Tem água pra ver, mas não pra beber
- Estados do Brasil:
Nos arredores do maior açude do Ceará, moradores de
assentamentos, cidadezinhas e vilas sofrem com a seca enquanto a água
passa diante dos seus olhos para abastecer o agronegócio, a indústria, e
a capital, Fortaleza
Coletivo Nigéria,
Leva-se
uma hora para chegar da nova à velha Jaguaribara em um barco de
alumínio com um motor de popa de 25 HP. A extensão do Castanhão, o maior
açude cearense, impressiona, mas o nível d’água baixou tanto nos
últimos dois anos que a antiga sede do município, inundada há uma década
pela própria barragem, emergiu. A seca reduziu à metade a capacidade de
6,7 bilhões de metros cúbicos do Castanhão, que perde 22 mil litros de
água por segundo, quase metade deles conduzidos pelo Eixão das Águas, o
canal de transposição, à região metropolitana de Fortaleza. O sistema
Castanhão-Eixão das Água responde por 37% da capacidade de armazenamento
de água do Ceará.
Com a dimimuição das águas do Castanhão, estruturas da antiga Jaguaribara emergiram - Foto: Coletivo Nigéria |
A
reaparição da antiga Jaguaribara, que jazia sob a obra de engenharia
hidráulica que prometia reduzir drasticamente os efeitos da seca no Vale
do Jaguaribe, tem um quê de fantasmagórica no período mais árido que o
Ceará enfrenta nos últimos 50 anos. Dos 184 municípios do entorno do rio
Jaguaribe, represado pela barragem, 175 estão em situação de
emergência. A nova Jaguaribara, a cidade planejada que substituiu a que
foi submersa pelo açude, está sendo abastecida por carros-pipa e seus
moradores chegam a pagar R$ 8 o quilo do feijão, enquanto os pequenos
agricultores às margens do Eixão, o canal que abastece Fortaleza,
precisam repartir a água com os animais e veem suas lavouras perdidas.
A
mais de 200 quilômetros dali, porém, o Castanhão, via Eixão das Águas,
garante a água na capital cearense e, em breve, vai suprir também a
demanda hídrica do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o maior
projeto de infraestrutura para o desenvolvimento econômico do Ceará,
localizado na região metropolitana da capital. Resta apenas concluir o
quinto trecho do Eixão das Águas – que então terá 255 km de extensão – o
que está previsto para setembro.
A água do
Castanhão vai completar seu trajeto do sudeste do Estado, onde está o
açude, ao litoral cearense. O objetivo é final é o complexo industrial
conjugado ao porto, que vem registrando crescimentos anuais entre 20% e
30%, composto por uma siderúrgica da Vale, uma refinaria da Petrobras e
duas usinas termelétricas da empresa MPX, do grupo de Eike Batista – que
já opera com uma das usinas e vai colocar a outra em funcionamento nos
próximos meses. As duas usinas térmicas, planejadas para gerar 1.085 MW,
vão consumir até 800 litros de água por segundo. A demanda total de
água prevista para o complexo é de 5 mil l/s de “água bruta” – o termo
técnico para a água doce não tratada.
Dez anos de promessas não cumpridas
Em
um cenário em que 71 dos 143 reservatórios monitorados pela Companhia
de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) estão com níveis abaixo de 30%,
o Castanhão, inaugurado em 2003, cumpre missão de seguir abastecendo
Fortaleza, que concentra mais da metade da população do Estado, e de
parte considerável do agronegócio no Estado, como a produção de frutas
para exportação no perímetro irrigado da Chapada do Apodi, com altas
taxas de crescimento. Mas, como mostra a situação dos moradores de Nova
Jaguaribara, ainda não trouxe benefícios à população local, nem mesmo
aos que perderam suas casas para a obra.
