Na corporação, delegados e agentes divergem sobre atribuições; por ordem do governo, prioridade agora está em grandes eventos e combate ao tráfico de drogas
Considerada uma das instituições com maior credibilidade
no País, a Polícia Federal (PF) vive uma crise de identidade. Segundo
delegados e agentes, uma mudança de orientação do governo federal tem
consequências diretas nas operações de combate à corrupção, que nos
últimos anos se tornaram marca registrada do órgão. Além disso, segundo
integrantes da corporação, a crise se agrava diante de uma disputa
velada de poder entre agentes e delegados.
No ano passado, o governo Dilma Rousseff (PT)
redirecionou o planejamento estratégico da PF e mudou o foco de trabalho
no órgão. Se antes o órgão tinha como prioridade ações contra a
improbidade administrativa e desvio de recursos públicos, hoje as ações
prioritárias da PF estão voltadas ao combate ao tráfico de drogas,
resguardo das fronteiras brasileiras e ações estratégicas dos grandes
eventos.
Essa mudança de prioridade irritou uma parcela dos
delegados e agentes da PF. Para eles, a alteração transformou a Polícia
Federal de um órgão estratégico dentro do governo para uma polícia de
caráter meramente administrativa. De acordo com um delegado ouvido pelo
iG
, a avaliação é de que, embora também sejam “importantes”, as medidas de
combate ao tráfico e segurança em eventos não garantem à Polícia
Federal a mesma “notoriedade” conquistada com grandes operações de
combate à corrupção dos anos 2000.
Segundo fontes da PF, os principais eventos realizados
este ano, como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude
(JMJ), entre os meses de junho e julho, praticamente paralisaram as
investigações.
Hoje, a PF tem aproximadamente 13 mil servidores,
incluindo os delegados. Desses, 3,5 mil servidores, entre os quais
investigadores, foram deslocados especificamente para o esquema de
segurança da Copa das Confederações. Os homens da PF foram usados, por
exemplo, como guarda-costas do presidente da Fifa, Joseph Blatter, e do
secretário-geral da entidade, Jérôme Valcke, no período em que eles
estiveram no Brasil.
A situação foi semelhante na Jornada Mundial da
Juventude. Pelo menos mil agentes e servidores da PF foram deslocados
também de ações de investigação para atuar na segurança do papa
.
“O órgão passa por uma falência total. Enquanto não
acontecer um grande encontro para que possamos trabalhar em um novo
projeto de instituição, a PF está com os dias contados”, declara o
presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Jones
Borges Leal. Essa mudança de foco é um dos motivos apontados pela
Fenapef pelo alto grau de insatisfação dos agentes. Segundo pesquisa
divulgada em julho pela Fenapef, 90% dos servidores sentem-se
subaproveitados. “Se antes era orgulho trabalhar na PF, hoje servidores
mais antigos contam os dias para entrar com pedido de aposentadoria”,
diz Leal.
Disputa
Se de um lado a mudança de foco e os constantes
contingenciamentos de investigadores são apontados como um obstáculo ao
combate à corrupção, do outro delegados e agentes disputam o poder para
comandar e dar encaminhamento às investigações.
Os delegados reclamam de atos de insubordinação de
agentes. E os investigadores se proclamam vítimas de assédio moral e
alegam que, somente no ano passado, 12 servidores teriam cometido
suicídio por esse motivo. Uma assertiva classificada como desonesta
pelos delegados.
Hoje, os agentes lutam por uma reestruturação da PF e
querem dividir o órgão em três áreas: polícia técnica (responsável por
laudos e perícias), comandada por peritos; polícia administrativa
(responsável por expedição de passaportes, por exemplo) e polícia
judiciária, esta a ser comandada por delegados. Nessa estrutura, os
agentes conseguiriam tirar força e poder dos delegados de polícia,
responsáveis pelo comando de todas as áreas da PF.
Essa disputa de poder resultou, por exemplo, em algumas
situações inusitadas. No início deste ano, o iG revelou que houve a
distribuição de uma cartilha
recomendando que os agentes cruzassem os braços diante de serviços que
não estejam dentro das atribuições previstas em lei
. Pela legislação, o responsável pelos inquéritos é o delegado de
polícia. Assim, alguns agentes passaram a não transcrever escutas
telefônicas das operações relacionadas ao combate à corrupção. Agora,
essa função, considerada uma das mais importantes (e tediosas) do
processo de investigação, passou a ser feita apenas pelos presidentes
dos inquéritos.
Esses atos de indisciplina provocaram uma reação dos
delegados, que pediram maior rigor do diretor-geral da PF, Leandro
Daiello Coimbra. Os delegados cobram punições mais pesadas contra os
investigadores que desacatem ordens superiores. “Esses agentes querem
que o rabo abane o cachorro”, comparou um delegado que preferiu não se
identificar.
O desentendimento entre agentes e delegados ficou ainda
mais evidente em junho deste ano, quando foi expedido um comunicado
interno ratificando as diretrizes da lei 12.830/2013, que regulamenta a
investigação criminal dos delegados de polícia (inclusive os da PF).
Além de ratificar que cabe “ao delegado de polícia, na
qualidade de autoridade policial, a condução da investigação criminal” a
lei ainda afirma que o cargo de polícia é privativo de bacharel de
Direito “devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que
recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério
Público e os advogados”. Na interpretação dos agentes, o comunicado
interno obrigou os agentes de polícia a chamar os delegados da PF de
“vossas excelências”. Os delegados negam.
A situação acirrou o ânimo entre agentes e delegados. “Os
delegados entendem as reivindicações legítimas dos agentes, mas esperam
que haja a superação desse momento de negociação com o governo para que
possamos retomar as atividades da PF à normalidade”, amenizou o
presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Marcos
Leôncio Ribeiro.
A disputa entre delegados e agentes é tão evidente que
dentro da PF não houve consenso nem quanto a um posicionamento oficial
relacionado à PEC 37,
que retirava o poder de investigação do Ministério Público. Caso a PEC
37 tivesse sido aprovada pelo Congresso, a PF e as polícias estaduais
monopolizariam as investigações criminais e de combate à corrupção. Por
isso, delegados da PF são favoráveis à PEC 37; já os agentes, temendo um
ganho de poder dos delegados, lutaram pela derrubada da emenda.
A direção Polícia Federal foi procurada pela reportagem
para comentar esses desentendimentos internos, mas preferiu não se
pronunciar.
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/
Nenhum comentário:
Postar um comentário