Médico cubano vê vinda ao Brasil como chance de fazer pé-de-meia
"Mãe, o que você acha de Carlos David?", pergunta Laura, 25, com uma
barriga redonda em um vestido florido, a Ana, uma médica de 49 anos que
deixará Havana rumo ao Brasil no dia 10.
"Gosto muito", diz a médica, que diz que o terceiro neto nasce em
novembro. "Com o primeiro foi o mesmo. Eu estava na Venezuela, mas pude
vir para o parto. Foi bom. Agora não sei como vai ser."
Não só Ana, funcionária de um hospital de Havana, mas também seu marido,
em missão técnica pelo governo de Cuba num país africano, podem perder o
nascimento.
A médica não tem dúvida, no entanto, de que valerá a pena ser um dos
4.000 profissionais recrutados por Cuba para o Mais Médicos.
Ela diz não saber quanto ganhará no Brasil. Ouviu que serão US$ 1.000
(R$ 2.380) dos US$ 4.201 (R$ 10 mil) que o governo brasileiro pagará ao
cubano por médico, mas isso não lhe importa.
"Por pior que seja o país, vale a pena. Sempre o salário vai ser maior
do que aqui. E o que ganhamos vale muito aqui em Cuba. Além do mais, é
uma coisa que não é fácil de entender. Nós somos formados desde pequenos
com outra ideia de medicina, gostamos de servir", diz Ana.
Sem os sete anos em que ela e o marido passaram na Venezuela, em missão
similar a que cumprirá no Brasil, ela jamais compraria a casa própria
subsidiada pelo Estado no valor de US$ 4.000.
Em Cuba, há duas moedas vigentes. O peso cubano, da maioria dos salários
e de alguns produtos básicos, e o CUC, equivalente ao dólar, que compra
tudo o mais.
A médica, com mestrado em emergências médicas e professora, ganha algo como US$ 26 mensais --ou R$ 62.
| Editoria de Arte/Folhapress | ||
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O único nome real do relato acima é o do bebê. Ana, seus familiares e os
demais profissionais de saúde cubanos ouvidos pela Folha em Havana
mantêm o anonimato por não estarem autorizados a falar com a imprensa.
Em muitas das histórias, a conclusão de Ana se repetiu. Enquanto ao
chegar ao Brasil profissionais cubanos foram chamados de "escravos"
nesta semana, viajar ao exterior como funcionário do governo, mesmo sob
restrições, é algo disputado.
No caso dos médicos, pode ser a oportunidade de fugir de salários
irrisórios e de dois ou três bicos. Mais importante: pode ser a chance
de obter o dinheiro que não conseguiriam a vida toda.
"Todos os cinco que trabalham comigo têm outros trabalhos. Um vende
perfume, o outro é carpinteiro, outra aluga equipamento de som e outro é
taxista. Eu, que estudei para ter meu dinheiro e ser independente, vivo
do meu marido, que tem curso técnico", explica a pediatra Consuelo, 43,
que tenta se inscrever de maneira independente no Mais Médicos.
Consuelo conta que as ferramentas do médico-carpinteiro e o equipamento
de som do colega empreendedor foram conquistas dos dois após voltarem da
missão na Venezuela, onde, como Ana, ganhavam US$ 200 (R$ 476).
A família em Cuba recebia até US$ 100 (R$ 238) mensais. Todos ganham
ainda um cartão que dá 30% de desconto nas lojas dolarizadas.
Para Roberto Veiga, editor da influente revista cubana ligada à igreja
"Espacio Laical", é razoável que o governo cubano cobre um "imposto" dos
médicos que leva para trabalhar no estrangeiro.
E o governo conseguiria esse recrutamento se o salário em Cuba fosse maior?
"Os baixos salários são a expressão-chave da crise econômica. Mas, ainda
que houvesse em Cuba a possibilidade de um salário digno, creio que a
superpopulação de médicos faria a possibilidade de trabalho no exterior
atrativa, talvez de outra maneira", diz.
Pavel Vidal Alejandro, economista cubano que atua em universidade da
Colômbia, diz que para explicar o fenômeno inteiro é preciso voltar à
queda da URSS, quando a ilha comunista perdeu seu aliado político e
econômico. Os salários são hoje 70% do que eram em 1989 e os preços se
multiplicaram por oito.
"É verdade que os médicos cubanos vão receber no Brasil bem mais do que
recebem em Cuba. Mas também é verdade que o Estado também vai receber
bem mais alto rendimento. A empresa estatal tem um modelo de
rentabilidade de negócio baseado em baixíssimos salários. O que está
ocorrendo é uma extensão desse modelo, levado à Venezuela, ao Brasil."
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br
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