidade e de políticas de governo. Em 1564 deixa Moscou
secretamente, avisa que irá abdicar. A multidão implora que volte.
Ele volta mas está diferente. Agora protegido por uma guarda pessoal
sinistra, formada por 6.000 criminosos vestidos de preto que espalham o
terror montados em cavalos negros, ele outorga-se poder absoluto,
centraliza o governo e manda executar todos aqueles que o desagradam.
Esta polícia, a “oprichniki”, realiza repressão em massa, torturas,
execuções públicas e confisca terras aos aristocratas.
Torna-se um estado dentro do estado. O terror dura 7 anos e o objetivo é
destruir qualquer possibilidade de desafiar o poder central. A nobreza
hereditária é extinta ou exilada. Ivan ordena a construção da Catedral
de São Basílio e, para que não se faça outra igual, manda cegar os
arquitetos. Em 1570 lidera pessoalmente o violento e cruel massacre da
rica cidade de Novgorod. Ele dura 5 semanas e 60,000 morrem.
Mulheres e crianças são lançadas sob placas de gelo do rio Volkhov.
Aquelas que conseguem vir à tona, são mortas por lanças e machados. Em
Novgorod vivia um primo da mesma dinastia Rurik. Ivan manda executar
toda a família. Em 1581 mata o próprio filho, um herdeiro altamente
qualificado. Três anos depois, morre envenenado por altas doses de
mercúrio enquanto joga xadrez. É o fim de 37 anos de poder absoluto.
Como muitas terras haviam sido desapropriadas pela “oprichniki” ou
abandonadas pela população em fuga, o desabastecimento instala-se. Entre
1601-1603, dois milhões de pessoas morrem de fome. A Rússia perde um
terço da sua população. A dinastia Rurik está extinta e a casa Romanov
emerge. É o início de uma nova era de turbulências.
Cem anos depois, Pedro, o Grande, lidera uma dramática revolução
administrativa e cultural e transforma o estado medieval russo na maior
liderança política e científica da Europa. Surgem os primeiros
reacionários. Rebeliões explodem contra as inovações e são debeladas com
mão de ferro. Inaugura a primeira base naval russa em 1698, na
histórica baía de Taganro. Interessa-se por estratégia militar e cria a
Marinha Imperial Russa para resistir ao Império Otomano.
Combate a burocracia. Em 1699, muda a data de celebração do Ano Novo de
1 de Setembro para 1 de Janeiro e troca o velho calendário russo pelo
gregoriano: o ano de 7207 transforma-se em 1700. Para proteger as terras
recém conquistadas no delta do rio Neva, constrói a fortaleza de “Peter
and Paul”. Estamos em 1703. É o nascimento da cidade de São
Petersburgo, um triunfo de engenharia sobre o que era antes apenas lama e
areia movediça. Milhares de servos carregam as necessárias toneladas de
terra. Muitos morrem.
O Tzar ordena que os ricos mercadores e intelectuais moscovitas mudem
para São Peterburgo, agora cortada por dezenas de canais. Surge a
“Veneza do Norte”. Transforma-se em capital. Em 1714, obriga todas as
crianças da nobreza a serem educadas desde cedo, especialmente na área
de ciências. Todos os oficiais menos graduados devem aprender matemática
e geometria.
Funda a Academia Russa de Ciências, peça fundamental na revolução
cultural e científica que transformaria a Rússia medieval na maior
potência européia. Em 1722 cria a “Table of Ranks” e extingue os
privilégios de nascimento da aristocracia russa. Institui a
meritocracia, que prossegue até 1917, quando o Palácio de Inverno é
tomado e toda a família imperial, assassinada pelos bolcheviques.
“Então não era só pelo lucro que eles matavam”, diz a menina. E olha
para os lados. O avô não está mais na sala, quem responde é uma das
máquinas:
“Era o terror como método. O terror das “oprichniki” de Ivan IV e o
“terror vermelho” de Stalin tinham a mesma natureza. E Stalin também
morreu envenenado”.
A máquina prossegue, em volume mais baixo: “Segundo o historiador russo
Ruslan Skrynnikov, “quando se está sob a ameaça de terror em massa e o
medo de denúncias, a violência adquire uma influência esmagadora sobre
as estruturas políticas de poder. A máquina infernal do terror escapa ao
controle de seus criadores e as vítimas finais passam a ser todas
aquelas que apoiaram e participaram do seu nascimento”.
A menina não ouve. Está longe. Admira pássaros de prata no magnífico céu azul.
Ivan, o temível. Por Marcia Ramalho
Fonte: http://epoca.globo.com
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