“A classe média é uma abominação política porque é fascista; é uma abominação ética porque é violenta; e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim”
“Eu odeio a classe média!”, bradou a filósofa e professora da USP 
Marilena Chauí em uma palestra em maio, causando furor na direita e 
perplexidade em parte da esquerda. “A classe média é uma abominação 
política porque é fascista; é uma abominação ética porque é violenta; e é
 uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim”, completou. Confesso 
que eu mesma fiquei confusa com a afirmação. Não somos todos nós, 
progressistas, também classe média? Não seria uma generalização? Ou é 
apenas uma provocação?
O leitor João Paulo Martins, estudante de jornalismo na Cásper 
Líbero, me mandou uma entrevista que fez com Marilena onde ela fala das 
manifestações pelo país, de Espinosa, do ENEM e também explica a que 
classe média se referia em sua diatribe. E diz mais: para Chaui, a tal 
“nova” classe média não é classe média coisa nenhuma, mas sim “uma nova 
classe trabalhadora”.
Eu ainda tô na dúvida. Concordo quando ela diz que “ideologicamente, 
vitoriosa é a classe média”, porque se refere a uma determinada linha de
 pensamento que, desafortunadamente, vem ganhando espaço no País 
–inclusive nesse “nova” classe ascendente que a filósofa diz que é a 
“trabalhadora”. Mas continuo achando que há várias classes médias e não 
apenas uma. Me digam o que vocês pensam.
***
Por João Paulo Martins
Como a senhora analisa as manifestações que estão acontecendo pelo Brasil?
Marilena Chauí: Embora pareçam vários movimentos sociais dispersos, o
 importante é perceber que há alguns elementos unificadores. Existe um 
tema que eu denomino inferno urbano. O inferno urbano, em sua 
totalidade, significa a verticalização dos condomínios e shopping 
centers, o aumento demográfico e a expulsão dos moradores das regiões de
 exploração imobiliária para as periferias cada vez mais distantes. 
Complementando o inferno urbano, você tem o problema do transporte 
coletivo que é indecente, indigno e mortífero, além de a cidade ser 
construída privilegiando o veículo individual. Os culpados por este 
inferno urbano são as montadoras com a produção de carros, as 
empreiteiras responsáveis pela explosão imobiliária e os cartéis de 
transporte urbano que contribuíram para sua ineficácia. Disto tudo, 
podemos ver a luta pela moradia, pelo aluguel, pelo sistema viário da 
cidade, pela educação e pela saúde. Todas estas causas formam um 
movimento unificado contra a produção do inferno urbano.
Em contrapartida a este panorama, venho percebendo declarações de 
muitos jovens em defesa do apartidarismo e com um posicionamento radical
 contra a política. Eles acabaram aderindo à ideologia neoliberal das 
empresas de comunicação que desqualificam os partidos políticos porque 
querem ocupar o espaço público em seus lugares. Ver alguns segmentos de 
manifestantes se pronunciarem desta forma me preocupa muito, pois a 
situação dos partidos políticos minoritários no Brasil é a pior 
possível. Vivemos em uma sociedade conservadora que transformou os 
partidos políticos em clubes privados que operam por clientela, tutela e
 cooptação. Ainda de quebra, há o pacote Abril do general Golbery que 
monta o sistema partidário brasileiro e força a justiça eleitoral com um
 entulho autoritário através de campanhas de coalizão. Vejo todas estas 
questões como pautas de reformas políticas e motivos para manifestações 
populares. Ainda assim, apesar de dispersos, os movimentos têm tudo para
 se organizarem em um tema unificador. Sem isto, perde-se o saldo 
organizativo, fazendo com que eles se enfraqueçam.
Uma característica comum a estes movimentos é  a organização sem uma liderança específica. A senhora considera isto positivo?
M.C.: Sim. Você não precisa ter a forma tradicional de divisão entre 
lideranças e liderados. Esta hierarquia não precisa aparecer. Eu mesma 
participei de inúmeros movimentos sociais onde a forma  de organização 
era a autogestão. Operando desta maneira, você consegue um movimento 
muito mais libertário, sem a introdução de nenhuma diferença entre os 
participantes. É um equívoco pensar que a verticalização hierárquica 
traz eficácia aos movimentos. Em toda minha vida, os movimentos que vi 
chegarem mais longe e conseguirem mudanças importantes para suas épocas 
foram os organizados desta maneira, sem eleger uma liderança específica,
 o que democratiza a opinião dos integrantes.