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Após
10 anos, Eixão das Águas causou diversos impactos ao longo dos 255km de
extensão, incluindo alterações visuais na paisagem - Foto: Coletivo
Nigéria
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Dos
22 mil litros por segundo de vazão do Castanhão, 10 mil seguem pelo
Eixão das Águas e 12 mil são despejados no leito do Rio Jaguaribe – o
maior rio cearense, com cerca de 600 km de extensão, margeado por
empreendimentos do agronegócio. Esse volume de água explica por que, ao
contrário de Recife, por exemplo, nem a seca prolongada trouxe ameaça de
racionamento à capital cearense, destaca o coordenador geral do
Complexo do Castanhão, José Ulisses de Sousa, engenheiro do Departamento
de Obras Contra as Secas (Dnocs).
Por outro
lado, nem todos os 18 assentamentos planejados para receber as famílias
desalojadas pela barragem foram concluídos. A maior parte dessas
famílias era arrendatária de terras alheias e não recebeu indenização
pelas casas perdidas. Na ponta final do Eixão das Águas, a obra atingiu
os índios Anacé, que tiveram uma lagoa aterrada, riachos represados e
perderam suas terras para grandes indústrias e para a infraestrutura do
governo.
Houve esperança no início. Os primeiros
assentamentos a serem construídos, como o Curupati Peixes, desenvolveram
com sucesso a psicultura em Jaguaribara, e hoje o Castanhão é
pontilhado por gaiolas para a criação de peixes em cativeiro,
principalmente tilápias. Segundo, o engenheiro Ulisses, “é o maior
parque psicultor do país”. Outros assentamentos foram destinados à
pecuária leiteira, como o Mandacaru, em que cada família recebeu três
hectares de terra para o cultivo do pasto. Mas as “matrizes” – as vacas
leiteiras – que deveriam chegar de Minas Gerais, como prometido à época
da inundação, uma década depois ainda não chegaram.
“Concordo
que é um pouco tarde”, concede Ulisses. “É a questão da burocracia do
sistema do governo brasileiro. Nós temos vários órgãos fiscalizadores,
temos uma Lei de Licitações engessada, que proíbe a gente de correr. Não
tem como. A gente fica engessado. Tem que esperar licitação,
Procuradoria dar parecer, ai demora mesmo. Agora que é tarde, é”,
reconhece o engenheiro. “Existe um débito do governo com essas
comunidades, mas em nenhum momento parou-se de trabalhar em cima de
alcançar o objetivo do projeto inicial do Castanhão”, afirma.
Ulisses
também reconhece que é um “absurdo” que as comunidades às margens do
Castanhão tenham que ser abastecidas através de carros-pipa. Dos 820
caminhões da Operação Carro-pipa no Ceará – coordenada pelo Exército e
pela Defesa Civil e responsável por atender a 134 municípios do estado
–, dois deles abastecem exclusivamente Jaguaribara, incluindo casas da
sede do município.
“Essas coisas pretas são do pipa mesmo”
O
dono e motorista de um destes caminhões é Fabiano Souza, de 33 anos,
que encontramos despejando 8 mil litros de água na cisterna do
agricultor Francisco Ferreira Sobrinho, o seu Zé Vital, a cerca de 300
metros de uma das margens do açude. A água é captada a alguns
quilômetros dali, na estação de tratamento da Companhia de Água e Esgoto
do Ceará (Cagece), e não tem muito boa cara dentro da cisterna de seu
Zé Vital.
“Essas coisas pretas assim são do pipa
mesmo, ferrugem talvez. Não tem problema não porque a gente bota no
filtro e bota na geladeira. A gente bebe dela aqui e nunca ninguém
adoeceu, não”, confia seu Zé Vital.
No centro
comercial de Jaguaribara a revolta com a falta d’água na vizinhança do
açude transborda na fala de Dona Jacinta Sousa, 48 anos. Para reforçar a
dificuldade por que passa o município ela pega uma maletinha de
ferramentas repleta de pequenos blocos de anotações, que registram os
muitos débitos não saldados em seu comércio. “Eu tenho raiva quando pego
nela!”, diz, fechando a valise e jogando-a mais uma vez para debaixo de
seu birô.
Em Jaguaribara, quase todas as
mercadorias vêm de fora. Segundo os entrevistados, o peixe, criado nos
projetos de psicultura, é a única opção de renda da cidade – além das
aposentadorias, das bolsas governamentais e dos empregos na Prefeitura.
Praticamente todas as frutas e verduras do comércio vêm de Fortaleza ou
da Chapada do Apodi, com preços inflacionados pela seca. Ou seja, além
do prejuízo na lavoura, os pequenos agricultores precisam pagar até duas
vezes mais para comer.
As chuvas de abril, maio e
junho, que amenizaram os impactos da estiagem, não significaram o fim
da seca – especialmente porque o segundo semestre é naturalmente o
período de estio no semiárido brasileiro. Também não alteraram
consideravelmente os níveis dos açudes, apenas dois deles estão com mais
de 90% de seus níveis máximos: Curral Velho e Gavião, ambos alimentados
pelo Castanhão. O primeiro, localizado no município de Morada Nova, é o
marco entre os trechos I e II do Eixão das Águas; o segundo, na região
metropolitana de Fortaleza, fica na intersecção entre os trechos IV e V,
de onde parte tanto a água da capital quanto a tubulação de 55 km que
leva ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).
No
percurso entre um e outro reservatório, porém, populações das margens
do canal sofrem com a escassez de água – como os moradores do
Assentamento Amazonas e da comunidade Piauí de Dentro, localizados na
fronteira entre os municípios de Morada Nova e Russas.
No
Assentamento Amazonas, que cobre uma faixa de terra de 3.700 hectares,
cortada pelo Eixão, o ano passado e os primeiros três meses deste foram
improdutivos, com água suficiente apenas para a sobrevivência. Além do
abastecimento do carro-pipa, que enche as cisternas de uma a duas vezes
por semana, uma outorga da Cogerh autorizou retirar 15 mil litros de
água por dia do canal. Mas, embora o assentamento exista há 15 anos, não
há adutora instalada para abastecer as mais de 50 famílias. Eles têm
que pagar um trator para transportar a água, por 25 a 30 reais a carrada
(mil litros. Conforme o tamanho do rebanho e da família, isso significa
desembolsar até R$ 150 por semana, retirados das bolsas governamentais e
aposentadorias.
Antônio Porfírio, o Tonhão, era presidente da associação de assentados quando foram feitas as negociações |
Os
assentados Irmão Nem, presidente da associação dos assentados, e
Antônio Porfírio, o Tonhão, que ocupava esse cargo quando foram feitas
as negociações para que o canal cortasse a terra do assentamento,
afirmam que até hoje as promessas da época da construção do Eixão das
Águas não foram cumpridas.
“Na época, eles
indenizaram essa parte aqui [a faixa de terra por onde hoje passa o
canal]. Mas quando foi pra passar o pique, veio uma equipe do governo e
prometeu que deixava áreas irrigadas aqui pra nós. No caso, ele prometeu
50 hectares, pelo menos meio hectare de irrigação pra cada um. Sendo 46
de irrigação e 4 hectares de tanque de peixe. Mas infelizmente já se
passou o tempo e até hoje ninguém encontrou isso aí”, conta Irmão Nem.
Na Fazenda Melancias tem água
A
poucos quilômetros dali, porém, uma adutora abastece a Fazenda
Melancias, propriedade da Agropecuária Esperança que pertence a um dos
maiores grupos econômicos do Ceará – o Grupo Edson Queiroz, dono de
emissoras de televisão e rádio, jornal, universidade, fábricas de
eletrodomésticos, distribuidoras de água mineral e gás butano etc. Dois
grandes canos captam água do Eixão para irrigar a pastagem, que alimenta
o rebanho de ovinos e caprinos. Entre 2003 e 2011, a empresa foi
flagrada três vezes pelo Ministério Público do Trabalho pelo uso de
trabalho escravo em outras de suas fazendas no Maranhão e no Piauí.
Grande fazenda do grupo empresarial Edson Queiroz tem direito a capturar água por canos de larga espessura
Foto: Coletivo Nigéria
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Na
lista de outorgas para o Eixão, sete estão em nome da Agropecuária
Esperança, totalizando uma vazão de 2.318 litros por segundo.
