Editorial
E Deus criou o gay
O papa Francisco curva-se à vontade divina, ou por outra à verdade dos fatos, se quiserem à normalidade
Em um mundo órfão de grandes lideranças, ocorre-me de súbito a figura do papa Francisco. Tem jeito para exceção. CartaCapital
já o definiu como renovador e reformador. A se confirmar a rota tomada
neste começo de pontificado, logo nos defrontaremos com um estadista.
Sou católico não praticante desde
os meus 11 anos de idade, após ter desempenhado com competência, faço
questão de sublinhar, a complexa tarefa de coroinha em missas faladas em
latim na Igreja de San Rocco, em San Remo, a serviço de Don Borfiga, o
pároco, santo homem no altar do templo miúdo e gracioso no alto de uma
subida íngreme. Eu vestia uma batina vermelha e um roquete saído da
agulha de crochê da minha avó materna, e pisava degraus de mármore com
leveza bailarina ao transferir o missal de um lado a outro. Ao cabo da
função, ao ganhar a sacristia, dizia “prosit” com alguma solenidade,
para enlevo do bom pároco.
Logo passaria a figurar na
categoria dos agnósticos e nem por isso deixei de me aproximar de belos
personagens eclesiásticos e de admirar outros a lhes conhecer a vida e a
obra. O papa João XXIII, digamos, ou o cardeal Carlo Maria Martini,
capaz, antes de morrer, de denunciar o atraso da Igreja Católica em
relação aos temas éticos, à família, à sexualidade, à juventude.
É o pensamento de Martini que
Bergoglio parece compartilhar de várias formas. A visita ao Brasil
ofereceu ao papa Francisco a oportunidade de provar seu carisma e a
qualidade dos seus propósitos. Ao cabo, ainda no avião que o levava de
volta a Roma, deu uma entrevista especialmente reveladora aos
jornalistas companheiros de viagem. Entrevista subversiva, porque
subverte aquilo que soava como doutrina da Igreja e agora abre o caminho
para reformas profundas.
A começar
pela questão do homossexualismo. “É preciso distinguir – diz o pontífice
– entre o fato de que uma pessoa é gay e o fato de que se organiza um
lobby a favor. Lobby nunca é bom. Mas se uma pessoa é gay e busca o
Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” E sobre o banco do
Vaticano, o Instituto para as Obras da Religião, tornado lavanderia
mafiosa, admite não ter ainda uma solução final. Não exclui a
possibilidade de fechá-lo de vez, mas, se não for assim, terá de
caracterizar-se por transparência e honestidade.
O pontífice aponta erros e
pecados cometidos pela Igreja, a presença de monsenhores que merecem a
cadeia, a corrupção reinante em setores da Cúria, inferior moral e
intelectualmente ao nível de outros tempos. Faz o elogio da misericórdia
a respeito dos divorciados e lembra que os ortodoxos permitem uma
segunda união matrimonial como se fosse bom exemplo. Será este um
assunto no próximo outubro para a reunião com os oito cardeais chamados a
compor uma espécie de conselho consultivo, também nascido de uma ideia
defendida pelo cardeal Martini, colegiado de sábios para assessorar o
papa. Que reconhece, assim, sua falibilidade.
Declarações deste naipe prometem
uma guinada de certa forma revolucionária. Há quem enxergue em Bergoglio
um ator consumado e um político astuto. Nada disso o diminui, mesmo
porque é de clareza cegante a necessidade de uma mudança radical dentro
da Igreja Católica, atolada em escândalos e tramoias, permitidos, quando
não incentivados no caso do IOR, por João Paulo II. Os mesmos
escândalos e tramoias que levaram Bento XVI a renunciar com uma insólita
confissão de impotência. Bergoglio indica ter as sobras de energia e as
ideias claras e corajosas de que careceu seu predecessor.
Há uma frase-chave nas pregas das
falas de Francisco, “temos de nos acostumar a ser normais”, pronunciada
em seguida à informação de que carrega na mesma bolsa o breviário e o
barbeador, pois tem o hábito de usá-los diariamente. A entrega à
normalidade significa aceitação da verdade inexorável dos fatos. Só para
focalizar um fato específico: se há homos e héteros, um católico não
poderá deixar de atribuí-lo à vontade do criador. Se quiserem, escrevo
Criador, com “c” grande. Avisei, porém: sou agnóstico. •
Fonte: http://www.cartacapital.com.br
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