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A escuridão que rege o bem e o mal
Se tudo o que existe é bom, o que permite ao ser humano agir mal? Essa reflexão começou já nos primórdios da filosofia
Por Juvenal Savian Filho, professor do Departamento de Filosofia da Unifesp — publicado na edição 77, de junho de 2013
O texto "Da Inexistência do Mal", de Vladimir Safatle, publicado originalmente em CartaCapital (leia aqui),
aborda um tema de extrema atualidade para a filosofia ético-política: a
dificuldade de compreender as dinâmicas psicológicas que operam na
constituição da vontade e da ação. Com efeito, nenhuma teoria moral,
social ou política poderia, em nossos dias, recorrer à ideia de que o
mal age e faz as pessoas se tornarem más. Nossa sensibilidade prefere
crer que os motores das ações ruins estão muito mais ligados às
patologias do que a qualquer tipo de força metafísica. Ainda assim,
porém, não é tarefa fácil definir o que é uma ação “objetivamente ruim”
ou entender por que as pessoas agem contra as expectativas de justiça,
de afirmação do maior bem possível, de paz etc.
Um exercício filosófico de grande fecundidade nesse contexto é conhecer
o modo como a tradição filosófica, desde os primórdios gregos, falou do
mal sem afirmar necessariamente que ele é alguma coisa subsistente por
si mesma, mas tomando-o como uma forma de apontar para a falta do bem
que deveria existir. Já Heráclito (535-475 a.C.), que falava da luta dos
contrários como origem da harmonia cósmica, não considerava os
elementos antagônicos (frio-quente, saúde-doença, dia-noite, bem-mal
etc.) como opostos absolutos, mas considerava que eles eram
manifestações contrárias de um mesmo princípio ou estofo de tudo o que
existe, a physis ou Natureza. Platão (428-348 a.C.), que teve a coragem
de levar essa temática ao extremo, afirmou que tudo o que existe é ser,
positividade, vida, sem espaço para a destruição, a negatividade ou o
não ser. O não ser, para Platão, será, no máximo, uma referência ao ser
diferente, não exatamente o seu contrário, pois o contrário do ser
simplesmente não poderia existir. Existindo, tudo o que é, é desejável
por si mesmo, tem um sentido no conjunto do Cosmo e, por isso, pode ser
chamado de bem (desejável), donde a conclusão de que tudo é bem. Só o
bem existe.
Plotino (205-270), responsável por um dos últimos grandes edifícios
filosóficos da Antiguidade, explorou a terminologia do mal e do não ser,
atribuindo esses termos à matéria, mas sem querer dizer com isso que a
matéria é má ou contrária ao ser, mas o último grau de ser, oposto à
fonte absoluta e imaterial que seria o Uno: último grau de ser, ela não
poderia não ser. No encontro do judaísmo e do cristianismo com a
filosofia, outras consequências racionais são extraídas dessa temática,
pois, então, supondo-se que o mundo seja criado por uma inteligência
suprema num ato de total gratuidade, não havia espaço para o mal, a
menos que se pensasse que o criador continha o mal em si, o que o faria
implodir. Certa visão romântica poderia perguntar: mas por que o divino
não pode conter o ser e o não ser, o bem e o mal, dando origem a tudo,
inclusive às coisas más que gerariam o equilíbrio com as coisas boas?
Todavia, um pouco mais de atenção leva a perguntar: por que chamá-lo de
mal e, portanto, de contrário do bem, se ele é ser e, portanto, é bem
(desejável)? Se ele existe, não é ser? E, sendo ser não é um bem? É um
pensamento como esse que levará Santo Agostinho (354-430) a defender a
necessidade de afirmar que tudo o que existe é ser, e, portanto, é bom. O
mal seria uma forma de indicar que falta o bem que deveria existir.
Mas, se tudo o que existe é bom (mesmo uma doença ou uma tempestade, as
quais, no conjunto, revelam ter algum sentido), então como pensar que
falte o bem que deveria existir? Se o Cosmo é bom, não pode ser
incompleto. Não será, portanto, na Natureza que se poderá falar da
ausência do bem, pois isso significaria dizer que nela existe uma coisa
que não existe (uma falta)... O único “espaço” em que se poderá falar de
mal, portanto, será o campo da ação humana livre, pois o ser humano é o
único ser que pode não praticar o bem que mereceria praticar, ou seja,
“produz uma ausência”, faz outra coisa no lugar daquilo que seria
adequado. A essa defasagem entre o desejável e o existente é que se dará
o nome de mal.
Essas elaborações em torno do tema do mal – ainda que expressas aqui em
traços demasiadamente largos – estarão na origem das reflexões
ético-políticas que surgiram também já nos primórdios da filosofia.
