Após pressão popular, jornal O Globo admite que errou ao apoiar Golpe de 1964
Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é
frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO
apoiou editorialmente o golpe militar de 1964.
A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como
refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a
intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como "O
Estado de S.Paulo", "Folha de S. Paulo", "Jornal do Brasil" e o "Correio
da Manhã", para citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da
população, um apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em
Rio, São Paulo e outras capitais.
Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor
de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com
amplo apoio de sindicatos - Jango era criticado por tentar instalar uma
"república sindical" - e de alguns segmentos das Forças Armadas.
Na noite de 31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO foi invadido por
fuzileiros navais comandados pelo almirante Cândido Aragão, do
"dispositivo militar" de Jango, como se dizia na época. O jornal não
pôde circular no dia 1º. Sairia no dia seguinte, 2 de abril,
quinta-feira, com o editorial impedido de ser impresso pelo almirante,
"A decisão da Pátria". Na primeira página, um novo editorial: " Ressurge
a Democracia". (fac-símiles da primeira página e da página 3, da edição
de 2 de abril de 1964, na galeria de páginas).
A divisão ideológica do mundo na Guerra Fria, entre Leste e Oeste,
comunistas e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor medida, em
cada país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela radicalização
de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por
meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para
que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros.
Obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Transferir parcela
substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição
exigida pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do
trabalhismo varguista. Naquele tempo, votava-se no vice-presidente
separadamente. Daí o resultado de uma combinação ideológica
contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da UDN e o
vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o rastilho da crise
institucional.
A situação política da época se radicalizou, principalmente quando
Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e
Justiça para fazer reformas de "base" "na lei ou na marra". Os quartéis
ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à direita. Veio,
então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros - Cabo
Ancelmo à frente -, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o
oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe, chamado de "Revolução", termo adotado pelo
GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única
alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam
uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças
Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à
esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram
mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966.
O desenrolar da "revolução" é conhecido. Não houve as eleições. Os
militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de
José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto
indireto, falecido antes de receber a faixa.
No ano em que o movimento dos militares completou duas décadas, em
1984, Roberto Marinho publicou editorial assinado na primeira página.
Trata-se de um documento revelador. Nele, ressaltava a atitude de
Geisel, em 13 de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos
institucionais, o principal deles o AI-5, restabeleceu o habeas corpus e
a independência da magistratura e revogou o Decreto-Lei 477, base das
intervenções do regime no meio universitário. Destacava também os
avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos, mas, ao justificar sua
adesão aos militares em 1964, deixava clara a sua crença de que a
intervenção fora imprescindível para a manutenção da democracia e,
depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana. E, ainda, revelava
que a relação de apoio editorial ao regime, embora duradoura, não fora
todo o tempo tranquila. Nas palavras dele: "Temos permanecido fiéis aos
seus objetivos [da revolução], embora conflitando em várias
oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo
revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram,
como reconheceu o marechal Costa e Silva, 'por exigência inelutável do
povo brasileiro'. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um
'pronunciamento' ou 'golpe', com o qual não estaríamos solidários"
(fac-símile da primeira página de 7 de outubro de 1984, na galeria de
páginas).
Não eram palavras vazias. Em todas as encruzilhadas institucionais por
que passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto
Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma
constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o
Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse
de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por
setores civis e militares.
Durante a ditadura de 1964, sempre se posicionou com firmeza contra a
perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez questão de
abrigar muitos deles na redação do GLOBO. São muitos e conhecidos os
depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar
funcionários de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente
para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos
"comunistas" que trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira
desafiadora. Ficou famosa a sua frase ao general Juracy Magalhães,
ministro da Justiça do presidente Castello Branco: "Cuide de seus
comunistas, que eu cuido dos meus". Nos vinte anos durante os quais a
ditadura perdurou, O GLOBO, nos períodos agudos de crise, mesmo sem
retirar o apoio aos militares, sempre cobrou deles o restabelecimento,
no menor prazo possível, da normalidade democrática.
Contextos históricos são necessários na análise do posicionamento de
pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A
História não é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns aos
outros. Ela é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para
seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e
se enriquece ao reconhecê-los.
Os homens e as instituições que viveram 1964 são, há muito, História, e
devem ser entendidos nessa perspectiva. O GLOBO não tem dúvidas de que o
apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento
a atitude certa, visando ao bem do país. À luz da História, contudo,
não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um
erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período
que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor
absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.
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Fonte: O Globo
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