Questionado sobre o assunto, o diretor de Planejamento da Cogerh, João
Lúcio, afirmou que a vazão para a fazenda foi reduzida para priorizar o
abastecimento da grande Fortaleza na estiagem, e negou a existência de
privilégios no acesso à água.
“Se houver
disponibilidade, essa água vai atender o pequeno e vai atender o grande.
Não desconhecemos a questão política, porque a gente sabe que a
sociedade tem suas correlações de forças, mas nós temos nossa visão aqui
na Cogerh. Se tiver água, nós vamos atender os pequenos e vamos atender
o grande”, insistiu.
De fato, a lista com 240
outorgas ao longo do canal é formada principalmente por pequenos
usuários, que consomem volumes entre 0,4 e 10 l/s. Contudo, não é
possível precisar quantos destes estão na mesma situação do Assentamento
Amazonas, que possui a outorga, mas não a adutora. A instalação da
adutora é de responsabilidade de quem solicita a outorga e os
trabalhadores rurais não tem como bancar esse custo, o que prejudica
toda a atividade econômica nas pequenas propriedades.
Mesmo
quando já investimento do Estado para as adutoras, outros problemas
podem inviabilizar o abastecimento das comunidades. A Secretária de
Recursos Hídricos – órgão ao qual está subordinada a Cogerh – investiu
R$ 6,5 milhões em 23 sistemas de abastecimento que atendem a 32
comunidades localizadas a uma distância de até 2 km das margens dos
trechos I, II e III do Eixão. Segundo a secretaria, foram construídas
infraestrutura de captação, adução, reservação e chafariz para estas
comunidades e outros 12 sistemas estão em fase de licitação. No entanto,
ressalva feita pela própria assessoria do órgão, seis dos sistemas já
instalados estão parados por falta de infraestrutura suficiente de
energia elétrica, de responsabilidade da Companhia Energética do Ceará.
Da varanda se vê, mas não chega na casa
Apesar
de não ter sido citada pela secretaria, este parece ser o caso da
comunidade de Piauí de Dentro – vizinhas ao Assentamento Amazonas –, em
que as 60 famílias continuam sem acesso à água do Eixão. A agricultora
Maria Glécia, de 31 anos, conta que a adutora instalada pelo programa da
SRH com recursos do Fundo de Combate à Pobreza funcionou durante uma
hora e meia. Há mais de um ano está parada, assim como estão sem uso a
caixa d’água e o chafariz construídos para distribuir a água.
Maria até hoje não vê os benefícios prometidos pelo projeto Eixão das Águas - Foto: Coletivo Nigéria
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“Agora
tá até bom, tá chovendo um pouquinho… Mas foi ruim, viu? 2012 a gente
vendo os bichos morrer… E a gente também. Tinha dia que não tinha água. A
gente sabia que tinha aqui, mas como tirar?”, pergunta.
Glécia
mora com a família a menos de 40 metros do canal. A varanda dá vista
para o cânion de 30 metros de profundidade formado depois que o topo de
serra foi dinamitado para a passagem da água, por gravidade, do
Castanhão ao litoral. Mas, como não é possível manualmente puxar a água
através do cânion, ela precisa percorrer 3 km até encontrar um trecho do
Eixão ao nível do terreno. O motor que deveria bombear a água queimou
logo após ser ligado. Nem o eletricista enviado pelo governo, nem as
inúmeras visitas semanais que seu pai, líder comunitário, fez à sede do
município de Russas, deram jeito na situação.
Glécia,
o marido Josemberg, o irmão Wagner e o cunhado Gertúlio não sabem dizer
quantas cabeças de gado perderam pela falta de água ou mesmo por caírem
dentro do canal ao escorregarem no desfiladeiro, que não possui
qualquer proteção. Outras tantas foram furtadas depois que o trânsito de
pessoas aumentou na área com a abertura da estrada que margeia o canal.
Por isso, ninguém cria mais gado solto ali.
