Campanha pedindo 'boicote a Copa' aquece debate sobre Mundial
"E um país que é número 85 no ranking de desenvolvimento humano e onde
muitas pessoas morrem esperando tratamento médico, precisa de mais
estádios?"
Entre as mensagens e reivindicações nas manifestações de rua no Brasil,
as que mais parecem ter impressionado a imprensa e o público
estrangeiros são os slogans anti-Copa. E a popularidade de um vídeo
postado por uma brasileira na internet dá a medida de como essas
mensagens contra o Mundial se espalharam.
A gravação, em inglês, tem o título Não, não vou para a Copa e já foi vista por mais de 1,5 milhão de pessoas.
Feito pela diretora de cinema Carla Dauden, o vídeo foi interpretado
pelos que a compartilharam e comentaram como uma manifestação em favor
do boicote aos Jogos (embora a autora questione parcialmente essa
interpretação).
Dauden, que mora nos Estados Unidos, explica no
vídeo ter decidido publicar a mensagem porque sempre que revela ser
brasileira em um grupo de estrangeiros, alguém lhe diz que vai para a
Copa.
"E um país que é número 85 no ranking de
desenvolvimento humano e onde muitas pessoas morrem esperando tratamento
médico, precisa de mais estádios?", questiona, após mencionar os custos
do evento.
A gravação fala tanto de problemas que segundo
Dauden o país deveria "ter resolvido, mas não resolveu" - como a falta
de médicos e equipamentos em hospitais públicos - quanto de polêmicas
ligadas às obras do Mundial - como o projeto que previa a demolição do
antigo Museu do Índio, no Rio.
Boicote
Nos comentários sobre o vídeo, alguns dizem
apoiar um boicote. E a campanha para dissuadir estrangeiros de
assistirem aos Jogos no Brasil também já virou tema de debates em redes
sociais e bandeira de alguns manifestantes.
"Não venham à Copa do mundo", diziam cartazes em
inglês empunhados em protestos realizados nesta semana, tanto no Brasil
quanto em capitais estrangeiras como Londres.
No Facebook, já foram criadas seis páginas pedindo o boicote aos jogos.
E a mais popular delas é justamente a mais
radical, mantida pelo grupo de hackers ativistas Anonymus, que fez da
sabotagem à Copa um dos focos de sua ação no Brasil.
"A Operação 'Boicote à Copa' será constituída por ações online e
offline - e se dividirá em etapas ou fases em um cronograma extenso",
anuncia o grupo, que em meio à onda de protestos chegou a invadir o site
montado pelo governo brasileiro para promover os Jogos.
Em entrevista à BBC, Dauden diz não saber se o boicote é mesmo a melhor solução.
"Talvez seja uma medida muito extrema - e não
valha a pena agora que tanto recursos já foram gastos na preparação do
evento", admite.
"Mas uma mensagem forte como essa era necessária
para motivar um debate mais amplo sobre como os preparativos para a
Copa estão afetando a população", defende a diretora, que horas depois
de publicar seu vídeo na internet já havia recebido centenas de e-mails e
pedidos de entrevista de diversas partes do mundo.
Debate
É verdade que nem todos os manifestantes com
mensagens anti-Copa nos protestos pregavam um boicote ao evento. E mesmo
na internet o grupo que defende essa medida extrema é uma minoria.
Mas também não há como negar que os protestos
trouxeram à tona uma realidade até então pouco visível não só para
público internacional, mas também para boa parte da sociedade brasileira
- a de que muitos no país não estão convencidos de que, tal como vem
sendo organizado, o Mundial deixará um legado positivo para a população.
"Da Copa eu abro mão, quero dinheiro para saúde e
educação", dizia o cartaz em um protesto em São Paulo. "Queremos
hospitais padrão Fifa", reivindicava outro.
Segundo explica Juana Kweitel, diretora da
organização de defesa dos direitos humanos Conectas, até o início dessa
onda de manifestações, as discussões e reivindicações relacionados ao
impacto da Copa em comunidades locais vinham sendo impulsionadas por
poucas ONGs e grupos sociais que fazem parte dos chamados Comitês
Populares da Copa.
Kweitel esteve recentemente na ONU denunciando
supostas violações aos direitos humanos ligadas às preparações para o
evento - por exemplo, denúncias de despejos a toques de caixa e de
problemas relacionados às condições de trabalho na construção dos
estádios.
Ela diz que se sentiu "emocionada" com os
protestos."É natural que alguém que passe três horas no ônibus todos os
dias para ir de casa ao trabalho se revolte ao se dar conta que o maior
investimento em transporte de sua cidade é uma via rápida de um
aeroporto a um estádio, ou qualquer obra desse tipo", disse.
"É natural que alguém que passe três horas no ônibus todos os dias
para ir de casa ao trabalho se revolte ao se dar conta que o maior
investimento em transporte de sua cidade é uma via rápida de um
aeroporto a um estádio, ou qualquer obra desse tipo."
Legado
Garantir que grandes eventos esportivos deixem
um legado positivo para as populações dos países que os sediam é um dos
grandes desafios dos governos que se propõem a organizar tais
competições globais.
Um dos riscos a serem evitados é a construção de enormes estádios que, após a Copa ou Olimpíada, ficariam subutilizados.
"Algumas organizações sul-africanas com as quais
estamos em contato, por exemplo, nos contaram que lá há planos de
demolir alguns estádios e estruturas construídas para a Copa, porque
elas estariam em ruínas e sua manutenção é caríssima", destaca Kweitel.
Para o professor Pedro Trengrouse, da Fundação
Getúlio Vargas, porém, muitos dos discursos negativos em relação a Copa
estão exagerando ao associar o evento a problemas que sempre existiram.
"As deficiências dos sistemas de saúde e de
educação brasileiros não foram causados pela Copa. Nem os problemas do
transporte público surgiram com o Mundial", diz o professor.
Expectativas
Trengrouse acredita que criticar o evento ou
pedir seu boicote é uma forma de atingir o público internacional, que
não costuma dar muita atenção a problemas internos brasileiros.
"O Brasil e a renda da população brasileira
cresceram muito nos últimos anos e criou-se uma demanda urgente pela
melhoria dos serviços públicos", diz. "Mas é preciso tempo para fazer
essas melhorias. Investir - e colher os frutos desse investimento -
demora mais do que simplesmente ganhar dinheiro, ou organizar uma Copa."
Segundo Trengrouse, as preparações para o
Mundial já estão trazendo benefícios para a população ao ajudar a
movimentar alguns setores da economia, gerar empregos e atrair
investimentos.
No total, foram gastos nas preparações para o
Mundial no Brasil R$ 26 bilhões, e a expectativa é que os gastos cheguem
a R$ 33 bilhões.
As estimativas de um estudo realizado em 2010 em
uma parceria entre a FGV e a consultoria Ernst & Young eram de que o
evento, de forma direta e indireta, deveria injetar um total de R$ 142
bilhões na economia até 2014, ajudando a criar 3,63 milhões de empregos.
De acordo com o economista da FGV, espera-se que
a geração de postos de trabalho e injeção de recursos na economia se
mantenham próximos a essa estimativa inicial.
"Mas ainda assim, o tamanho da economia
brasileira é muito grande, não dá para querer que a Copa seja o motor do
crescimento do país nem a solução para seus problemas estruturais",
afirma."
Nenhum comentário:
Postar um comentário