Como a senhora analisa o posicionamento da mídia em relação às manifestações no Brasil?
M.C.: A atitude da mídia foi a esperada. No primeiro instante, ela 
criminalizou os movimentos pelo fato de terem sido oriundos da esquerda.
 Quando os movimentos passaram a ser divulgados pelas redes sociais, se 
tornaram de massa e o caráter de esquerda foi se diluindo entre as 
reivindicações populares. Então, ela passou a celebrar as manifestações e
 levá-las para o lado mais conservador e reacionário dentro da 
sociedade. A mídia detém quase um monopólio político em termos mundiais,
 exercendo o controle econômico de muitos setores através da propaganda.
 Sendo bem direta, eu diria: nada de novo no front.
Como a senhora analisa o panorama geral da educação brasileira nos últimos dez anos?
M.C.: Eu pontuaria como positivo do ponto de vista da democratização 
do acesso e da revalorização da escola pública em todos os níveis, mas 
problemática na questão das estruturas básicas educacionais. E isto não é
 por falta de recursos, mas sim por inabilidade em usá-los da maneira 
correta. Recuperar esta estrutura educacional após 20 anos de ditadura e
 20 anos de políticas neoliberais não é uma tarefa fácil para o governo.
Sobre o ENEM, por que a senhora acha que a USP não aderiu ao exame até hoje?
M.C.: A decisão sobre a adesão ou não ao ENEM é tomada pelo conselho 
universitário da reitoria, que é majoritariamente ligada ao PSDB. Então,
 eu não diria que é uma ação imediata e direta do governo estadual para 
contrapor a proposta de democratização do ensino feita pelo governo 
federal, mas sim uma ação indireta de PSDBistas ligados à reitoria da 
USP, um fato deplorável no meu ponto de vista. Esta resistência por 
parte da USP me entristece muito. Sou muito cautelosa ao concordar que 
somos a vanguarda do ensino. Podemos até ser em algumas áreas, porém em 
outras eu diria que somos a pior retaguarda de todas, principalmente nas
 questões políticas que dizem respeito à democratização dos direitos 
humanos.
O Brasil conseguiu avanços significativos do ponto de 
vista econômico e social nestes últimos anos. De que maneira a senhora 
enxerga termos estes avanços por um lado, mas por outro observarmos uma 
intensa retração nos direitos humanos, como a liderança do deputado 
Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos da Câmara e a presença 
massiva da bancada evangélica no Congresso?
M.C.: Isto acontece porque o governo conseguiu a hegemonia do ponto 
de vista das políticas sociais e dos movimentos sociais, mas não do 
ponto de vista ideológico. Ideologicamente, o que nós temos vitoriosa é a
 classe média. Do lado pentecostal, temos a Teologia da Prosperidade, e 
no que se relaciona ao conservadorismo típico, temos a ideologia do 
empreendedorismo. Isso significa uma visão da sociedade individualista, 
competitiva e sem as relações de solidariedade e cooperação. Fatos que 
estão ligados ao núcleo do pensamento da classe média: a ordem e a 
segurança. Em uma sociedade onde se deseja um progresso no sentido 
ideológico, a presença forte desta ideologia regressista é um empecilho 
tremendo. Por isto, ainda observamos estes absurdos como o projeto de 
“cura gay” e outros insultos aos direitos humanos. O entrave está aí: a 
hegemonia progressista não é total, e a ideologia prevalecente é a 
conservadora, que impede termos uma sociedade mais justa, solidária e 
humanitária, principalmente com as minorias sociais.
A senhora criou enorme polêmica ao atacar a classe média.
 Algumas críticas vieram inclusive de teóricos da própria esquerda. 
Gostaria que deixasse claro a qual classe média seus ataques se 
referiam: a que já era estabelecida como classe social ou a que entrou 
em ascensão após o governo do PT?
M.C.: Não acredito que os programas sociais do governo tenham criado 
uma nova classe média no Brasil. O que eles criaram foi uma nova classe 
trabalhadora. Ela é nova, pois foi criada nos quadros do neoliberalismo.