Perguntava-se: se tudo o que existe é bom, o que permite ao ser humano
agir mal? Partia-se do princípio de que todo ser humano deseja seu bem,
pois ninguém em sã consciência desejará sua autodestruição (mesmo um
suicida vê um bem para si mesmo em terminar com sua vida). Mas,
intrigava os pensadores o fato de, apesar desse desejo do bem, alguns
indivíduos ainda assim praticarem atos maus (atos que se podem reverter
em prejuízo dos próprios indivíduos). Perguntavam, então, pelo que
ocorre no interior do indivíduo que cede ao “mal” (ou seja, a essa
situação em que não se faz o que é desejável).
Sócrates (469-399 a.C.) e Platão falaram de ignorância: é o
desconhecimento do que é o verdadeiro bem que leva alguém a agir mal,
pois, sabendo o que é o bem, seria impossível não desejá-lo e
praticá-lo. Em outros termos, ninguém poderia agir contra o bem se
soubesse realmente que ele é o melhor a ser buscado. Aristóteles
(384-322 a.C.), que se formou em continuidade com Sócrates e Platão,
preferia partir da experiência ambígua que reside no fato de, mesmo
sabendo o que é o bem, não sermos sempre capazes de praticá-lo.
Identifica, então, um elemento irracional na origem de nossos atos: as
paixões (alegria, desejo, cólera, medo...), as quais interferem em
nossas decisões, obscurecendo a clareza da consciência do bem e
levando-nos muitas vezes a praticar o que a razão condena. No seu dizer,
uma ética feita para humanos e não para deuses não poderia ser
intelectualista, como a ética socrático-platônica, mas deveria incluir o
jogo com as paixões: é preciso “convencê-las”, assim como o bom
político convence a cidade.
Não é à toa que ele cita Péricles, o justo, como modelo de homem
prudente. Os pensadores judaico-cristãos, com base em elementos
platônicos e aristotélicos, afirmavam a necessidade de conhecer o bem,
mas admitiam que era necessário um trabalho de si, no sentido de
integrar as paixões e encaminhá-las para a boa ação. Alguns deles
chegaram mesmo a recorrer à narrativa mítica do pecado original para
dizer que a condição humana é marcada de uma fraqueza e de um prazer com
a má ação, necessitando do socorro divino para poder escapar às tramas
confusas que dificultam visar sempre ao bem e conseguir praticá-lo. Essa
afirmação da necessidade do socorro divino não corresponde a algo
meramente religioso, mas também filosófico, uma vez que defende a
insuficiência humana para obter a realização que racionalmente se
visualiza como possibilidade.
Guardadas as devidas proporções, já nos autores mais clássicos
mostrava-se presente a dificuldade de obter clareza sobre os dinamismos
psicológicos que movem a ação humana. Atualmente, o idioma filosófico
geral é eivado, por um lado, de termos psicanalíticos e, por outro lado,
de termos decisionistas, contratualistas, pragmáticos etc. (sobretudo
quando se nega a subjetividade). Insiste-se também no fato de que agimos
muitas vezes segundo condicionamentos socioculturais. Seja como for,
parece ter-se tornado uma constante em filosofia pensar que a ação
humana não é totalmente transparente à compreensão. A liberdade recebeu,
obviamente, estilhaços provenientes desse golpe à pretensão de total
clareza conceitual. Já desde os gregos, os romanos e os primeiros
pensadores judaico-cristãos ela deixou de ser concebida como mera
escolha para ser entendida, em termos gerais, como a possibilidade de
dar sentido à existência individual e social em meio aos
condicionamentos e tendências. Isso, no entanto, não significou cair
no pessimismo. Pelo contrário, representou a forte confiança no humano e
na sua capacidade de criar e superar-se.
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| Sócrates e Platão falaram do desconhecimento do bem como protagonista do mal |
Em Sala | Guia de atividades didáticas
Interpretação Faça relações e comparações sobre a luta entre o bem e o mal que aparece nos textos filosóficos e teológicos
1 Dividir a
sala em pequenos grupos para debater: “É possível falar com coerência
racional de uma luta entre o bem e o mal?” Na sequência, fazer uma
plenária de comparação das diferentes respostas.
2 Analisar, com base na reflexão que propusemos, o
seguinte trecho da Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos (capítulo 7,
versículo 15): “Não consigo fazer o bem que quero, mas faço o mal que
não quero”
3 A partir da análise do texto paulino e das
referências aos filósofos antigos, refletir: “A problemática do mal é
apenas teológica? E, mesmo que seja também teológica, ela não tem lastro
filosófico?” Uma pesquisa de rico caráter formativo é estudar como a
narrativa bíblica do pecado original permitiu a diferentes filósofos
pensar questões filosóficas novas e mesmo propor interpretações
originais da experiência humana. Alguns exemplos: Santo Agostinho,
Blaise Pascal, Leibniz, Lévinas.
Competências
Confrontar opiniões e pontos de vista
Habilidades
Habilidades
Comparar pontos de vista expressos em diferentes fontes sobre determinado conteúdo filosófico
Fonte: CartaCapital
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