As
obras do Eixão trouxeram outros impactos graves à comunidade. As pedras e
sedimentos gerados pela obra, assim como a engenharia utilizada para o
desvio do curso da água, acabaram por aterrar parte de uma lagoa e de um
açude da comunidade, hoje água salobra. O cânion separou de um lado a
vila de casas e do outro os lotes de terras dos moradores, o que
transformaria um percurso original de poucos metros num jornada de 3 km
cada trecho, não fosse a resistência. Foi preciso a comunidade se
mobilizar e passar três dias inteiros deitada sobre dinamites até
conseguir a garantia do governo de que seria construída uma ponte no
local.
Para a indústria, água subsidiada
A
lista de outorgas de uso de água para o CIPP já soma uma demanda de
3.860 l/s, incluindo empreendimentos que ainda serão instalados, como a
Companhia Siderúrgica do Ceará. A CSP, um investimento da Vale em
parceria com as multinacionais sul-coreanas Dongkuk e Posco, lidera a
lista com uma demanda de 1,5 mil l/s, quando entrar em operação em 2017.
Mas, no momento, a Cogerh já fornece uma vazão de 55 l/s para a fase de
terraplanagem. A demanda da CSP inclui o consumo de água a termelétrica
que será construída para fornecer energia à siderúrgica.
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Usina
Termoelétrica do Pecém II que faz parte do Complexo Industrial do Porto
do Pecém, que demanda 4 mil litros de água por segundo - Foto:
Divulgação
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As
duas usinas termelétricas da MPX possuem duas outorgas no valor total
de 800 l/s, volume que deverá ser usado na totalidade quando a segunda
unidade entrar em operação, no segundo semestre. Não é tão grande se
comparado ao utilizado pela agricultura irrigada, que representa cerca
de 60% da demanda do estado, mas está entre os maiores da indústria.
Além disso, ao contrário do que ocorre em projetos semelhantes da MPX no
Chile e no Maranhão, as térmicas do Pecém não dessalinizam a água do
mar, que fica a poucos quilômetros da usina.
No
vídeo institucional das térmicas do Pecém, a empresa chega a se gabar da
“abundância” de água: “Além do carvão mineral, outra matéria é
necessária para a geração de energia: a água. Nessa região, ela é
encontrada em abundância devido à proximidade com o reservatório da
Cogerh.”
O reservatório ao qual o vídeo se refere
é o Açude Sítio Novos, com capacidade para 50 mil m³, ou seja, um açude
de pequeno porte. Não por acaso, afora o Eixão das Águas, cinco outras
cinco barragens de mesmo tamanho serão construídas para abastecer o polo
industrial – como mostra o documento “Cenário Atual do Complexo
Industrial e Portuário do Pecém (versão preliminar)”, produzido pelo
Pacto pelo Pecém, uma articulação de várias instituições em torno do
projeto do CIPP, capitaneada pelo Conselho de Altos Estudos da
Assembleia Legislativa do Ceará, fortemente engajada na concretização do
CIPP.
Alguns deputados estaduais chegaram a
formar uma caravana para percorrer o Estado com o objetivo de pressionar
a Petrobras para iniciar a construção da Refinaria Premium II – que
compõe com a siderúrgica da Vale os empreendimentos-âncora do complexo
–, e as matérias de interesse do CIPP são tratadas com deferência na
assembleia. Em junho de 2011, por exemplo, os deputados estaduais
aprovaram um desconto de 50% no preço da água consumida pelas térmicas
da MPX, o que foi contestado por parte da opinião pública cearense.
Os
subsídios, uma tradição da política econômica do Nordeste desde pelo
menos os primórdios da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(Sudene) na década de 1960, são defendidos até hoje pelo secretário
estadual de Recursos Hídricos, César Pinheiro: “Pra você trazer empresas
pro Nordeste, você tem que fazer um incentivo. Então pra térmica nós
demos um desconto de 50%, mas nós fizemos uma coisa que não é discutida.
A térmica fica parada durante um período do ano e nesse período ela
paga água. Quer use ou não, nós estamos cobrando dela e é um valor
significativo. Então não é 50%, porque quando ela não tá usando, nós
estamos cobrando. Isso dá um balanço para que nós não tenhamos
prejuízo”, diz Pinheiro.
A lei que instituiu o
desconto estabelece que a empresa deve consumir no mínimo 7.200.000 m³
por ano, o que representa aproximadamente 228 l/s. Se o número for
confrontado com os 800 l/s previstos na outorga, portanto, em três meses
e meio as térmicas atingem a cota mínima determinada. A reportagem da
Pública entrou em contato com a assessoria da MPX para uma entrevista
sobre as tecnologias de reuso de água e redução da emissão de gases
poluentes das duas térmicas do Pecém. Mas foi informada de que a empresa
não poderia se pronunciar por estar no “período de silêncio”, uma
determinação da Comissão de Valores Mobiliários que tenta impedir que
empresas envolvidas no momento em transações influencie o mercado.
Os vizinhos da termelétricas
“É
muito distinto você ter uma população que veio ter um contato com o
automóvel em 1971, veio ter uma televisão colorida em 90, 94, pra de
repente estar no ano 2000 e já ter filhos pilotando retroescavadeiras,
trator de esteira, ganhando muito dinheiro”, diz Kleber Nogueira, 31
anos, professor da Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé, um
dos oito indígenas que conversou com a Pública na escola, localizada na
comunidade de Matões, hoje na área do CIPP (Complexo Industrial e
Portuário de Pecém).
Com adutora da comunidade quebrada, Francisco tem de buscar água a cavalo para a família - Foto: Coletivo Nigéria
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Ainda
é difícil para eles engolir o projeto industrial que os expulsou de
suas terras e os jogou na área de influência do complexo. Além da
vizinhança com as termelétricas da MPX, os indígenas sofreram ainda mais
com a transformação dos municípios litorâneos de Caucaia e São Gonçalo
do Amarante, que até pouco tempo viviam da pesca e da agricultura
familiar
“Ninguém perguntou pra nós… É isso que
me faz raiva, é isso que me faz ficar chateada, me deixa com vontade de
gritar, estraçalhar mesmo… Não tem como a gente falar de impactos, nesse
momento, pro choro não vir aqui, porque em menos de um mês a gente
perdeu quatro pessoas na comunidade, por conta dessa porcaria dessa
Estruturante (via rodoviária) que passou aí e que não é sinalizada. Uma
menina morreu num acidente de carro, antes de ontem uma criança de menos
de anos também foi atropelada”, desabafa Andrea Coelho, moradora da
Comunidade do Bolso, outro povoado Anacé.
Entre
os impactos causados pela atividade econômica acelerada está a drenagem
de pequenos riachos e nascentes da comunidade para a instalação das
indústrias, e o aterramento da Lagoa do Murici – um dos vários
mananciais de água da região, com um lençol freático bastante próximo à
superfície, como aponta o estudo “O povo indígena Anacé e seu território
tradicionalmente ocupado”, encomendado pelo Ministério Público Federal.
Produzido pelo professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia
da UFC, e outros dois analistas periciais em Antropologia, o parecer
demostrou que várias comunidades da área decretada como de interesse
público foram ignoradas pelo Estudo de Impacto Ambiental do CIPP.
“Quem
tá lá fora não sabe o que está acontecendo aqui na ponta do Eixão, não
sabe que a água que sai de lá vem trazendo na tubulação essa enxurrada
de coisas. Você pensa que mudou só uma forma de vida, uma coisa bem
simples, mas não. O impacto é bem maior. Porque esse Eixão das Águas vem
pra alimentar a sede de um complexo industrial”, diz Kléber.
Hoje,
boa parte dos Anacé está de mudança para a nova área que conseguiram
conquistar a leste do Complexo, para onde os ventos não podem levar a
fumaça e a fuligem do carvão mineral das térmicas. Mas os índios que
assinaram os primeiros acordos de desapropriação tiveram sorte pior:
moram hoje debaixo do “sovaco da MPX”, como eles próprios dizem.
O
Coletivo Nigéria é formado pelos jornalistas Bruno Xavier, Pedro Rocha,
Roger Pires e Yargo Gurjão e sediado em Fortaleza (CE). Há mais de dois
anos trabalha com produções audiovisuais e assessoria de comunicação de
movimentos sociais. Esta reportagem foi realizada através do Concurso
de Microbolsas de Reportagem da Pública.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/14873
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