 A classe trabalhadora clássica no Brasil se tornou minoritária com o 
tempo. Isto tudo se deu pela fragmentação e precarização de seus 
serviços, juntamente à desarticulação de suas formas de identidade, 
resistência e luta. Então, as políticas governamentais originaram uma 
nova classe trabalhadora heterogênea, desorganizada e precária no 
sentido de não possuir um ideário pelo qual lutar. Esta nova classe 
trabalhadora é que absorve a ideologia da classe média: o 
individualismo, a competição, o sucesso a qualquer preço, o isolamento e
 o consumo. Sendo assim, não é que exista uma nova classe média, mas sim
 uma nova classe trabalhadora que é sugada pelos valores da classe média
 já estabelecida. A classe média estabelecida é a que sempre existiu. O 
que há de novo é o fato de ela ter crescido quantitativamente e do ponto
 de vista econômico, ou seja, ela vai mais vezes a Miami e à Disney por 
ter se tornado mais abonada. É justamente esta classe média estabelecida
 e poderosa que eu ataco, e não a nova classe trabalhadora criada nos 
quadros sociais do neoliberalismo.
O que distingue uma classe social da outra não é a renda ou a 
escolaridade. O que distingue uma classe social da outra é a maneira de 
ela se inserir no modo social de produção. Se você se insere como 
proprietário privado dos meios sociais de produção, você é capitalista. 
Se você é assalariado que vende sua força aos proprietários privados dos
 meios sociais de produção, você é proletário. Quando não se é nenhum 
dos dois, ocupando uma posição intermediária da pequena propriedade 
comercial, agrícola e das profissões liberais, você constitui a classe 
média. Esta classe média já estabelecida que é petulante, arrogante, 
ignorante e fascista. Ela é movida por um sonho de se tornar a burguesia
 detentora dos meios sociais de produção e possui um pavor de se tornar 
parte da classe trabalhadora. Porém, ela nunca se tornará esta 
burguesia, pois não entende o processo social para se tornar burguês, 
mas sustenta seu sonho através da ordem, da repressão e da segurança. 
Realmente a tal classe média é uma flor que não se cheira.
Analisando o panorama de mudanças sociais e políticas no 
mundo hoje, a senhora ainda concorda com a afirmativa de Espinosa de que
 a paz é uma virtude e, portanto, a guerra é um vício?
M.C.: A guerra não é um vício. A guerra é o que acontece quando você 
não tem a paz. Espinosa diz o seguinte: ‘A finalidade da vida política é
 fazer com que não haja nas pessoas medo nem insegurança’. Nós temos 
medo e insegurança porque não sabemos o que será do futuro. Mas quando 
eu tenho medo, este medo vem sempre acompanhado de esperança. Este jogo 
de medo do mal e esperança pelo bem faz com que Espinosa afirme sobre a 
finalidade da vida política em assegurar ao indivíduo a inexistência de 
receios para o futuro. E a política faz isto através do direito, do 
sistema de leis e instituições que me permitem acordar sabendo que se 
houver uma tragédia não ficarei desamparada. A guerra, por outro lado, é
 a reintrodução do medo. Ela repõe o medo como forma das relações 
sociais e destrói aquilo que é o núcleo da vida social e política. Eu 
diria que ela ainda é um vício desde este ponto de vista.
Em contrapartida, Espinosa diz o seguinte sobre a paz: ‘A paz é 
diferente da ausência de guerra’. A ausência de guerra não significa que
 você tem paz, significa que não estão explicitados conflitos violentos 
que poderão surgir a qualquer momento. A paz, portanto, é a afirmação de
 que a qualidade das instituições, direitos e leis garantem que estes 
conflitos podem existir sem que se destrua o corpo político da 
sociedade. Eles podem ser trabalhados, pois a paz –diferentemente da 
guerra–, não criminaliza os conflitos. Neste panorama que ainda permeia 
nossa sociedade, estou de acordo com esta afirmação, ainda que muitas 
instituições componentes do corpo político do Brasil e do mundo não 
assegurem necessariamente a paz às pessoas.
Para quem não viu Marilena Chaui detonando a classe média, eis o vídeo:Fonte:socialistamorena.cartacapital.com.br
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário